ENTRE O SONHO E A REALIDADE
Por Joaquim A. Rocha
CORDEIRO, Ricardo (Silvestre). Filho de Ricardo
Esteves Cordeiro, gerente da filial em Penso, Melgaço, dos Grandes Armazéns
Marcelino Ilídio Pereira & C.ª – Irmão -, com sede em Lisboa, e de Felismina,
ou Felisménia, Gonçalves, proprietária, moradores no lugar de Paranhão. Neto
paterno de João Esteves Cordeiro e de Rosa Lourenço; neto materno de José
Gonçalves e de Rosa Maria Exposta. Nasceu em Penso, Melgaço, a 16/11/1904 e foi
batizado na igreja católica a 20 desse mês e ano. Padrinhos: António Manuel
Fernandes e sua mulher, Maria Rosa Garcia, proprietários, moradores no lugar de
Bairro Grande. // A 2/7/1914 fez exame do 1.º grau na escola Conde de Ferreira,
Vila, obtendo um «ótimo» (Correio de Melgaço n.º
106, de 7/7/1914).
// Foi novo para Lisboa, onde trabalhou como empregado de escritório nos
referidos Armazéns (ver
Notícias de Melgaço n.º 215, de 3/12/1933). // Colaborava regularmente nos jornais
“Notícias de Melgaço” e “Terra Minhota”, este último de Monção. // Morreu tuberculoso,
na capital do país, a 26/10/1935, com apenas trinta e um anos de idade (Notícias de Melgaço n.º
290, de 10/11/1935).
// Creio que se tivesse estudado mais, se vivesse mais tempo, e com saúde,
teria sido um escritor razoável. Talento não lhe faltava; porém, as três parcas
decidiram encurtar-lhe a vida, e só elas é que têm esse poder. Nós, os simples
mortais, nada podemos fazer contra os deuses. A pequena história que a seguir
vai ler, caro leitor, é semelhante a tantas outras. O jovem apaixona-se, ela
julga estar pelo beicinho, mas descobre que afinal a sua paixão não é bastante
forte para assumir um compromisso que pode durar uma vida. Age com rapidez,
para não se arrepender mais tarde. Ele sofrerá, é certo, mas como é novo
depressa arranjará outra namorada, esquecendo aquela. // O local onde se
encontraram pela primeira vez parece ser nas Termas do Peso, Melgaço. Todos os
anos os hotéis: Ranhada, Rocha, Figueiroa, Boavista, etc., se enchiam de
hóspedes; os doentes iam tratar-se da diabetes com a água mineral milagrosa. Alguns
melhoravam, e daí a fama que essas águas tiveram em Portugal e não só. Na
década de sessenta do século vinte, devido em parte à guerra colonial, os
jovens fugiram, ou emigraram, para França, Alemanha, Suíça, etc., e as termas
de Melgaço foram morrendo pouco a pouco, devido à falta de pessoal e à idade
dos proprietários dos hotéis. // Existe também a hipótese de estarmos perante
um conto ficcional, uma pequena história de amor falhada. A realidade e a
ficção por vezes confundem-se. Vamos então conhecer o interessante texto. Lê-se
no Notícias de Melgaço n.º 3, de 3/3/1929:
«O DESTINO CRUEL. O mês de Julho tinha-se vestido de galas para
começar a receber os filhos da terra, e também os forasteiros que nesta quadra
ali vão descansar às vezes, de alguns anos de trabalhos. Pelos campos, e pelos
montes, a verdura, em um matiz variado, deleitava-nos o olhar, em uma
contemplação de êxtase. Toda aquela policromia de cores e tons esquisitos fazia
nascer nos nossos corações – ainda nos mais insensíveis – ilusões que se
arreigam ao espírito e que nos tornam a vida imaginária e linda. Os dias
esplêndidos de verão, abundantes de sol, corriam velozes, numa atmosfera cor de
esperança, muito deslumbrante a desaparecer no azul do infinito. Ao desabrochar
desta apoteose variegada de tons e de deleites, olhando as belezas naturais da
minha terra, principiavam a chegar alguns rapazes para férias. Por um dia de
calmaria insuportável fui surpreendido com o abraço de um amigo, que veio a ser
depois um companheiro de folguedos e inseparável nalgumas regiões para que
fomos convidados. E como destas pequenas festas nascem sempre inclinações e
simpatias particulares, o meu amigo confessou sentir o coração desassossegado,
sintoma seguro de que distinguia uma menina xis que também não se mostrava
indiferente. Organizaram-se passeios, que se realizaram, e o parzinho notava-se
quase pela ingenuidade do conjunto, naqueles rápidos e breves divertimentos.
