LINA - Filha de Pã
(romance)
Por Joaquim A. Rocha
9.º Capítulo
O leitor
deve perguntar amiúde: que é feito da filha da Lina, a Lisete? Eu explico: a
rapariga, ao contrário da mãe, fez a quarta classe da instrução primária – lia
e escrevia muito bem. No desenho, era a melhor. Sabia um bocadinho de História
de Portugal, Geografia, Ciências da Natureza, etc. Tinha uma caligrafia bonita,
bons raciocínios; via-se perfeitamente que descendia de alguém com um cérebro
desenvolvido, bem apetrechado intelectualmente. Não herdara o apelido do seu
progenitor, mas herdara-lhe os genes. Depois da instrução primária não estudou
mais. Naquele tempo «de vacas magras»
era difícil ir mais longe: os liceus estavam nas cidades, longe do campo, e
assim a maioria da população não tinha acesso a esses estabelecimentos de
ensino. Porém, ela não se quedara por ali. Alguns professores emprestavam-lhe
livros de autores portugueses: romances e novelas, sobretudo do século XIX – Almeida
Garrett, Júlio Diniz, Camilo, Eça, e outros – que ela devorava com avidez. Ajudava
a avó Clara nas lides da casa, na horta, no que podia. Um dia a avó chamou-a e
perguntou-lhe:
- Queres ir trabalhar para um hotel das Termas? São
quatro meses. Precisam de empregados e consta que pagam bem.
- Não me importava, avó. Daria para arranjar uns
dinheirinhos e conhecer outras pessoas. Dizem que há hóspedes muito notáveis ali.
- Até ministros e pessoas importantes da Igreja e dos
negócios se vêem por lá! Vêm às Termas tratar das suas mazelas, apregoa-se por
todo o país que as nossas águas minerais são milagrosas, já curaram muita
gente.
- E acompanha-me, avó? Não gostava de ir sozinha.
- Eu já estou muito velha para andar, mas vou fazer um
esforço. Se eu não puder, vai um dos teus tios contigo. Tu mereces, tens saído
uma jóia de neta.
- Obrigada, avó; o ordenado que ganhar é todo para si.
- Tens de ficar com algum para ti, para ires fazendo o
enxoval. Eu já não devo andar cá por muito mais tempo e tu tens de pensar no
teu futuro. Até pode ser que arranjes um namorado nesse lugar, mas tem cuidado,
vê que não seja malandro.
- Eu ainda sou muito nova para pensar nisso.
- Vais fazer dezassete anos. A tua mãe ainda não tinha
essa idade quando tu nasceste.
A rapariga
ficava melancólica quando mencionavam o nome da sua progenitora. Crescera
praticamente sem a conhecer. Quando lhe dava um beijo sentia-o gélido,
distante, como de uma desconhecida. Nunca entendera essa atitude. Tinha-lhe
contado que o pai, um senhor juiz, não desejava que ela nascesse; fora ela,
Lina, que se impusera para que a sua menina viesse a este mundo. Então por que
não a amava, como as outras mães amam os seus filhos? Sempre se portara bem,
fora boa estudante, dedicada, trabalhadora, e como paga tinha aquele desapego,
aquela indiferença, quase como se não fosse filha dela. A avó tentava
explicar-lhe que Lina nunca fora igual às outras crianças, talvez tivesse a ver
com aquela imensa trovoada quando a estava a botar cá para fora. O céu estava
zangado, faiscava por todo o lado, os trovões faziam-se ouvir a distância, as
rajadas de vento levavam tudo pelos ares. Ela amedrontara-se deveras: sentira
medo, imenso medo, e talvez esse temor se tivesse transmitido à filha que
acabara de nascer. Só Deus o sabia. «São
segredos da divindade, Lisete.»
- Mas, avó, os médicos nunca disseram nada sobre isso?
Nunca se pronunciaram sobre o estranho caso?
- Os médicos são como nós, seres humanos; sabem o que
aprenderam nas Escolas, nas Universidades, mas aquilo que está acima do nosso
alcance, aquilo que nos transcende, só Deus e os anjos sabem!
- Como eu gostaria de saber todas essas coisas, avó!
- Nós somos pequeninos perante Deus. O Senhor vê tudo
lá de cima, observa tudo que se passa à nossa volta, controla o nosso viver, e
nós obedecemos à sua grandeza e sabedoria. Foi assim que nos ensinou o senhor
abade e eu assim o creio.
- Eu também acredito, avó, mas penso que não é bom
sermos observados a todo o momento! Será que podemos fazer alguma coisa sem
Deus nos estar a ver? Assim não possuímos nenhuma liberdade!
- Nem precisamos dela, minha netinha. Para que a
queríamos? Para nos tornarmos violentos? Se tivéssemos mais liberdade do aquela
que temos, cada qual faria o que lhe desse na real gana e ninguém se
entenderia. É melhor assim. Deus, a Igreja e o nosso Governo zelam por nós,
estamos em segurança.
