sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

ESCRITOS SOBRE MELGAÇO
 
Por Joaquim A. Rocha






LONGE E PERTO
 


  Tempos houve em que a nossa amada terra esteve quase despovoada; surgiu a monarquia e com ela para aqui foram mandados homens e mulheres que novamente lhe deram filhos – filhos de Melgaço! Ao longo dos séculos, outros chegaram. Vem isto a propósito do escritor Miguel Ângelo Barros Ferreira, recentemente falecido; seu pai, Miguel Augusto Ferreira, nascido em 1848, filho de Justino Augusto Ferreira e de Francisca Maria Teixeira, naturais de Monção, cedo se transferiu para a nossa Vila, pois o Diário do Governo n.º 231, de 10/10/1884, já o refere como 1.º escrivão do 1.º ofício em Melgaço. Era casado, mas aqui enviuvou. Em 1901, 11 de Junho, no estado de viúvo, com 53 anos de idade, casou em segundas núpcias com Alice da Conceição, nascida em 1883, filha de Agostinho Fernandes de Barros, conhecido pela alcunha “O Cobra”, professor do ensino primário, e de Filomena Rosa de Sousa, residentes na sede do concelho, na Rua Direita.

     Miguel Ângelo nasceu na Vila de Melgaço a 7/9/1906 e ficou órfão de pai a 20/8/1910; depois, e segundo se diz no livro «Padre Júlio Apresenta Mário», página 262, a família parte para o Porto e nessa cidade o futuro escritor e jornalista «fez os estudos de filosofia e letras». Com dezoito anos de idade iniciou as suas viagens pelo mundo: primeiro Brasil, depois a África…; quase um Fernão Mendes Pinto do século XX.

     Ninguém nasce escritor, mas existe qualquer coisa nas pessoas que por mais ciência, filosofia ou religião que se invoque, nada pode explicar essa tendência, essa vocação que leva os seres humanos a empenharem-se apaixonadamente numa determinada arte ou ciência. Assim aconteceu com Barros Ferreira: podia ter sido contabilista, comerciante, etc., mas as letras, a palavra escrita, estavam-lhe no fundo da alma, quase indiciando um destino que se queria, se desejava, e do qual não podia fugir.

     Eu, até hoje, à exceção de alguns artigos de jornal, nada li (*) da obra do nosso conterrâneo; vi, há muitos anos, o filme «Serra Brava”, inspirado no seu livro «Maria dos Tojos». Muitos melgacenses interrogar-se-ão, tal como eu, das razões que levaram o autor a escrever esse romance sobre Castro Laboreiro e os castrejos, ele que tinha vivido somente na sede do concelho e aos doze anos de idade partira para a capital do norte! Investiguei e descobri: seu bisavô materno, Henrique Benedito de Barros, nascido em Cristóval e casado em Cabreiros, Rouças, com Joaquina Rosa Fernandes, possuiu uma mercearia na vila de Castro Laboreiro e ali lhe nasceram todos os seus filhos. Esse antepassado faleceu antes de Miguel Ângelo ter nascido, mas o seu avô Agostinho Barros, acima referido, natural de Castro Laboreiro e falecido em Vila Nova de Gaia, Carvalhos, a 27/4/1937, esse contou-lhe todas as histórias, a geografia e a maneira de ser do castrejo autêntico – as saídas temporárias para Espanha, as mudanças de residência de acordo com as estações do ano, os trajes, o perfil psicológico, tudo! E só assim se compreende o nascimento de uma obra sobre um povo tão pouco estudado até aos nossos dias. O sábio José Leite de Vasconcelos por lá andou, e dessas andanças nos legou algumas páginas de grande erudição, mas não penetrou, nem o poderia ter feito, na alma profunda, quase impenetrável, do castrejo. Para nós, os da Vila, essa gente revestiu-se sempre de um manto de fantasia, mistério e deslumbramento: - «são diferentes de nós», comentávamos por vezes com ironia e arrogância. Para aqueles que não sabem, lembro mais uma vez que Castro Laboreiro só passou a pertencer ao concelho de Melgaço a partir de 1855; antes dessa data era concelho independente, com foral próprio.

     Ignoro se a Câmara Municipal vai, ou tem intenção, de homenagear o escritor – é provável que sim e só lhe fica bem se o vier a fazer. No entanto, devemos estar cientes de que poucos melgacenses terão lido ou tomado conhecimento da sua imensa obra literária; para a maioria dos nossos conterrâneos Barros Ferreira é apenas um nome, embora saibam que um dos seus romances inspirou um filme – mas quem o viu, e quem se lembra, se já passaram décadas após a sua primeira exibição?! De qualquer modo, os vereadores da Câmara Municipal não poderão, quanto a mim, invocar o desconhecimento da obra para dessa maneira evitar a justa homenagem ao emérito melgacense que amou o concelho, o dignificou e soube e quis prestigiar. Mal irá a terra e os habitantes dela quando desprezam os seus melhores frutos. Nestas circunstâncias é habitual solicitar-se aos poderes públicos que não se esqueçam de atribuir a uma rua ou praça o nome do ilustre desaparecido. Pois bem: eu junto a minha voz a todas as outras que já o fizeram ou que futuramente o virão a fazer; e, podem crer, Melgaço honrar-se-ia com essa atribuição. Mais tarde reeditar-se-ia «Serra Brava» e «A Flauta Mágica» para que a nossa ignorância se dissipasse e a nossa admiração fosse ainda maior. Agora que todos falam em regionalização e desejam destacar as caraterísticas regionais e os seus valores genuínos, por que não inventariar e reivindicar para Melgaço tudo aquilo que nos eleva e distingue? Mais: o escritor Miguel Ângelo Barros Ferreira seria a ponte, o elo cultural que nos ligaria a Monção e ao Brasil, onde o escritor alcançou merecida fama e deixou bem patente a garra minhota. Bem-haja, Barros Ferreira, pela obra e por se ter mantido melgacense ao longo de toda a vida.

     Não tive o privilégio de o conhecer pessoalmente, de ouvir da sua boca o quanto gostava do torrão que nos serviu de berço e nos embalou nos primeiros anos da infância, mas é agradável saber, mesmo por terceiras pessoas, que esse amor, qual chama olímpica, se manteve vivo e esplendoroso até ao último suspiro.               

 

// (*) Posteriormente adquiri alguns dos seus livros e comprovei a sua vocação para a escrita, sobretudo romanesca.

 

Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 1068, de 15/3/1997.








 
 











 

 

 

 

 








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