Sucediam-se os dias maquinalmente naquela pressa enorme de nos fazerem velhos,
sem que tivesse havido entre eles um desabafo que legalizasse a simpatia bem
visível, que todos nós presenciávamos. Ele, pouco experiente em assuntos
amorosos, começou a andar arredio, ao mesmo tempo que se lhe proporcionavam
várias visitas a uma estância de águas, onde estavam a veraneio um grupo de
gentis pequenas, chegadas da cidade. Se até aqui o seu sentir tinha sido calmo
e quase comodista, sem notar nele estusiasmos, com o aparecimento destas
meninas reparou em si e apercebeu ideias novas, com projetos a sorrirem-lhe.
Era-lhe muito aprazível sempre que o acaso o levava a falar-lhes ou vê-las, e
neste desenvolvimento de uma grande simpatia que já denotava, pensou em se
mostrar interessado por uma, que a sua sensibilidade elegeu de entre todas.
Ainda que muito dissimuladamente analisava ela este desenrolar e na aparência
parecia não lhe passar desapercebido o que vinha vendo, reparando bem na
distinção de que se via alvo. E porque o tempo não espera, chegou o dia delas
deixarem a povoaçãozinha minhota, partindo em viagem de recreio para o sul do
país. Ou por casualidade, ou já por um interesse justificado, tinha-se falado
entre eles num encontro para o regresso definitivo à cidade e, como também
estava de partida, no dia marcado vem encontra-las tomando um expresso que as
conduziria à formosa Lisboa. O encontro deles, a fingir mera coincidência, foi
sumamente agradável para ambos e muito especialmente para ele que no decorrer
da viagem decerto viu firmar-se mais aquele nervosismo que o devia inquietar.
De vez enquanto olha-se a um relógio que conta vertiginosamente os minutos e ao
darem por eles a máquina silva, anunciando o fim da viagem. Despedem-se,
entrecortando olhares de saudade e tristeza, naquela separação rápida. //
Estávamos por Setembro e na costa do sol decorriam com muito brilho (…) as
festas de verão pelos parques e pelos casinos, sempre repletos de uma
frequência cosmopolita. Como complemento da temporada calmosa, foram as
recém-chegadas para ali compartilhar daqueles divertimentos, e o meu bom amigo
impelido por uma força oculta que lhe fazia sonhos lindos a construir
castelinhos no ar, procurava vê-la o mais amiúde possível, seguindo-a
atentamente na impaciência de a olhar a todo o instante. Vinha depois o cair da
noite precocemente, a afastá-los da vista e a juntá-los cada vez mais pelo
pulsar dos corações. Ficava para trás mais um domingo, a pedir desde aquele
momento e a orar ininterruptamente por outro, que os havia de colocar vis-à-vis
matando saudades e animando desejos. E não foi poucas vezes que o meu
interlocutor – ou seja, sempre – fugia para os Estoris logo que as sabia para
lá a gozar as delícias daquele ambiente salutar e animador. Decorreram dias, uns
sobre os outros; o verão foi desaparecendo, e as festas extinguindo-se (*)
conforme a ordem dos programas que as ia riscando à medida das suas
realizações. Agora, porque a costa do sol se despovoava, fugindo também para a
sua casa as encantadoras pequenas de que me venho ocupando muito gostosamente.
Esgotados os assuntos desportivos, os certames e os concursos, passa-se a desviar
toda a atenção para o cinema e para o teatro, que agora facilita a continuação
de a ver ainda a intervalos curtos, ao passo que isto vai sucedendo, ele pense
em ir direito ao fim que já há muito tem em vista e – pode dizer-se – seguro de
êxito, resolve escrever-lhe, dando a conhecer numa confissão plena o que há
muito o inquietava. A carta desaparece das suas mãos trémulas e é recebida por
ela que, orgulhosa, a lê atentamente. Dá a conhecer aos pais o que se passa e
estes, depois dos conselhos protocolares, que são de uso, não se opõem. E então
ela, logo de seguida, responde-lhe em palavras repousadas de sinceridade,
aceitando a corte, manifestando-lhe o receio que sempre nos envaidece de a não
enganar, tomando-lhe o tempo em vão. Parecia agora, pelo menos aparentemente,
uma florescência ardente no namoro, denunciando um entusiasmo imenso que só se
aquietaria quando um laço sagrado os unisse para sempre. Mas o aforismo não
mente e não raras vezes “as aparências iludem”, e esta enganou a todos que os viam.
