sábado, 21 de dezembro de 2019

ENTRE O SONHO E A REALIDADE

                                                                                 Por Joaquim A. Rocha





CORDEIRO, Ricardo (Silvestre). Filho de Ricardo Esteves Cordeiro, gerente da filial em Penso, Melgaço, dos Grandes Armazéns Marcelino Ilídio Pereira & C.ª – Irmão -, com sede em Lisboa, e de Felismina, ou Felisménia, Gonçalves, proprietária, moradores no lugar de Paranhão. Neto paterno de João Esteves Cordeiro e de Rosa Lourenço; neto materno de José Gonçalves e de Rosa Maria Exposta. Nasceu em Penso, Melgaço, a 16/11/1904 e foi batizado na igreja católica a 20 desse mês e ano. Padrinhos: António Manuel Fernandes e sua mulher, Maria Rosa Garcia, proprietários, moradores no lugar de Bairro Grande. // A 2/7/1914 fez exame do 1.º grau na escola Conde de Ferreira, Vila, obtendo um «ótimo» (Correio de Melgaço n.º 106, de 7/7/1914). // Foi novo para Lisboa, onde trabalhou como empregado de escritório nos referidos Armazéns (ver Notícias de Melgaço n.º 215, de 3/12/1933). // Colaborava regularmente nos jornais “Notícias de Melgaço” e “Terra Minhota”, este último de Monção. // Morreu tuberculoso, na capital do país, a 26/10/1935, com apenas trinta e um anos de idade (Notícias de Melgaço n.º 290, de 10/11/1935). // Creio que se tivesse estudado mais, se vivesse mais tempo, e com saúde, teria sido um escritor razoável. Talento não lhe faltava; porém, as três parcas decidiram encurtar-lhe a vida, e só elas é que têm esse poder. Nós, os simples mortais, nada podemos fazer contra os deuses. A pequena história que a seguir vai ler, caro leitor, é semelhante a tantas outras. O jovem apaixona-se, ela julga estar pelo beicinho, mas descobre que afinal a sua paixão não é bastante forte para assumir um compromisso que pode durar uma vida. Age com rapidez, para não se arrepender mais tarde. Ele sofrerá, é certo, mas como é novo depressa arranjará outra namorada, esquecendo aquela. // O local onde se encontraram pela primeira vez parece ser nas Termas do Peso, Melgaço. Todos os anos os hotéis: Ranhada, Rocha, Figueiroa, Boavista, etc., se enchiam de hóspedes; os doentes iam tratar-se da diabetes com a água mineral milagrosa. Alguns melhoravam, e daí a fama que essas águas tiveram em Portugal e não só. Na década de sessenta do século vinte, devido em parte à guerra colonial, os jovens fugiram, ou emigraram, para França, Alemanha, Suíça, etc., e as termas de Melgaço foram morrendo pouco a pouco, devido à falta de pessoal e à idade dos proprietários dos hotéis. // Existe também a hipótese de estarmos perante um conto ficcional, uma pequena história de amor falhada. A realidade e a ficção por vezes confundem-se. Vamos então conhecer o interessante texto. Lê-se no Notícias de Melgaço n.º 3, de 3/3/1929:
 


 

 
 

