LEMBRANÇAS AMARGAS
romance
Por Joaquim A. Rocha
XXXIII
Correr não
adianta: a forca espera!
A terrível notícia chega. Dentro de pouco
tempo teria de vestir a roupa de soldado. Sentia-me impotente para mudar o
rumo das coisas; que bom seria evitar a partida, a mais que certa ida para a
monstruosa guerra colonial, mas a sociedade e as suas regras são bem mais
fortes do que o indivíduo. Assim, só me restará partir, contrariado, mais
infeliz do que nunca, a caminho da farda, da caserna, do injusto regulamento,
da África escaldante e feroz. O aviso é-me transmitido por um amigo:
- Ó Cândido, Cândido!
Vamos em Janeiro para a tropa, já está afixada a lista, tu vais para o Porto, eu
vou para Braga, juntamente com o Leonel.
- Só faltam três meses!
O pior é a guerra em África; aquilo nas colónias parece que não anda nada bem.
- Dizem que na
Guiné-Bissau é terrível, muitas doenças, muitas febres, e os gajos têm força,
estão a ser ajudados por países africanos vizinhos, o Senegal, a Guiné-Conacri,
além de outros. Se conseguissem a independência corriam com todos os brancos de
lá. Se não fôssemos nós ainda eles andavam na selva como os macacos! Só têm
razões para nos estarem agradecidos, mas não! A União Soviética também os
ajuda, e Cuba. Não sei que ganham com isso. Só se forem para os negros ficarem
comunistas como eles. Esperemos que a gente não vá lá parar, mas se formos…
- Angola e Moçambique
não devem ser melhor, a guerra é igual em todo o lado, e tanto se morre num
sítio como noutro; eu fiz tudo para emigrar, mas o raio do dinheiro…
- Eu não quis ir para o
estrangeiro, quero cumprir o serviço militar, o meu dever, um tipo não é homem
se não vai à tropa, os meus irmãos também foram, e até o meu pai; quando
regressar emigro com passaporte, o meu cunhado manda-me a carta de chamada.
- Mas se ficarmos
feridos…
- Oh, pá! Pode-se ficar
ferido na batalha ou numa oficina, atropelado na estrada, tu podes dar um golpe
no peito com a faca, e adeus, vais para os anjinhos, ou nas obras, ainda outro
dia morreu o senhor Romeu, o caiador, caiu da escada e zás! Para morrer basta
estar vivo.
- Isso é verdade, mas eu
preferia não arriscar, estou com um medo dos diabos; por outro lado, deixar
assim a nossa amada terra, por tanto tempo, ir combater, eu que sou tão
pacífico…
- Pacífico de mais;
olha que se fosse a mim, o que te fez a Bera… Ao Artur tinha-lhe esbofeteado a
cara, dava-lhe dois murros em cheio, partia-o em dois! Pelo menos isso. Tu
acobardaste-te; tiveste receio que ele te malhasse, olha quem, comigo não fazia
ele farinha, rebentava-lhe a focinheira.
- Esqueces-te que eu à
tua beira sou quase um anão. Se tivesse o teu corpo, a tua força… Tens quase
dois metros de altura, és um latagão; ainda outro dia deste uma grande coça no
Anselmo, e olha que ele não é nada fraco; eu, com este físico… Não me meto
nisso, só apanhava.
- Tens razão. Fiquei
furioso com o que ela te fez, mas claro, não era nada comigo, nem tu reagiste –
és um perfeito mono, um caguinchas!
- Vontades não me
faltaram, mas o fulano punha-me de molho uma semana, ele chegou a ameaçar-me; e
não era só ele, estavam lá os irmãos e cunhados; eu tenho amigos, mas nestas
ocasiões… Já sabes como é. Por outro lado, eu ponho-lhe as culpas a ela,
vendeu-se por francos franceses; como é possível andar três anos a dizer que
gostava de mim «és o meu amorzinho» e
de repente casar com outro?!
