ESCRITOS SOBRE MELGAÇO
Por Joaquim A. Rocha
LONGE E PERTO
Tempos houve em que a nossa amada terra
esteve quase despovoada; surgiu a monarquia e com ela para aqui foram mandados
homens e mulheres que novamente lhe deram filhos – filhos de Melgaço! Ao longo
dos séculos, outros chegaram. Vem isto a propósito do escritor Miguel Ângelo
Barros Ferreira, recentemente falecido; seu pai, Miguel Augusto Ferreira, nascido
em 1848, filho de Justino Augusto Ferreira e de Francisca Maria Teixeira, naturais
de Monção, cedo se transferiu para a nossa Vila, pois o Diário do Governo n.º
231, de 10/10/1884, já o refere como 1.º escrivão do 1.º ofício em Melgaço. Era
casado, mas aqui enviuvou. Em 1901, 11 de Junho, no estado de viúvo, com 53
anos de idade, casou em segundas núpcias com Alice da Conceição, nascida em
1883, filha de Agostinho Fernandes de Barros, conhecido pela alcunha “O Cobra”,
professor do ensino primário, e de Filomena Rosa de Sousa, residentes na sede
do concelho, na Rua Direita.
Miguel Ângelo nasceu na Vila de Melgaço a
7/9/1906 e ficou órfão de pai a 20/8/1910; depois, e segundo se diz no livro
«Padre Júlio Apresenta Mário», página 262, a família parte para o Porto e nessa
cidade o futuro escritor e jornalista «fez
os estudos de filosofia e letras». Com dezoito anos de idade iniciou as
suas viagens pelo mundo: primeiro Brasil, depois a África…; quase um Fernão
Mendes Pinto do século XX.
Ninguém nasce escritor, mas existe
qualquer coisa nas pessoas que por mais ciência, filosofia ou religião que se
invoque, nada pode explicar essa tendência, essa vocação que leva os seres
humanos a empenharem-se apaixonadamente numa determinada arte ou ciência. Assim
aconteceu com Barros Ferreira: podia ter sido contabilista, comerciante, etc.,
mas as letras, a palavra escrita, estavam-lhe no fundo da alma, quase
indiciando um destino que se queria, se desejava, e do qual não podia fugir.
Eu, até hoje, à exceção de alguns artigos
de jornal, nada li (*) da obra do nosso conterrâneo; vi, há muitos anos, o
filme «Serra Brava”, inspirado no seu livro «Maria dos Tojos». Muitos
melgacenses interrogar-se-ão, tal como eu, das razões que levaram o autor a
escrever esse romance sobre Castro Laboreiro e os castrejos, ele que tinha
vivido somente na sede do concelho e aos doze anos de idade partira para a
capital do norte! Investiguei e descobri: seu bisavô materno, Henrique Benedito
de Barros, nascido em Cristóval e casado em Cabreiros, Rouças, com Joaquina
Rosa Fernandes, possuiu uma mercearia na vila de Castro Laboreiro e ali lhe
nasceram todos os seus filhos. Esse antepassado faleceu antes de Miguel Ângelo
ter nascido, mas o seu avô Agostinho Barros, acima referido, natural de Castro
Laboreiro e falecido em Vila Nova de Gaia, Carvalhos, a 27/4/1937, esse
contou-lhe todas as histórias, a geografia e a maneira de ser do castrejo
autêntico – as saídas temporárias para Espanha, as mudanças de residência de
acordo com as estações do ano, os trajes, o perfil psicológico, tudo! E só
assim se compreende o nascimento de uma obra sobre um povo tão pouco estudado
até aos nossos dias. O sábio José Leite de Vasconcelos por lá andou, e dessas
andanças nos legou algumas páginas de grande erudição, mas não penetrou, nem o
poderia ter feito, na alma profunda, quase impenetrável, do castrejo. Para nós,
os da Vila, essa gente revestiu-se sempre de um manto de fantasia, mistério e
deslumbramento: - «são diferentes de nós»,
comentávamos por vezes com ironia e arrogância. Para aqueles que não sabem,
lembro mais uma vez que Castro Laboreiro só passou a pertencer ao concelho de
Melgaço a partir de 1855; antes dessa data era concelho independente, com foral
próprio.
Ignoro se a Câmara Municipal vai, ou tem
intenção, de homenagear o escritor – é provável que sim e só lhe fica bem se o
vier a fazer. No entanto, devemos estar cientes de que poucos melgacenses terão
lido ou tomado conhecimento da sua imensa obra literária; para a maioria dos
nossos conterrâneos Barros Ferreira é apenas um nome, embora saibam que um dos
seus romances inspirou um filme – mas quem o viu, e quem se lembra, se já
passaram décadas após a sua primeira exibição?! De qualquer modo, os vereadores
da Câmara Municipal não poderão, quanto a mim, invocar o desconhecimento da
obra para dessa maneira evitar a justa homenagem ao emérito melgacense que amou
o concelho, o dignificou e soube e quis prestigiar. Mal irá a terra e os
habitantes dela quando desprezam os seus melhores frutos. Nestas circunstâncias
é habitual solicitar-se aos poderes públicos que não se esqueçam de atribuir a
uma rua ou praça o nome do ilustre desaparecido. Pois bem: eu junto a minha voz
a todas as outras que já o fizeram ou que futuramente o virão a fazer; e, podem
crer, Melgaço honrar-se-ia com essa atribuição. Mais tarde reeditar-se-ia
«Serra Brava» e «A Flauta Mágica» para que a nossa ignorância se dissipasse e a
nossa admiração fosse ainda maior. Agora que todos falam em regionalização e
desejam destacar as caraterísticas regionais e os seus valores genuínos, por
que não inventariar e reivindicar para Melgaço tudo aquilo que nos eleva e
distingue? Mais: o escritor Miguel Ângelo Barros Ferreira seria a ponte, o elo
cultural que nos ligaria a Monção e ao Brasil, onde o escritor alcançou
merecida fama e deixou bem patente a garra minhota. Bem-haja, Barros Ferreira,
pela obra e por se ter mantido melgacense ao longo de toda a vida.
Não tive o privilégio de o conhecer
pessoalmente, de ouvir da sua boca o quanto gostava do torrão que nos serviu de
berço e nos embalou nos primeiros anos da infância, mas é agradável saber, mesmo
por terceiras pessoas, que esse amor, qual chama olímpica, se manteve vivo e
esplendoroso até ao último suspiro.
// (*) Posteriormente
adquiri alguns dos seus livros e comprovei a sua vocação para a escrita,
sobretudo romanesca.
Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 1068, de 15/3/1997.
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