Clara ouvira
essa lengalenga na catequese, no seu tempo de menina, e durante anos a fio na
missa. Decorara algumas passagens da Bíblia, sobretudo do Novo Testamento, e
agora procurava transmitir à neta os seus conhecimentos e até as suas inquietações.
- Avó, quando vamos ao Hotel?
- Pode ser já amanhã. Temos de nos levantar bem cedo. Mas
dorme à vontade que eu acordo-te.
Clara
levantou-se, ainda não eram sete da manhã; foi ver do gado, pôs a panela ao
lume para ferver água, tinha de preparar a levedura dos porcos, e depois foi
chamar o pessoal da casa: os dois irmãos - Alfredo e Joaquim -, solteirões, e
os dois filhos – Acácio e Tomás - e as noras. A sua irmã Engrácia casara e fora
com o marido para o estrangeiro, mais concretamente para a Argentina. Havia
anos que não visitava a família, nem sequer mandava uma lembrança ou uma simples
carta! As que Clara lhe enviara ultimamente vinham devolvidas, devido à morada
não estar correta! Acontecera qualquer coisa de grave, o quê provavelmente nunca
o saberia!
Tinha de se cumprir a rotina diária: dar de
comer aos porcos, às galinhas, aos coelhos, ir ao monte baldio com as ovelhas,
cabras, duas vacas e uma novilha, enfim, tratar dos animais. Antes, porém,
tinham de mugir as vacas; o leite seria para as sopas, que bem necessitados
andavam de novas energias. Depois tinham os campos, a horta, a vinha… No mundo
rural não sobrava tempo para a malandrice, toda a gente trabalhava: só quando
chovia muito é que havia uma pausa.
Chegaram ao
Hotel por volta das nove horas. O gerente recebeu a avó e a neta com
delicadeza, perguntou-lhes ao que iam, e depois de esclarecido perguntou-lhes:
- Já sabem qual é o salário de uma rapariga que inicia
a sua atividade?
Quem
respondeu foi a mais velha – assim fora combinado:
- Os senhores é que dizem quanto a minha neta vai
ganhar. Ela nunca trabalhou para patrões, tem estado sempre em minha casa. Eu
ensinei-lhe tudo, mas claro, a nossa casinha é muito pequena comparada com o
Hotel. Se lhe ensinarem ela aprende depressa; a minha netinha até foi boa
aluna, tem uma quarta classe muito bem conseguida.
O gerente
olhou fixamente para a moça, não lhe foi indiferente a sua formosura, como era
possível existir, em uma freguesia rural, uma beldade daquelas? «Um fenómeno, um autêntico fenómeno» -
pensou. Um cabelo aloirado a cair-lhe pelas costas, um rosto angelical, uns
olhos azuis lindíssimos! Uma pérola. Perfeita. Uma verdadeira obra de arte.
Iria ser disputada.
- Bem, para começar vamos dar-lhe quatrocentos escudos
por mês; depois vai sendo aumentada conforme as suas aptidões. Além disso há
gorjetas.
A rapariga
olhou para a avó, radiante, era muito dinheiro para quem nunca tinha recebido
um centavo sequer. A senhora Clara disse ao gerente:
- A minha neta é uma boa menina, tratem-na bem.
Abraçou a jovem
com carinho, como em uma despedida, sabia os riscos que iria correr. Tinha-lhe
dito o que sabia sobre a vida e os homens, mostrara-lhe exemplos, sobretudo o
da mãe, que tantos malefícios lhe trouxeram. Que mais podia dizer-lhe?
- Adeus minha querida netinha; respeita os patrões, os
teus superiores, os hóspedes, os colegas, toda a gente, para que também te
respeitem. Foge das intrigas como o diabo foge da cruz. E quando puderes vai
visitar-nos: és nova, tens boas pernas, em uma hora pões-te lá.
A rapariga,
abraçada à avó, chorava copiosamente. Era a primeira vez que estaria fora de
casa, sem a proteção dos seus parentes próximos. O gerente, comovido, diz-lhe:
- Tu ficas bem aqui connosco. Todos te vão respeitar.
Nada receies. A senhora Clara pode ir descansada. Quando quiser e puder, venha
visitá-la; ela terá um dia de folga por semana. Não se preocupem.
A senhora
Clara partiu com o coração destroçado: perdera o marido, a filha, pois estando
viva era como se não existisse para ela; da irmã, Engrácia, nada sabia, deixara
de escrever! Agora não queria perder a neta. «Adeus» - disse baixinho. «Que
Deus te proteja.»
A mocita
depressa se ambientou. Havia no Hotel raparigas da mesma idade, ou pouco mais
velhas, alegres, folgazonas, portadoras de uma alegria contagiante, e o
ambiente era o melhor. Claro que existiam também empregadas mais idosas, mais
sabichonas, intrometidas e até alcoviteiras, a tentar empurrá-las para a desgraça:
«os hóspedes pagam bem», mas as
raparigas, honestas, com a sua franqueza, a sua natural espontaneidade, iam
ultrapassando essas barreiras.