- As mulheres querem é
vestir bem, andar de carro, botar figura; tu não lhe podias dar essa vida, só
lhe podias consertar os sapatos de graça; deixa lá, quando voltarmos arranjamos
umas gajas boas como o milho, elas gostam dos heróis de guerra, vais ver.
- Herói! És muito
otimista, Golias; tomara eu voltar são e salvo. E quando regressarmos já não
haverá sequer uma rapariga casadoira na terra; os emigrantes levam-nas todas
para França, para o Canadá, para a Alemanha…
- Para nós sobrarão
pelo menos duas, se não vamos buscá-las à Galiza; as galegas são «mui guapas».
- Ainda no último
domingo estivemos com um rancho delas do outro lado do rio; são muito
simpáticas e bonitas, lá isso são.
- Eu não te disse!
Daqui a três anos já estaremos de volta, o tempo passa a correr.
- Se eu possuísse esse
teu entusiasmo; mas não, vou para o quartel como o condenado vai para a forca.
- Até pode ser que a
gente vá para Angola juntos; custava menos a passar o tempo.
- Não te iludas! O que
mais me custa também é deixar por aí a minha mãe, e agora o meu avô; ando a ver
se o meto no asilo, já falei com o senhor provedor… Também me vai custar perder
as partidas de sueca com os amigos, os matraquilhos, os jogos de futebol,
pescarias no rio Minho, até das pedras da rua vou ter saudades!
- Eh, pá! Relativamente
ao senhor provedor, ele é amigo dos meus pais, se quiseres eu digo-lhes para
eles lhe pedirem.
- Se me fizesses esse
grande favor. Já sabes como é: «nada
tens, nada vales».
- Infelizmente é assim,
mas a amizade também é importante, vamos lá a ver se neste caso ela servirá
para alguma coisa. Então até logo, e não desanimes.
- Seja o que Deus
quiser. Até logo.
- Mamã, o Golias, o
filho do senhor Custódio, veio-me dizer que o senhor provedor da Misericórdia
autorizou o avô a ir para o asilo já a partir da segunda-feira.
- Então vai a correr
agradecer ao senhor provedor, é um santo homem, estava preocupada com o velho,
aqui em casa não o queria, ele a mim não me é nada, e sempre me detestou.
- É meu avô, foi você
que o disse.
- E por ser teu avô é
que eu o deixei ficar aqui este tempo todo; olha eu, a tratar duma pessoa que
me fez tanto mal, seja tudo pelas almas do purgatório, que ele a mim não me
fazia isto, ai isso não, se pudesse ainda me causava mais estragos, ainda me
afundava mais!
- Isso são águas
passadas, o que lá vai lá vai, agora temos de olhar o futuro, estou satisfeito
que ele vá para o asilo, lá sempre terá quem olhe por ele, fico muito mais
sossegado.
- Comigo não te
preocupes, sempre me soube governar, nunca precisei dos filhos para nada,
canté, já tinha mirrado – mandam pelo natal um quilo de arroz, um quilo de
açúcar, e um quilo de bacalhau, era com isso que vivíamos todo o ano, ora era!
- Eu já ganho há muito
tempo para nós comermos, o que os meus irmãos de Lisboa mandam é apenas uma
lembrança, eles sabem que não é com isso que nós podemos sustentar-nos durante
um ano, eu estou farto de lhe dizer isto, você não me escuta, só vai para a
aldeia porque quer, é um vício, vai mais pela pinga e pelo convívio com essa
gente do campo.
- E continuarei a ir
visitar as minhas amigas, delas é que eu vivo, tenho muitas amizades por essas
aldeias fora, já os meus pais, que Deus lhes fale na alma, cultivavam essas
amizades, já vêm de longe.
- Foi uma herança
desastrosa; era preferível não conhecer ninguém. Que raio de amigas tem, que só
a querem ver bêbada, a cair pelas valetas!
