sábado, 28 de dezembro de 2019

LEMBRANÇAS AMARGAS
 
romance
 
Por Joaquim A. Rocha





 


 
 
XXXIII
 

Correr não adianta: a forca espera!
 

     A terrível notícia chega. Dentro de pouco tempo teria de vestir a roupa de soldado. Sentia-me impotente para mudar o rumo das coisas; que bom seria evitar a partida, a mais que certa ida para a monstruosa guerra colonial, mas a sociedade e as suas regras são bem mais fortes do que o indivíduo. Assim, só me restará partir, contrariado, mais infeliz do que nunca, a caminho da farda, da caserna, do injusto regulamento, da África escaldante e feroz. O aviso é-me transmitido por um amigo:

 

- Ó Cândido, Cândido! Vamos em Janeiro para a tropa, já está afixada a lista, tu vais para o Porto, eu vou para Braga, juntamente com o Leonel.

- Só faltam três meses! O pior é a guerra em África; aquilo nas colónias parece que não anda nada bem.

- Dizem que na Guiné-Bissau é terrível, muitas doenças, muitas febres, e os gajos têm força, estão a ser ajudados por países africanos vizinhos, o Senegal, a Guiné-Conacri, além de outros. Se conseguissem a independência corriam com todos os brancos de lá. Se não fôssemos nós ainda eles andavam na selva como os macacos! Só têm razões para nos estarem agradecidos, mas não! A União Soviética também os ajuda, e Cuba. Não sei que ganham com isso. Só se forem para os negros ficarem comunistas como eles. Esperemos que a gente não vá lá parar, mas se formos…

- Angola e Moçambique não devem ser melhor, a guerra é igual em todo o lado, e tanto se morre num sítio como noutro; eu fiz tudo para emigrar, mas o raio do dinheiro…    

- Eu não quis ir para o estrangeiro, quero cumprir o serviço militar, o meu dever, um tipo não é homem se não vai à tropa, os meus irmãos também foram, e até o meu pai; quando regressar emigro com passaporte, o meu cunhado manda-me a carta de chamada.

- Mas se ficarmos feridos…

- Oh, pá! Pode-se ficar ferido na batalha ou numa oficina, atropelado na estrada, tu podes dar um golpe no peito com a faca, e adeus, vais para os anjinhos, ou nas obras, ainda outro dia morreu o senhor Romeu, o caiador, caiu da escada e zás! Para morrer basta estar vivo.  

- Isso é verdade, mas eu preferia não arriscar, estou com um medo dos diabos; por outro lado, deixar assim a nossa amada terra, por tanto tempo, ir combater, eu que sou tão pacífico…

- Pacífico de mais; olha que se fosse a mim, o que te fez a Bera… Ao Artur tinha-lhe esbofeteado a cara, dava-lhe dois murros em cheio, partia-o em dois! Pelo menos isso. Tu acobardaste-te; tiveste receio que ele te malhasse, olha quem, comigo não fazia ele farinha, rebentava-lhe a focinheira.  

- Esqueces-te que eu à tua beira sou quase um anão. Se tivesse o teu corpo, a tua força… Tens quase dois metros de altura, és um latagão; ainda outro dia deste uma grande coça no Anselmo, e olha que ele não é nada fraco; eu, com este físico… Não me meto nisso, só apanhava.

- Tens razão. Fiquei furioso com o que ela te fez, mas claro, não era nada comigo, nem tu reagiste – és um perfeito mono, um caguinchas!

- Vontades não me faltaram, mas o fulano punha-me de molho uma semana, ele chegou a ameaçar-me; e não era só ele, estavam lá os irmãos e cunhados; eu tenho amigos, mas nestas ocasiões… Já sabes como é. Por outro lado, eu ponho-lhe as culpas a ela, vendeu-se por francos franceses; como é possível andar três anos a dizer que gostava de mim «és o meu amorzinho» e de repente casar com outro?!  

- As mulheres querem é vestir bem, andar de carro, botar figura; tu não lhe podias dar essa vida, só lhe podias consertar os sapatos de graça; deixa lá, quando voltarmos arranjamos umas gajas boas como o milho, elas gostam dos heróis de guerra, vais ver.

- Herói! És muito otimista, Golias; tomara eu voltar são e salvo. E quando regressarmos já não haverá sequer uma rapariga casadoira na terra; os emigrantes levam-nas todas para França, para o Canadá, para a Alemanha…

- Para nós sobrarão pelo menos duas, se não vamos buscá-las à Galiza; as galegas são «mui guapas».

- Ainda no último domingo estivemos com um rancho delas do outro lado do rio; são muito simpáticas e bonitas, lá isso são.

- Eu não te disse! Daqui a três anos já estaremos de volta, o tempo passa a correr.     

- Se eu possuísse esse teu entusiasmo; mas não, vou para o quartel como o condenado vai para a forca.

- Até pode ser que a gente vá para Angola juntos; custava menos a passar o tempo.