«O DESTINO CRUEL. O mês de Julho tinha-se vestido de galas para começar a receber os filhos da terra, e também os forasteiros que nesta quadra ali vão descansar às vezes, de alguns anos de trabalhos. Pelos campos, e pelos montes, a verdura, em um matiz variado, deleitava-nos o olhar, em uma contemplação de êxtase. Toda aquela policromia de cores e tons esquisitos fazia nascer nos nossos corações – ainda nos mais insensíveis – ilusões que se arreigam ao espírito e que nos tornam a vida imaginária e linda. Os dias esplêndidos de verão, abundantes de sol, corriam velozes, numa atmosfera cor de esperança, muito deslumbrante a desaparecer no azul do infinito. Ao desabrochar desta apoteose variegada de tons e de deleites, olhando as belezas naturais da minha terra, principiavam a chegar alguns rapazes para férias. Por um dia de calmaria insuportável fui surpreendido com o abraço de um amigo, que veio a ser depois um companheiro de folguedos e inseparável nalgumas regiões para que fomos convidados. E como destas pequenas festas nascem sempre inclinações e simpatias particulares, o meu amigo confessou sentir o coração desassossegado, sintoma seguro de que distinguia uma menina xis que também não se mostrava indiferente. Organizaram-se passeios, que se realizaram, e o parzinho notava-se quase pela ingenuidade do conjunto, naqueles rápidos e breves divertimentos. Sucediam-se os dias maquinalmente naquela pressa enorme de nos fazerem velhos, sem que tivesse havido entre eles um desabafo que legalizasse a simpatia bem visível, que todos nós presenciávamos. Ele, pouco experiente em assuntos amorosos, começou a andar arredio, ao mesmo tempo que se lhe proporcionavam várias visitas a uma estância de águas, onde estavam a veraneio um grupo de gentis pequenas, chegadas da cidade. Se até aqui o seu sentir tinha sido calmo e quase comodista, sem notar nele estusiasmos, com o aparecimento destas meninas reparou em si e apercebeu ideias novas, com projetos a sorrirem-lhe. Era-lhe muito aprazível sempre que o acaso o levava a falar-lhes ou vê-las, e neste desenvolvimento de uma grande simpatia que já denotava, pensou em se mostrar interessado por uma, que a sua sensibilidade elegeu de entre todas. Ainda que muito dissimuladamente analisava ela este desenrolar e na aparência parecia não lhe passar desapercebido o que vinha vendo, reparando bem na distinção de que se via alvo. E porque o tempo não espera, chegou o dia delas deixarem a povoaçãozinha minhota, partindo em viagem de recreio para o sul do país. Ou por casualidade, ou já por um interesse justificado, tinha-se falado entre eles num encontro para o regresso definitivo à cidade e, como também estava de partida, no dia marcado vem encontra-las tomando um expresso que as conduziria à formosa Lisboa. O encontro deles, a fingir mera coincidência, foi sumamente agradável para ambos e muito especialmente para ele que no decorrer da viagem decerto viu firmar-se mais aquele nervosismo que o devia inquietar. De vez enquanto olha-se a um relógio que conta vertiginosamente os minutos e ao darem por eles a máquina silva, anunciando o fim da viagem. Despedem-se, entrecortando olhares de saudade e tristeza, naquela separação rápida. // Estávamos por Setembro e na costa do sol decorriam com muito brilho (…) as festas de verão pelos parques e pelos casinos, sempre repletos de uma frequência cosmopolita. Como complemento da temporada calmosa, foram as recém-chegadas para ali compartilhar daqueles divertimentos, e o meu bom amigo impelido por uma força oculta que lhe fazia sonhos lindos a construir castelinhos no ar, procurava vê-la o mais amiúde possível, seguindo-a atentamente na impaciência de a olhar a todo o instante. Vinha depois o cair da noite precocemente, a afastá-los da vista e a juntá-los cada vez mais pelo pulsar dos corações. Ficava para trás mais um domingo, a pedir desde aquele momento e a orar ininterruptamente por outro, que os havia de colocar vis-à-vis matando saudades e animando desejos. E não foi poucas vezes que o meu interlocutor – ou seja, sempre – fugia para os Estoris logo que as sabia para lá a gozar as delícias daquele ambiente salutar e animador. Decorreram dias, uns sobre os outros; o verão foi desaparecendo, e as festas extinguindo-se (*) conforme a ordem dos programas que as ia riscando à medida das suas realizações. Agora, porque a costa do sol se despovoava, fugindo também para a sua casa as encantadoras pequenas de que me venho ocupando muito gostosamente. Esgotados os assuntos desportivos, os certames e os concursos, passa-se a desviar toda a atenção para o cinema e para o teatro, que agora facilita a continuação