LEMBRANÇAS AMARGAS
romance
Por Joaquim A. Rocha
(continuação)
Nunca me deu um tostão, o filho da mãe. Quando nasceu o teu irmão
bem precisei; foram os vizinhos que me valeram, que Deus lhes pague e os
proteja para toda a eternidade. Nem um tostão! Fome, nunca passastes; pão e um
caldo de toucinho e couves tiveram sempre; mas podiam, se o malandro ajudasse,
comer melhor, e ter roupinha para vestir. Nus nunca andaram, isso não, mas já
calçado nunca tiveram, mas até faz bem andar descalço, ficaram com os pés
rijos, pele de elefante. Olha os filhos dos ricos: sempre calçados, desde que
nascem, e têm os pés que se assemelha a manteiga, desfazem-se mal tocam em
qualquer coisa; vocês não, os vossos são de ferro, até à bola podeis jogar
descalços. Canté! Se eu trocava os vossos pés pelos deles. E de burrinhos não
tendes nada; meti-vos na escola, dei-vos aos dois a quarta classe. Mais não
podia, não sou rica, mas a quartinha dei-vo-la. Que eu fui criada como uma
menina de bem, com roupinhas bonitas, com bonito calçado, com comidinha boa.
Mas a vida, o bandido que me desonrou, que me fez a tua irmã e não casou
comigo, ele dizia-me sempre que casava, que casava: «Matilde, sem ti não consigo viver»; mas o tempo passou e ele não me
veio buscar. De casa dos pais dele escorraçaram-me, mas pronto, ele não teve
culpa, quem me mandou ficar de barriga?! E para que fui para Lisboa, estava tão
bem na casa da minha madrinha, mas ela ia para o Brasil, queria-me levar com
ela, mas eu não quis: «para o Brasil, nem
morta!» Uma terra tão distante, viajar pelos oceanos, eu que nunca tinha visto
o mar, só o rio, era capaz de morrer pelo caminho, pensava eu. Fui para Lisboa
servir, sempre estava no nosso país, onde se falava a nossa língua.
- Mas, mamã: no Brasil também se fala português, disse o senhor
professor na escola.
- Isso é o que vós dizeis, eu sei lá. Tão longe, com gente
estranha, terra dos índios, andam nus e atiram setas venenosas às pessoas
brancas, depois comem-nas! Não, do meu país não saio.
- Com
que idade foi para Lisboa?
- Tinha dezoito anos. Não é para me gabar, mas era uma rapariga
bonita; baixinha, mas bonita. E sabia fazer de tudo: cozinhar, limpar uma casa,
passar a ferro – tudo!
- Agora
aqui em casa não faz nada, abandalhou-se, é uma desmazelada. Nem vassoura tem!
- Nem preciso! Perdi o gosto pela vida, qualquer dia morro, já não
falta muito, até há quem diga que já viram o meu enterro! Naquele tempo, sim:
era nova, alegre, cantava sempre «verde
Minho, verde Minho/quem me dera t’abraçar/ai de mim, longe de ti/tão cansada de
chorar.» Os meus patrões de Lisboa gostavam imenso de mim: «ó Matilde, que bem cantas.» Mas aquele
alfacinha refinado começou a fazer-me olhinhos. Não resisti: «Matilde, se não quiseres ser minha, mato-me,
dou um tiro no coração.» Tão bonito que ele era – sempre bem barbeado,
cheirava a limpo. E falar! Falava como um doutor. Gostei mesmo dele. Os pais
não gostaram que me tivesse feito aquilo – eu não passava de uma criada de
servir, de uma rapariga da província. Queriam melhor para o filho, uma menina
rica, de boas famílias. Que eu era de boas famílias, pessoas honestas,
trabalhadeiras, mas humildes. Eles queriam uma nora de posição, como eles.
Botaram-me fora: «vai para casa dos teus
pais criar o bebé, quando estiver crescido voltas.» Está bem, está. O que
eles desejavam era ver-me portas a fora, longe do Adalfredo, eu era um estorvo,
um empecilho, ai se a prometida dele soubesse! Mas olha, criei a tua irmã, ou
melhor, criaram-na os teus avós, que eu, coitada de mim, tive de trabalhar, ir
servir novamente. Fui para uma freguesia aqui do concelho, e logo fiquei de
barriga cheia outra vez. O que me valeu foi que a criança deixou este mundo com
meses. Logo a seguir fiquei grávida de outro. O de Lisboa ainda me escreveu
durante algum tempo, a pedir-me que não me casasse, que esperasse, ele gostava
muito de mim, mas que queres, é o destino, o meu fadário. O bruxo do Coto da Mó
tinha razão. Um dia, fazendo sair de um frasco, com uma diabólica forma, os diabretes,
ou bolinhas saltitantes, da cor da cinza e húmidas, as quais, por incrível que
pareça, não molhavam a mesa, e ora se transformando em dezenas ou centenas, ora
se reunindo numa só, disse-me: «Matilde,
o teu futuro não se apresenta risonho, existem inúmeros obstáculos no teu
caminho; só a força de vontade, a persistência, os poderão vencer; só vejo
sombras em teu redor, tens muita gente que te quer mal.» Eu nunca tive essa
força de vontade, deixei-me levar pelo destino, pelo fado cruel.
Sem comentários:
Enviar um comentário