- Não te iludas! O que mais me custa também é deixar por aí a minha mãe, e agora o meu avô; ando a ver se o meto no asilo, já falei com o senhor provedor… Também me vai custar perder as partidas de sueca com os amigos, os matraquilhos, os jogos de futebol, pescarias no rio Minho, até das pedras da rua vou ter saudades!

- Eh, pá! Relativamente ao senhor provedor, ele é amigo dos meus pais, se quiseres eu digo-lhes para eles lhe pedirem.    

- Se me fizesses esse grande favor. Já sabes como é: «nada tens, nada vales».

- Infelizmente é assim, mas a amizade também é importante, vamos lá a ver se neste caso ela servirá para alguma coisa. Então até logo, e não desanimes.

- Seja o que Deus quiser. Até logo. 

 

 


- Mamã, o Golias, o filho do senhor Custódio, veio-me dizer que o senhor provedor da Misericórdia autorizou o avô a ir para o asilo já a partir da segunda-feira.

- Então vai a correr agradecer ao senhor provedor, é um santo homem, estava preocupada com o velho, aqui em casa não o queria, ele a mim não me é nada, e sempre me detestou.

- É meu avô, foi você que o disse.

- E por ser teu avô é que eu o deixei ficar aqui este tempo todo; olha eu, a tratar duma pessoa que me fez tanto mal, seja tudo pelas almas do purgatório, que ele a mim não me fazia isto, ai isso não, se pudesse ainda me causava mais estragos, ainda me afundava mais!

- Isso são águas passadas, o que lá vai lá vai, agora temos de olhar o futuro, estou satisfeito que ele vá para o asilo, lá sempre terá quem olhe por ele, fico muito mais sossegado.

- Comigo não te preocupes, sempre me soube governar, nunca precisei dos filhos para nada, canté, já tinha mirrado – mandam pelo natal um quilo de arroz, um quilo de açúcar, e um quilo de bacalhau, era com isso que vivíamos todo o ano, ora era!

- Eu já ganho há muito tempo para nós comermos, o que os meus irmãos de Lisboa mandam é apenas uma lembrança, eles sabem que não é com isso que nós podemos sustentar-nos durante um ano, eu estou farto de lhe dizer isto, você não me escuta, só vai para a aldeia porque quer, é um vício, vai mais pela pinga e pelo convívio com essa gente do campo.

- E continuarei a ir visitar as minhas amigas, delas é que eu vivo, tenho muitas amizades por essas aldeias fora, já os meus pais, que Deus lhes fale na alma, cultivavam essas amizades, já vêm de longe.

- Foi uma herança desastrosa; era preferível não conhecer ninguém. Que raio de amigas tem, que só a querem ver bêbada, a cair pelas valetas! 

- Dão-mo porque eu lhes trabalho; se me emborracho é porque quero, ninguém me obriga a beber, eu é que gosto, não é com esta idade que vou deixar de beber umas malgas de vinho.

- E a casa? Comigo na tropa vai ficar quase sempre fechada; vai deixá-la estragar de certeza.

- Não te apoquente a casa; já foi dos meus avós maternos, dos meus pais, o meu irmão morou aqui muitos anos com a mulher e os filhos, não é agora que vai abaixo, as paredes são de grossa pedra, quando vieres da tropa mandas consertá-la.

- Se eu for para África você vai para Lisboa, para a casa da sua filha.

- Nem pensar, eu tenho aqui a minha vidinha, os meus frangos, os meus coelhos, as minhas galinhas, o meu gato… Canté! O que é que eu ia fazer para Lisboa - «rato do campo não quer cidade.» Vai tu para lá; eu já lá estive quase três anos, chegou, não tenho boas recordações daquela malta.

- Passaram muitos anos…

- Mas nunca me esqueci, foi lá que a minha má sina começou.

- Podia ter casado com o fidalgo!

- Estás a brincar, alguma vez ele casava comigo, uma criada de servir.

- Nas cartas que ele lhe escreveu insinua…, parece dizer isso.

- Era só conversa, eu é que o conheci, queria era fazer-me outro filho, canté! Como dizia a minha saudosa mãe: «um já chega.» Sabes que aquela amiga que me escrevia as cartas andava a querer namorar com ele?

- Quem era?

- A Rosária; depois casou com o viúvo da pobre Gilberta, pai de uma menina. Como eu não sei escrever, aproveitou-se.

- Incrível! Não se pode confiar em ninguém. Está a ver a falta que faz saber ler e escrever? De qualquer modo deveria ter voltado para Lisboa, podia ser que a criança fizesse o milagre.

- A tua avó Isaura afeiçoou-se-lhe, não a deixava ir.

- Então foi essa a razão por que você também não foi.

- Uma das razões; outra foi a de que comecei a namorar um rapaz daqui.       

- Quem?

- O meu cunhado, o viúvo da minha irmã Marília. Ela falecera jovem, tinha a Susana um ano de idade; o Armando ficou viúvo ainda novo, com dois filhos pequenos, precisava de alguém para tomar conta deles. 