de a ver ainda a intervalos curtos, ao passo que isto vai sucedendo, ele pense em ir direito ao fim que já há muito tem em vista e – pode dizer-se – seguro de êxito, resolve escrever-lhe, dando a conhecer numa confissão plena o que há muito o inquietava. A carta desaparece das suas mãos trémulas e é recebida por ela que, orgulhosa, a lê atentamente. Dá a conhecer aos pais o que se passa e estes, depois dos conselhos protocolares, que são de uso, não se opõem. E então ela, logo de seguida, responde-lhe em palavras repousadas de sinceridade, aceitando a corte, manifestando-lhe o receio que sempre nos envaidece de a não enganar, tomando-lhe o tempo em vão. Parecia agora, pelo menos aparentemente, uma florescência ardente no namoro, denunciando um entusiasmo imenso que só se aquietaria quando um laço sagrado os unisse para sempre. Mas o aforismo não mente e não raras vezes “as aparências iludem”, e esta enganou a todos que os viam. Veio o natal, a festa íntima da família, e ela para o marcar em intimidade e consideração rasgada, para ela, oferece-lhe uma prenda, como que a aproximá-los, bem querendo-o. Ele sente-se desvanecido e sem perda de tempo retribui a seu modo, mas bem do fundo da alma e do íntimo do coração. Seguem-se uns cinco dias, monótonos em comentário e ao cabo ela repara numa caixa de papel e impensada e levianamente segura uma caneta nas mãos para ditar a sentença que havia de lhe granjear censuras e iria ferir um coração inexperiente a estes golpes e por completo alheio, sem sequer sonhar no que se desenhava na sombra. A missiva intolerante fecha-se e – como papel a repugnar-lhe – é lançada no correio, que a há-de levar ao seu destino. // Ouvia-se por toda a Lisboa um ruído ensurdecedor e vário em toques e apitos, dando-nos a conhecer a passagem do ano. Comenta-se em família este facto ao tombar das doze badaladas do relógio que nos ouve e depois dos hurras e das saúdes procuramos o leito, cogitando agora a sós, connosco, num desejo fremente de uma felicidade interminável para nós e da realização rápida e segura dos nossos sonhos cor-de-rosa. Depois de um sono reparador, ao acordar, quase surpresos, deparamos com um dia lindo, a estimular o nosso sentir, e a impregnar-nos de uma alegria doida e indizível. E pelas onze horas – Praça Duque da Terceira, n.º 10 – chega às mãos dele a alvura de um envelope que encerrava os crepes daquele coração pequenino, porque não chegava, nem se repartia para mais ninguém senão para ela. Assaltou-o a surpresa que não previa, esfrega os olhos como a acordar de um pesadelo tremendo, e chega excitado ao fim daquela carta que lhe queimava os dedos. Lindo princípio de ano - grita todo o seu íntimo revoltado, a jurar vingança. Mas chama-se à realidade, procura acalmar-se, sossegar o espírito, que o vê confuso, analisando as coisas a frio, quando supõe ver ziguezagueando-lhe na frente em dísticos grandes e palpáveis, onde se lê: “consideram-se as ações conforme a pessoa que as pratica.” E então ele, pobre rapaz, que toda a imensidade não comportava senão perfume dela a evolar-se e a seduzi-lo. // Via-se onde ela não estava, naquela candidez pura de quem nunca amou ninguém, e está virgem de pensamentos confusos a torvarem-lhe (**) a adoração, com que sempre a lembrava! Qualquer personagem amoroso que passasse na tela, ou no palco, mostrando-se bom, a seus olhos era ela quem ele via, tornando-o mais sensível. Mas porque nesta vida é preciso não ter acanhamentos e reunir um poucochinho de malicioso, ela principiou a subir no seu pedestal de vaidades e grandezas e, colocando-se lá em cima, divisa-o homem feito pigmeu, a desaparecer-lhe da vista, julgando não a compreender no seu diálogo. Concluiu que era uma vida artificial que estava levando, que a abafava e, sem olhar a diplomacias nem a meios inteligentes, corta cerce o fio que a prendia e já escaldava! // Procuro na minha mente a desculpa que a pudesse absolver deste gesto impensado e por mais que me esforce só choco com frases de crítica e de reprovação à sua leveza de pensar. É tão bonito: sermos corretos, leais e ponderados; qualidades reunidas a enobrecer uma alma. Mas já não se usa, é velho e pouco prático este raciocínio, e então não se procuram meios para se alcançarem fins. Foi desta maneira que feneceu uma linda ilusão, com a crueldade frisante e [impassível] de um coração – que os poetas dizem frágil – mas inúmeras vezes empedernido e estéril// Lisboa, Janeiro de 1929. Ricardo E. Cordeiro Junior. /// (*) No texto do jornal está escrito «distinguindo-se». /// (**) Também podia ter escrito «a turvarem-lhe...»         

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