- Dão-mo porque eu lhes
trabalho; se me emborracho é porque quero, ninguém me obriga a beber, eu é que
gosto, não é com esta idade que vou deixar de beber umas malgas de vinho.
- E a casa? Comigo na
tropa vai ficar quase sempre fechada; vai deixá-la estragar de certeza.
- Não te apoquente a
casa; já foi dos meus avós maternos, dos meus pais, o meu irmão morou aqui
muitos anos com a mulher e os filhos, não é agora que vai abaixo, as paredes
são de grossa pedra, quando vieres da tropa mandas consertá-la.
- Se eu for para África
você vai para Lisboa, para a casa da sua filha.
- Nem pensar, eu tenho
aqui a minha vidinha, os meus frangos, os meus coelhos, as minhas galinhas, o
meu gato… Canté! O que é que eu ia fazer para Lisboa - «rato do campo não quer cidade.» Vai tu para lá; eu já lá estive
quase três anos, chegou, não tenho boas recordações daquela malta.
- Passaram muitos anos…
- Mas nunca me esqueci,
foi lá que a minha má sina começou.
- Podia ter casado com
o fidalgo!
- Estás a brincar,
alguma vez ele casava comigo, uma criada de servir.
- Nas cartas que ele
lhe escreveu insinua…, parece dizer isso.
- Era só conversa, eu é
que o conheci, queria era fazer-me outro filho, canté! Como dizia a minha
saudosa mãe: «um já chega.» Sabes que
aquela amiga que me escrevia as cartas andava a querer namorar com ele?
- Quem era?
- A Rosária; depois
casou com o viúvo da pobre Gilberta, pai de uma menina. Como eu não sei
escrever, aproveitou-se.
- Incrível! Não se pode
confiar em ninguém. Está a ver a falta que faz saber ler e escrever? De
qualquer modo deveria ter voltado para Lisboa, podia ser que a criança fizesse
o milagre.
- A tua avó Isaura
afeiçoou-se-lhe, não a deixava ir.
- Então foi essa a
razão por que você também não foi.
- Uma das razões; outra
foi a de que comecei a namorar um rapaz daqui.
- Quem?
- O meu cunhado, o
viúvo da minha irmã Marília. Ela falecera jovem, tinha a Susana um ano de idade;
o Armando ficou viúvo ainda novo, com dois filhos pequenos, precisava de alguém
para tomar conta deles.
- Ficava tudo em
família. Afinal não chegaram a casar…
- Naquele tempo um
homem que tivesse um ordenado, por mais miserável que fosse, era considerado um
bom partido. A certa altura ele foi fazer serviço para Tronços e lá conheceu a
que depois foi mulher dele; deram-lhe coisa, em quinze dias que lá esteve modificou,
já não era o mesmo, a piolhosa, podia ser filha dele, e anda aí de bicicleta,
agora é viúva, mas não respeita a memória do marido, fê-lo sofrer imenso,
punha-lhe os cornos a torto-e-a-direito, nunca o respeitou, até com o enteado
mais velho, que era quase da idade dela, a cabra andou metida!
- E ele não dizia
nada?!
- Como havia de dizer?
Apanhou uma doença muito grave e esteve alguns anos entrevado; coitado, teve
pouca sorte, morreu-lhe a primeira esposa, ficou doente… Esta só ficou com ele
por causa da casa e do ordenado. Se ele não tivesse nada, não o aturava, não.
- Da Anastácia não teve
filhos?
- Não; ela nem para
isso serve.
- E os enteados:
ajudou-os a criar?
- Qual quê! O que ela
queria era paródia, foi a tua avó que os criou.
- Agora estão ambos no
Brasil.
- Foram mais ou menos
por alturas de nós virmos para a Vila. Esses já por lá entregarão a alma ao
criador; os que vão para esse país nunca mais voltam.