Naquele ano
o Hotel estava a abarrotar de hóspedes – nem um quarto sequer ficara vazio. As
águas minerais tratavam várias doenças, sobretudo a diabetes, e por isso eram
procuradas por pessoas de todo o país, quer da classe média, quer da classe superior,
e até galegos e outros espanhóis para ali vinham.
Um desses
hóspedes, homem de meia-idade, alto, espadaúdo, de cabelo grisalho, com barbas
bem aparadas, parecia um fidalgo dos tempos da monarquia. A sua esposa era
linda, apesar de rondar já os cinquenta anos de idade. Bem vestida, cabelo bem
arranjado, toda pintada, parecia uma figura daqueles quadros do século dezanove
que repousam nas paredes dos museus. Tinha um sorriso bonito, simpático, o qual
contrastava um pouco com a sua indumentária.
À Lisete,
ironia do destino, fora-lhe destinada aquela zona do Hotel onde o casal tinha o
quarto. Encontrarem-se era uma questão de tempo. A rapariga usava a farda de
serviço, branca e vermelha, que lhe caía maravilhosamente sobre aquele corpo
escultural. Todos se metiam com ela: «Hoje
ainda estás mais bonita do que ontem! Como se consegue essa proeza?» Ela
apenas sorria. A sua avó dissera-lhe uma vez: «Um sorriso vale mais do que mil palavras.» Tinha razão a senhora
Clara: os homens esboçavam um sorriso também e jamais ousaram dizer-lhe algo
menos correto ou grosseiro. Respeitavam-na como se fosse uma deusa, uma
criatura divina. No Hotel havia médicos, advogados, escritores, pintores, até um
bispo, e todos a admiravam como obra-prima da natureza. «Que orgulho não devem sentir os seus pais» - diziam eles à mesa.
O tal
senhor de cabelos grisalhos, Juiz Conselheiro, ouviu gabar tanto a mocita das
limpezas que quis conhecê-la. Já vira muitas mulheres, umas mais bonitas,
outras mais feias, mas era a primeira vez na sua vida que notara que todos os
homens ali presentes, sem exceção, a idolatravam. «Nem as santas têm esse privilégio» - ousou pensar. Um dia, quando
ia a sair do quarto, encontrou-se com ela no corredor. Olhou-a fixamente e
estremeceu: era a sua irmã, quando era pequena! Não podia ser. Deus, ou o Diabo,
não lhe podiam pregar essa partida. Viera para Melcarte a fim de se curar da
diabetes e não para se encontrar com almas do outro mundo. Estava lívido. Olhou-a
nos olhos e disse-lhe com firmeza:
- Que estás aqui a fazer? Nós fizemos tudo que estava
ao nosso alcance para te salvar; nós não temos culpa da tua morte. Que queres
de nós?!
A rapariga
ouviu aquilo tudo e sentiu medo – estava perante um louco. Ia gritar, mas a voz
embargou-se, sumiu-se por completo. Passado uns segundos, e vendo que ele não
avançava, atreveu-se a dizer:
- O senhor está enganado; eu sou a Lisete, filha da senhora
Lina e neta da senhora Clara.
O homem ficou
ainda mais pálido, se possível: recuou no tempo dezoito anos, era ele juiz em
Melcarte, solteiro; tinha uma empregada, rapariga de dezasseis anos, virgem,
chamada Lina. Fizera-a sua amante e geraram um filho ou uma filha, ele nunca
soubera. Estava ali, a dois passos, a lembrar-lhe que o crime – seja ele qual for –, será descoberto um
dia. Tirou da carteira uma fotografia e mostrou-lha:
- Achas-te parecida com ela?
Lisete
olhou atentamente para a fotografia e ficou atónita. Disse:
- Essa sou eu! Tirou-me um retrato sem eu saber; vou
dizer aos meus patrões.
- Olha melhor para ela – solicita. Repara na roupa. Alguma vez esse vestido te pertenceu?
- Não, nunca tive essa roupa, mas é a minha cara, o
meu corpo…
- É a minha irmã, quando era da tua idade. Eu, sou…
As lágrimas
corriam-lhe pelas faces, não o deixando continuar a conversa. Ela olhou para
ele, para aqueles olhos iguais aos dela, aquela testa grande, escondendo um
cérebro enorme, aquela boca perfeita, e gritou:
- O senhor é o meu pai! Meu pai!
Logo a
seguir desmaiou. Aos gritos acudiram os empregados, hóspedes, proprietários do
Hotel, toda a gente. Deitaram-na em uma cama. Um dos hóspedes era médico e observou-a:
- Sofreu um choque muito grande, o seu coraçãozinho
andou para aqui aos saltos. Temos de a transportar para o Hospital.
O pai da
Lisete, a chorar, pediu ao médico:
- Não ma deixe morrer, doutor; é minha filha!
Todos ficaram
a olhar para ele, pensando que estava embriagado ou louco. A empregada de limpeza
sua filha! Ele, um juiz conselheiro, pai de uma simples empregada de Hotel.
Coitado!
// continua...
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