- Ficava tudo em família. Afinal não chegaram a casar…

- Naquele tempo um homem que tivesse um ordenado, por mais miserável que fosse, era considerado um bom partido. A certa altura ele foi fazer serviço para Tronços e lá conheceu a que depois foi mulher dele; deram-lhe coisa, em quinze dias que lá esteve modificou, já não era o mesmo, a piolhosa, podia ser filha dele, e anda aí de bicicleta, agora é viúva, mas não respeita a memória do marido, fê-lo sofrer imenso, punha-lhe os cornos a torto-e-a-direito, nunca o respeitou, até com o enteado mais velho, que era quase da idade dela, a cabra andou metida!

- E ele não dizia nada?!

- Como havia de dizer? Apanhou uma doença muito grave e esteve alguns anos entrevado; coitado, teve pouca sorte, morreu-lhe a primeira esposa, ficou doente… Esta só ficou com ele por causa da casa e do ordenado. Se ele não tivesse nada, não o aturava, não.

- Da Anastácia não teve filhos?

- Não; ela nem para isso serve.

- E os enteados: ajudou-os a criar?

- Qual quê! O que ela queria era paródia, foi a tua avó que os criou.

- Agora estão ambos no Brasil.

- Foram mais ou menos por alturas de nós virmos para a Vila. Esses já por lá entregarão a alma ao criador; os que vão para esse país nunca mais voltam.

- Essa de você estar para casar com o viúvo da sua irmã é que eu não sabia, nunca mo tinha contado; agora compreendo porque não gosta da viúva do seu cunhado.

- Às vezes zangamo-nos, outras vezes damo-nos mais ou menos, depende; olha que ela não parece mas também lhe enxofra bem.

- Nunca a vi fazer figuras tristes.

- Pois não. Emborracha-se em casa, eu bem vejo entrarem os garrafões, não sai, deita-se a dormir que nem um porco.

- Há nesta terra ainda alguém que se aproveite?! Excluindo, claro, o senhor padre Alberto.

- Nem esse! Outro dia, a Eugénia, sabes quem é, a mulher do Raimundo, disse-me que o homem dela o viu em Ourense. Sabes o que andava lá fazer? Não sabes?

- Provavelmente em visita a algum sacerdote conhecido dele.

- Anjinho! O marido da Eugénia viu-o entrar numa casa de má fama; aqui passa por santo, em Espanha é como os outros!

- Meu Deus; vocês, com a vossa língua diabólica, nem sequer poupam os ministros do Senhor.  

- Que julgas tu? Queres que te diga quais os padres do concelho que têm amantes? E alguns deles já têm filhos, chamam-lhe afilhados.

- Filhos de padres?

- Tu tens andado a dormir; eles confessam-nas (quando eu era rapariga um quis avançar, mas eu dei-lhe para trás), e depois, se elas derem azo a isso, toca a abusar; as parvas contam-lhes tudo, eles dizem-lhes que andarem com eles é como serem esposas de Jesus Cristo, quando morrerem vão para o céu, e as parvas acreditam e deitam-se com eles!

- É engraçado: os emigrantes pedem normalmente ao pároco da freguesia para as protegerem e vigiarem enquanto eles estiverem ausentes.

- E eles às vezes aproveitam-se bem, que são homens como os outros, nasceram da mesma maneira, têm as mesmas necessidades.

- Você vai para o inferno se isso for mentira.

- Para o inferno vão os sacerdotes, os anticristos, eu vou para o purgatório, esperar que Deus me chame para a sua beira, nunca fiz mal a ninguém, critico, sou uma língua-de-trapos, isso é verdade, mas não digo mentiras, que o Senhor me mate se digo mentiras. Ainda outro dia um emigrante veio à pressa buscar a mulher, ai não, tinha sido avisado que lhe andava com o padre, até dizem na aldeia que ela ia aviada!

- Meu Deus, como isto está!

- Tu não sais aqui do buraco, não vês nada, só tinhas olhos para a Bera e para as borracheiras da tua mãe, mas olha que muita podridão vai por esse mundo de Cristo. Não te lembras do caso do pároco de Chaviães? Esse deixou a igreja para se casar; dizem que o bispo só autorizou porque a moça estava de bebé.

- Eu já não sei se acredito ou não; inventam-se tantas coisas.

- A tropa a ti vai-te fazer bem, abre-te os olhos, tens vinte anos mas é como tivesses quinze, o mundo não é o que tu imaginas, há muita ruindade, muita gente que só procura fazer o mal.

- Como você não teve sorte na vida pensa que todo o mundo é ruim, só há maldade, só há trafulhas… Olhe que não é bem desse modo.

- Quando voltares da tropa já não pensarás da mesma maneira; também já fui como tu és agora, de olhos tapados, ingénua, mas a vida mostrou-me a outra face, nunca mais acreditei em ninguém, nem na própria família, apesar dos meus pais me terem ajudado muito, coitados, fizeram o que puderam.

- Criaram-lhe dois filhos…

- Eu não tive cabeça, coitada de mim.

- Bem; vou falar com o avô, vai ficar triste.   
 


 

















 




 




 





 





 





 






 






 







 







 







 








 








 









 









 









 










 










 











 











 






 

 

 

 

 

 

 



























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