Veio o natal, a festa íntima da família, e ela para o marcar em intimidade e
consideração rasgada, para ela, oferece-lhe uma prenda, como que a
aproximá-los, bem querendo-o. Ele sente-se desvanecido e sem perda de tempo
retribui a seu modo, mas bem do fundo da alma e do íntimo do coração. Seguem-se
uns cinco dias, monótonos em comentário e ao cabo ela repara numa caixa de
papel e impensada e levianamente segura uma caneta nas mãos para ditar
a sentença que havia de lhe granjear censuras e iria ferir um coração inexperiente a estes golpes e por
completo alheio, sem sequer sonhar no que se desenhava na sombra. A missiva
intolerante fecha-se e – como papel a repugnar-lhe – é lançada no correio, que
a há-de levar ao seu destino. // Ouvia-se por toda a Lisboa um ruído ensurdecedor
e vário em toques e apitos, dando-nos a conhecer a passagem do ano. Comenta-se
em família este facto ao tombar das doze badaladas do relógio que nos ouve e
depois dos hurras e das saúdes procuramos o leito, cogitando agora a sós,
connosco, num desejo fremente de uma felicidade interminável para nós e da
realização rápida e segura dos nossos sonhos cor-de-rosa. Depois de um sono
reparador, ao acordar, quase surpresos, deparamos com um dia lindo, a estimular
o nosso sentir, e a impregnar-nos de uma alegria doida e indizível. E pelas
onze horas – Praça Duque da Terceira, n.º 10 – chega às mãos dele a alvura de
um envelope que encerrava os crepes daquele coração pequenino, porque não
chegava, nem se repartia para mais ninguém senão para ela. Assaltou-o a surpresa
que não previa, esfrega os olhos como a acordar de um pesadelo tremendo, e
chega excitado ao fim daquela carta que lhe queimava os dedos. Lindo princípio
de ano - grita todo o seu íntimo revoltado, a jurar vingança. Mas chama-se à
realidade, procura acalmar-se, sossegar o espírito, que o vê confuso,
analisando as coisas a frio, quando supõe ver ziguezagueando-lhe na frente em
dísticos grandes e palpáveis, onde se lê: “consideram-se as ações conforme a
pessoa que as pratica.” E então ele, pobre rapaz, que toda a imensidade não
comportava senão perfume dela a evolar-se e a seduzi-lo. // Via-se onde ela não
estava, naquela candidez pura de quem nunca amou ninguém, e está virgem de
pensamentos confusos a torvarem-lhe (**) a adoração, com que sempre a lembrava!
Qualquer personagem amoroso que passasse na tela, ou no palco, mostrando-se
bom, a seus olhos era ela quem ele via, tornando-o mais sensível. Mas porque
nesta vida é preciso não ter acanhamentos e reunir um poucochinho de malicioso,
ela principiou a subir no seu pedestal de vaidades e grandezas e, colocando-se
lá em cima, divisa-o homem feito pigmeu, a desaparecer-lhe da vista, julgando
não a compreender no seu diálogo. Concluiu que era uma vida artificial que
estava levando, que a abafava e, sem olhar a diplomacias nem a meios
inteligentes, corta cerce o fio que a prendia e já escaldava! // Procuro na
minha mente a desculpa que a pudesse absolver deste gesto impensado e por mais
que me esforce só choco com frases de crítica e de reprovação à sua leveza de pensar.
É tão bonito: sermos corretos, leais e ponderados; qualidades reunidas a
enobrecer uma alma. Mas já não se usa, é velho e pouco prático este raciocínio,
e então não se procuram meios para se alcançarem fins. Foi desta maneira que
feneceu uma linda ilusão, com a crueldade frisante e [impassível] de um
coração – que os poetas dizem frágil – mas inúmeras vezes empedernido e estéril.» // Lisboa, Janeiro de
1929. Ricardo E. Cordeiro Junior. /// (*) No texto do jornal está escrito
«distinguindo-se». /// (**) Também podia ter escrito «a turvarem-lhe...»
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarGrata por me dar dar a conhecer um pouco melhor parte da história da minha família.
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