- Essa de você estar
para casar com o viúvo da sua irmã é que eu não sabia, nunca mo tinha contado;
agora compreendo porque não gosta da viúva do seu cunhado.
- Às vezes zangamo-nos,
outras vezes damo-nos mais ou menos, depende; olha que ela não parece mas
também lhe enxofra bem.
- Nunca a vi fazer
figuras tristes.
- Pois não.
Emborracha-se em casa, eu bem vejo entrarem os garrafões, não sai, deita-se a
dormir que nem um porco.
- Há nesta terra ainda
alguém que se aproveite?! Excluindo, claro, o senhor padre Alberto.
- Nem esse! Outro dia,
a Eugénia, sabes quem é, a mulher do Raimundo, disse-me que o homem dela o viu
em Ourense. Sabes o que andava lá fazer? Não sabes?
- Provavelmente em
visita a algum sacerdote conhecido dele.
- Anjinho! O marido da
Eugénia viu-o entrar numa casa de má fama; aqui passa por santo, em Espanha é
como os outros!
- Meu Deus; vocês, com
a vossa língua diabólica, nem sequer poupam os ministros do Senhor.
- Que julgas tu? Queres
que te diga quais os padres do concelho que têm amantes? E alguns deles já têm
filhos, chamam-lhe afilhados.
- Filhos de padres?
- Tu tens andado a
dormir; eles confessam-nas (quando eu era rapariga um quis avançar, mas eu dei-lhe para trás), e
depois, se elas derem azo a isso, toca a abusar; as parvas contam-lhes tudo,
eles dizem-lhes que andarem com eles é como serem esposas de Jesus Cristo, quando
morrerem vão para o céu, e as parvas acreditam e deitam-se com eles!
- É engraçado: os
emigrantes pedem normalmente ao pároco da freguesia para as protegerem e
vigiarem enquanto eles estiverem ausentes.
- E eles às vezes
aproveitam-se bem, que são homens como os outros, nasceram da mesma maneira,
têm as mesmas necessidades.
- Você vai para o
inferno se isso for mentira.
- Para o inferno vão os
sacerdotes, os anticristos, eu vou para o purgatório, esperar que Deus me chame
para a sua beira, nunca fiz mal a ninguém, critico, sou uma língua-de-trapos,
isso é verdade, mas não digo mentiras, que o Senhor me mate se digo mentiras.
Ainda outro dia um emigrante veio à pressa buscar a mulher, ai não, tinha sido
avisado que lhe andava com o padre, até dizem na aldeia que ela ia aviada!
- Meu Deus, como isto
está!
- Tu não sais aqui do
buraco, não vês nada, só tinhas olhos para a Bera e para as borracheiras da tua
mãe, mas olha que muita podridão vai por esse mundo de Cristo. Não te lembras
do caso do pároco de Chaviães? Esse deixou a igreja para se casar; dizem que o
bispo só autorizou porque a moça estava de bebé.
- Eu já não sei se
acredito ou não; inventam-se tantas coisas.
- A tropa a ti vai-te
fazer bem, abre-te os olhos, tens vinte anos mas é como tivesses quinze, o
mundo não é o que tu imaginas, há muita ruindade, muita gente que só procura
fazer o mal.
- Como você não teve
sorte na vida pensa que todo o mundo é ruim, só há maldade, só há trafulhas…
Olhe que não é bem desse modo.
- Quando voltares da
tropa já não pensarás da mesma maneira; também já fui como tu és agora, de olhos
tapados, ingénua, mas a vida mostrou-me a outra face, nunca mais acreditei em
ninguém, nem na própria família, apesar dos meus pais me terem ajudado muito,
coitados, fizeram o que puderam.
- Criaram-lhe dois
filhos…
- Eu não tive cabeça,
coitada de mim.
- Bem; vou falar com o
avô, vai ficar triste.
Sem comentários:
Enviar um comentário