O diretor de uma
humilde revista pediu-me para eu escrever um texto a fim de ser publicado no
dia internacional da criança. Hesitei. Porquê naquele dia se o ano tem 365 e
todos eles devem ser dedicados à criança? As televisões, as rádios, as grandes revistas,
os jornais, nesse dia falam até à exaustão dela. Sobre o assunto são
exibidos filmes, peças de teatro, fantoches; fazem-se festivais, encontros.
Tudo nesse dia, tudo no dia internacional da criança. Apesar das hesitações
resolvi escrever, mas o quê?
Falar da fome que
milhares, ou milhões, delas passam diariamente, sobretudo na Ásia e na
África? Disso, já tantos jornalistas falaram e escreveram. Filmaram-se campos
de refugiados, bairros degradados, onde há falta de alimentos, de vestuário, de
médicos e de enfermeiros. Para quê lembrar as desigualdades gritantes que
existem entre as crianças de continentes diferentes, dos mesmos continentes, e
até dos mesmos países. Sobre isso está tudo dito e filmado. Para quê isolar-se
a criança do todo social e criar-lhe, artificialmente, e talvez de má-fé, com
puros interesses comerciais, o seu dia? A fim de chamar a atenção para ela?! A
atenção de quem? Dos chamados responsáveis políticos? E como poderiam resolver
esse problema? A maioria dos Estados está com os cofres vazios, os políticos,
quase todos, estão riquíssimos!
A criança é o elo
que liga uma geração a outra geração. Assim sendo, só o facto de a colocar em
evidência destrói o sistema social e cria a ilusão de se ter atingido a
solidariedade entre as classes que constituem este mesmo sistema. Criança, rica
ou pobre, branca ou de outra cor, com ou sem perspetivas futuras, é posta no
altar dos grandes de coração, e mediante discursos de uma beleza chorosa e
circunstancial, e de fictícias prendas, cria-se-lhe a sensação de que ela,
criança, não está mais desamparada, não precisa mais preocupar-se com o seu
futuro, os adultos já lho asseguraram! Brinquem, sonhem, estudem, criem o vosso mundo fantástico!
Nós, os “grandes”, somos os construtores e os pilares do vosso amanhã!
Garantimo-vos, solenemente, que jamais sentireis na vossa carne o frio, a fome,
as repressões, o labor sujo e mal remunerado, a miséria e a humilhação. Tereis
habitação condigna, tereis escolas decentes e ensino gratuito, professores
compreensivos e sabedores, tereis espaços livres… Enfim, tereis o paraíso!
Quem pode
prometer? Quem cumpre, se promete? Não, não vamos confundir. As crianças não
são um problema específico. Elas não podem ser desinseridas do seu meio social
e político. Há crianças e crianças! Não vamos misturar. Não queiramos ver o
problema através de lentes côncavas ou convexas, as quais deturpam a realidade.
A verdade é esta: existem classes sociais, logo existem crianças em qualquer
destas classes. Estas classes não vivem da mesma maneira; nas crianças
refletem-se essas diferenças. É certo que a criança, enquanto tal, não se
apercebe imediatamente disso; pelo menos enquanto não penetra no outro “mundo”,
no mundo da criança privilegiada. É ao entrar na escola que ela se vai
aperceber, e de que maneira, e a partir daí… E a criança, filha da prostituta,
do marginal, do assassino? Essa é rejeitada, pura e simplesmente, pela
sociedade, por toda, não há espaço para ela. Não farão parte da sociedade
porque os seus pais não aceitam cumprir as regras por ela impostas. E assim
engrossarão a minisociedade marginal, ou subterrânea.
Não, não vamos
confundir. Não façamos «dias» do que quer que seja. A festa hipócrita que serve
para burguês distrair e proletário sonhar, não serve objetivamente a ninguém,
ou talvez sirva: o obscurantismo e o idealismo. Vejamos: aos Sequins de Ouro,
ou de qualquer metal, quem vai? As crianças do bairro da lata? Os filhos de
camponeses, ou mesmo de operários? Não! Vão apenas as crianças que aos quatro
anos já sabem recitar poesia! Vão as crianças que aos sete anos se comportam no
palco como verdadeiros profissionais! Não, não vão lá as crianças que em tenra
idade já têm que ajudar os seus progenitores nas lides dos campos, ou noutros
trabalhos pesados que as afasta da escola, fechando-lhes a porta da cultura,
colocando-as, desta maneira, em nítida desvantagem em relação àquelas que irão
frequentar escolas secundárias e superiores. Dir-nos-ão os espíritos conformados
que pobres sempre os houve e que nem todos podem ser doutores. Dizem mais: que
para trabalhar no campo ou na fábrica não é necessário ter frequentado a escola
para além do ensino básico; chega-lhes ler e escrever qualquer coisinha, e
contar o mísero salário que eles venham a receber!
Nem tudo está
perdido; o pessimismo é já meia derrota. A tendência, e neste caso a ciência prova-nos
isso, é para se modificar a situação. Levará tempo; lutar-se-á duramente, mas o
futuro será da criança, e será de todos. As mentalidades mudarão. A futura
sociedade não admitirá no seu meio privilegiados; a criança não mais se
envergonhará de ter nascido aqui ou ali. E todos os anos, todos os meses, e
todos os dias, serão dela e serão nossos.
Nota: este
texto foi publicado a 14/10/1979. As coisas têm vindo a melhorar, mas por vezes
fica-se com a sensação de que tudo regressa ao passado.
Joaquim Rocha
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