SANTUÁRIO DA SENHORA DA
PENEDA
Tudo começa com uma lenda. A 5/8/1220
uma rapariga pastoreava por aquelas penedias algumas cabras, quando lhe
apareceu a mãe de Jesus, e lhe ordenou que dissesse aos da Gavieira para lhe
edificarem naquele sítio uma ermida. A moça foi contar a seus pais, mas estes
não acreditaram na sua história. Voltando a pastorinha com as suas reses àquele
mesmo local, tornou a aparecer-lhe a senhora em cima de um rochedo e disse-lhe:
«filha, já que não querem dar crédito ao
que eu mando, vai ao lugar de Rouças, freguesia da Gavieira, aonde está uma
mulher entrevada há dezoito anos, e diz aos moradores do lugar que a tragam à
minha presença, para que nela cobre perfeita saúde, e assim te darão crédito ao
que eu te ordeno.» A jovem assim o fez. Levaram a doente, Domingas
Gregório, ao local onde estava a virgem santa e logo alcançou saúde e ficou
livre de todos os achaques de que padecia. É óbvio que os habitantes da
povoação de imediato construíram uma capela. Ao contrário dos pastorinhos de
Fátima, aqui não se menciona o nome da pequena serrana. // O padre Carvalho da
Costa (1650-1715), na sua “Corografia Portuguesa”,
publicada nos princípios do século XVIII, ao falar da Gavieira, atual freguesia
dos Arcos de Valdevez, registou outra versão da lenda: «Aqui, entre ásperas serras, ao pé de uma altíssima e precipitada penha,
foi achada há muitos anos, em uma lapa, uma imagem da mãe de Jesus, ficando
conhecida por Senhora da Peneda. É tradição que a descobrira um criminoso,
natural de Ponte de Lima, que – acossado da justiça – passava miseravelmente a
vida entre estes solitários bosques, servindo-lhe os lobos de companhia, nestes
termos bem se pode presumir o quanto passaria desgostoso e maltratado, causa de
recorrer a Deus com penitências, acompanhadas de grande arrependimento, do que
é evidente prova o consentir a Senhora que ele fosse o primeiro a vê-la, depois
de tantos anos estar oculta. É de cor morena e o corpo menos de palmo, com o
menino Jesus no braço; é imagem milagrosa e de grande romagem todos os anos
desde o 5 de Agosto até ao dia de São Lourenço (10 de Agosto).»
Esta
romagem, ou festa, passou mais tarde a verificar-se entre 1 e 8 de Setembro,
embora a partir de Julho já no local apareçam centenas ou mesmo milhares de
pessoas. // Existem muitas explicações - umas fundamentadas, outras nem por
isso - para o aparecimento destas imagens. Estas lendas iam-se espalhando por
todo o Minho, e também na Galiza, com a ajuda dos párocos das freguesias,
realçando os “milagres” entretanto surgidos. Correu a ideia de que quem não ia
à Peneda em vivo iria depois de morto, tal como se diz para Santiago de
Compostela. A Senhora das Neves, ou Senhora da Peneda, foi ganhando fama, e
atraiu cada vez mais gente. Escreveu o padre Manuel António Bernardo “Pintor” (1911-1996), castrejo:
«O princípio do santuário deve-se ao aparecimento de uma antiga imagem
de pedra representando a Virgem Maria com o Menino Deus ao colo.» (ver o seu livro “Santuário da Senhora
da Peneda – uma joia do Alto Minho”). Não se sabe ao certo quando foi construída a ermida, mas devido
ao facto de acorrerem anualmente ao lugar da Peneda milhares de peregrinos, portugueses
e galegos, acharam por bem fundar-se uma Confraria, ou Irmandade, que gerisse as
esmolas recebidas e criasse as condições de alojamento das pessoas, erguendo
quarteis, melhorasse acessos, além de tratar de todos os assuntos relacionados
com o santuário. O arquivo dessa Irmandade apresenta-nos documentação a partir
de 1738, o que significa que deve ter nascido no princípio do século XVIII. Já
nessa altura os rendimentos anuais do santuário eram consideráveis. Muitos
crentes deixavam em seus testamentos dinheiro para pagar dezenas ou centenas de
missas e várias ofertas à senhora da Peneda. Alguns desses bens eram leiloados
durante a festa anual.
É provável que D.
Frei Bartolomeu dos Mártires, arcebispo de Braga entre 1559 e 1584, tenha dado um
saltinho à Peneda quando visitou em Castro Laboreiro a ermida da Senhora da
Anamão. As chamadas grandes pestes, séculos XVI e XVII, também ajudaram a
divulgar o culto da Senhora da Peneda, pois a este santuário vinham clamores,
pedindo à santa remédio, traduzido em curas, para essas graves doenças, costume
que ainda se manteve até meados do século XX. // Na Peneda praticaram-se no
passado algumas cerimónias macabras. Por exemplo: muitos romeiros eram levados
em caixões como se fossem defuntos; o trajeto era desde o pórtico, lá no fundo
das capelas, até à igreja, e alguns iam até ao cemitério que ali perto
construíram. «Havia quem assistisse
dentro do caixão, em geral aberto, à missa de promessa, e até havia quem mandasse
cantar ofícios de defuntos», conta-nos o citado padre Bernardo Pintor. Esta
prática chegou ao século XX. A emigração, o contacto com outros povos mais
evoluídos, tornou essa prática obsoleta.
