TOMÁS DAS QUINGOSTAS
... continuação
3 – Ladrão e guerrilheiro
Depois do enquadramento histórico, levemente
acima esboçado, necessário para se compreender alguma coisa sobre aquela época
agitada, poder-se-á perguntar: como se chega a bandoleiro? Que eu saiba,
ninguém nasce com uma profissão ou atividade, nem com uma arma na mão, montado
num magnífico cavalo. À medida que foi crescendo, o espírito do rapaz foi sendo
influenciado pelos acontecimentos.
Não
é em vão que se ouve contar aos mais velhos que Portugal tinha sido há pouco
tempo invadido por tropas francesas, que nos tinham usurpado Olivença em 1801,
que nos tinham pilhado bens (até sagrados
e artísticos), e assassinado imensas
pessoas – militares e civis, além dos inúmeros feridos e refugiados que tais incursões
provocaram. As crianças querem tornar-se adultos e vingar-se. O sentimento de
pátria é muito forte nos jovens, sobretudo naqueles que são ultra sensíveis,
como, julgo, seria o Tomás.
Não é em vão que aos doze anos (1820) se toma
conhecimento de uma revolução, de índole liberal, cujos ideais foram trazidos
para o país pelos soldados estrangeiros, os mesmos que nos tinham agredido!
Estas aparentes contradições baralham qualquer mente, sobretudo as mais tenras,
as mais imaturas.
Não é em vão que se assiste a uma mudança de
regime político: do absolutismo passa-se para o liberalismo, e deste para o
anterior, num prazo relativamente curto. Um rei todo-poderoso passa a reger-se
por uma constituição, a prestar contas ao “povo”, o que jamais fizera!
Não é em vão que se aprende a ler: às mãos
do jovem Tomás devem ter chegado alguns escritos revolucionários que ele teria
lido sofregamente. O seu caráter, a sua personalidade, estava em formação. O
seu mundo estava em guerra, era necessário agir, participar. Viver em São Paio de Melgaço não significava
estar ausente, ou noutro planeta.
De acordo com estas linhas de pensamento,
e tendo em conta o contexto agitado em que o país mergulhara, é provável que o
Tomás tenha saído de Melgaço, ainda novo, e se tivesse alistado como voluntário
no quartel de Valença, a fim de ser colocado onde mais dele precisassem. Nada
se pode afirmar para esta fase, visto não existirem documentos a comprová-lo (ou, se existem, não se conhecem); porém, o certo é que ele aprendeu a montar, a
manejar uma arma, a comandar homens, embora a maioria deles rudes e
indisciplinados. Isso não se aprende nas
Quingostas!
Há outra hipótese: ter servido um caudilho
galego, daqueles que lutavam por Carlos (2), pretendente ao trono de Espanha. Ou ainda uma terceira:
ter ingressado numa súcia de ladrões, que abundavam naquela época.
Quer aprendesse num lado, quer noutro, o
que conta é que comandou uma quadrilha mais ou menos numerosa, conforme os
altos e baixos do seu turbulento percurso.
Pelo relato da mãe, feito depois da sua
morte, verifica-se que entre ele e a família existiu de facto uma rutura, sobretudo
moral e religiosa, embora mantivesse uma estreita ligação, não sei se
criminosa, com duas das suas irmãs.
Acerca do Quingostas podem tecer-se duas
perspetivas: a histórica e a tradicional. A primeira apoia-se em documentos; e
a segunda na tradição, naquilo que se disse dele ao longos destes duzentos e tal anos. Aliás, a segunda perspetiva já se transformou em lenda! A primeira
corresponde à verdade dos factos; a segunda está eivada de fantasia, de
anedotismo, onde a imaginação popular se desenvolveu até à exaustão.
O que sabemos atualmente sobre o Tomás
radica em quatro fontes:
1.ª
- Dr. Augusto César Esteves (1889-1964).
Devido à sua profissão, teve acesso a alguns documentos antigos, espalhados um
pouco por todo o lado, mas que ele juntou, e deles se serviu para escrever
sobre algumas figuras históricas. No caso do Tomás, apoiou-se sobretudo no
processo de inventariação que decorreu depois do passamento do facínora. A mãe
do Quingostas, já viúva, aceitou a herança aquando da morte do filho, e em
consequência dessa anuência teve que pagar a todos os credores do defunto. O
processo decorreu, como é óbvio, no tribunal de Melgaço e por lá ficaram esses
papéis à espera que alguém um dia os lesse de novo.
2.ª
- Dr. Francisco Cyrne de Castro (3). Suponho que
foi no jornal «Aurora do Lima» que ele publicou o seu estudo sobre o Tomás, ao
qual deu o título “Notícias do Tomás das
Quingostas”.
3.ª
- Dr.ª Maria de Fátima Sá e Melo
Ferreira. Na sua tese de doutoramento, intitulada «Résistances populaires au libéralisme au Portugal, 1834-1844»,
defendida na Universidade de Paris I – Panthéon – Sorbonne, em 1995, inseriu um
capítulo «Banditismo e política no Alto
Minho (1834-1840)», no qual sobressai a figura do Quingostas. Esse capítulo
foi traduzido para português e está publicado na revista «Ler História» n.º 36,
de 1999, páginas 125 a 175. É um excelente trabalho de investigação, embora com
alguns erros à mistura, servindo-se a autora das fontes já mencionadas, mas
sobretudo dos documentos do Arquivo Histórico Militar, sito na capital do país.
Foi sem dúvida uma grande surpresa para mim: uma senhora lisboeta, “alfacinha”,
(salvo erro) escrever com lisura, e imparcialidade, sobre uma
figura tão desprezada pelos historiadores nacionais – é de louvar.
4.ª
- Joaquim A. Rocha. Há já muitos
anos que eu me venho debruçando sobre a vida e feitos do famigerado Tomás das Quingostas. Quando era criança,
os mais velhos contavam-me coisas fantásticas sobre ele: roubava aos ricos,
dava aos pobres (inspirado certamente no “Robin dos Bosques”), escondia-se em
minas, usava alçapões para as suas estrambólicas fugas, etc., e eu então
prometi a mim próprio saber mais sobre essa personagem mítica, quase lendária. Uma
das minhas descobertas, que as outras fontes ignoraram, foi ter encontrado o
seu assento de batismo. A Dr.ª Maria de Fátima quase acerta com a sua idade,
ao escrever que o Tomás andaria à volta de trinta anos quando morreu, em 1839. Mas
por que não foram ao Arquivo Distrital de Viana indagar sobre o tal assento de
batismo? Eles provavelmente foram, mas procuravam em Tomás Joaquim. Eu tive
sorte e persistência. Como na altura residia em Lisboa e não me dava muito
jeito ir a Viana, alguém me sugeriu que consultasse a Biblioteca da Igreja de
Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, cujos membros são conhecidos por mórmons;
ali encontrei o que desejava. É de facto um enigma ter preferido usar o nome de
Tomás Joaquim em lugar de Tomás de Aquino. Ter-lhe-ia alguma vez passado
pela cabeça que no futuro iria confundir os seus biógrafos? O motivo principal
quanto a mim terá a ver com a sua zanga com a igreja católica, sobretudo com
os padres, que no púlpito pregavam uma coisa e no dia-a-dia cometiam tantos
pecados quanto os outros! Usar nome de santo não se coadunava com a sua maneira
de ser e estar.
continua...
continua...
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