Paulatinamente o
santuário foi crescendo. A capela deu lugar a uma igreja «capaz de recolher em si mais de trezentas pessoas, com sua capela-mor.»
Tinha de comprimento vinte e dois metros e de largura oito metros. Essa igreja
foi derrubada e substituída por uma maior no século XIX. Ergueu-se um muro em
silharia a suportar o terreiro, obra de grande vulto para a época, tendo em
conta a dificuldade que havia em transportar os materiais. Os caminhos eram
irregulares, chamados caminhos de cabras, só com carros puxados a bois se
conseguia colocar na Peneda a telha, as madeiras, a cal, as imagens, etc. Por
outro lado, os trabalhadores tinham dificuldade em arranjar alojamento, pois
esse sítio era despovoado, ermo. Tiveram de construir casas rudimentares, sem
quaisquer confortos, com invernos agressivos e imprevisíveis. Não havia lojas,
não havia hortas, nem campos de milho ou centeio, nada! Tudo teve de ser feito
a partir do zero absoluto! «A necessidade
obriga», é um ditado muito antigo. A vida nos séculos XVII, XVIII, XIX, e
até na primeira metade do século XX, era, para a maioria da população
portuguesa, muito dura, quase miserável, até nas vilas e cidades, quanto mais
na serra, onde a neve se mantinha durante quatro meses ou mais. Daí as pessoas
sujeitarem-se a tudo por umas escassas moedas e um côdea de pão. // As vias de
acesso foram ganhando forma, mas lentamente, pois ainda no século XX tiveram de
ser alargados caminhos a fim de chegarem à Peneda os automóveis e camionetas.
Anteriormente faziam-se dezenas ou mesmo centenas de quilómetros a pé para
chegar a esse lugar; os peregrinos pernoitavam debaixo de lapas, rochedos com
cavidades, pequenas grutas, sofrendo as agruras do tempo, sujeitando-se a
imensos sacrifícios, com o objetivo de ganharem o céu, as graças da virgem
Maria. A crença era forte, a ignorância predominava entre o povo, quase todo
rural, iletrado, incapaz de se aperceber que há limites, até para o sofrimento.
A igreja católica regozijava com o crescimento do santuário; em finais do
século XVIII já era considerado o maior e o mais frequentado do Minho! O
dinheiro oferecido era muito para a época, as ofertas em ouro, em prata, os
legados, surgiam quase naturalmente. A Mesa já emprestava dinheiro a juros!
Segundo consta, nem o santuário do Bom Jesus em Braga rendia tanto! Faziam-se
peditórios para a obra, a santa virgem tudo merecia, a recompensa viria depois
da morte.
O Vaticano tomou
conhecimento do fenómeno, e em 1742 atribuiu à Peneda um breve com privilégios
litúrgicos para os sábados e oitavários da Senhora. Por essa altura foram
construídas as primeiras capelas, chamadas da via-sacra, que chegaram a vinte,
gastando-se nessa obra quantias astronómicas para a época. // No século XIX,
por volta de 1820, D. João VI, então no Brasil, a pedido da Confraria, em
litígio com o pároco do Soajo (- sobretudo por causa das esmolas; argumentava-se que se os
párocos as recebessem depressa o santuário seria votado ao abandono -) assumiu-se protetor do Santuário, eximindo-o da jurisdição
administrativa eclesiástica. Por essa altura já a Irmandade tinha estatutos
novos, aprovados por provisão régia passada em Lisboa a 5/4/1819 em nome do rei.
Ainda nesse século XIX se construiu na Peneda um hotel para peregrinos mais
endinheirados, o qual foi em parte destruído a 28/4/1886 devido a uma
gigantesca trovoada, a qual fez deslocar três penedos que destruíram toda a parte
do lado poente; sofreu nova derrocada em 1946, devido a ter rebentado um açude
construído ali perto. // O poder da Irmandade era tal que cobrava dinheiro aos
tendeiros quando ali chegavam para venderem os seus produtos! Nessa dita irmandade, graças ao prestígio
alcançado, estiveram a partir de certa altura pessoas de elevada categoria,
embora não residissem lá. Por exemplo: o deão de Braga, D. Miguel José de Sousa
Montenegro, e seu tio D. Francisco Pereira da Silva, além do fidalgo da Casa
Real, Simão António da Rocha e Brito, cavaleiro da Ordem de Cristo. Um parente
deste, da Casa de Aguiã, o padre João Bento da Rocha Brito, também foi juiz da
Irmandade. Em 1743 foi eleito para juiz José de Melo Sampaio Pereira. Até o
visconde de Bertiandos, Gonçalo Pereira da Silva, foi juiz desta Irmandade,
reeleito a 3/9/1851 e a 2/9/1853. // Em finais do século XVIII, ou inícios do
século XIX, construíram a Casa do Consistório. // Mandaram fazer uma chapa para
imprimir estampas da Senhora da Peneda a fim de serem vendidas aos devotos,
negócio que ainda continua em nossos dias. Para que os visitantes pudessem
saber as horas, os elementos da Mesa mandaram construir um relógio de sol.
Depois da guerra
civil, com a vitória de D. Pedro IV, em 1834, iniciou-se em Portugal uma
reforma administrativa, deixando a freguesia da Gavieira de ser anexa à do
Soajo, tornando-se autónoma. Com esta transformação o Real Santuário de Nossa
Senhora da Peneda, como se designava, teve de se adaptar à nova realidade. É a
partir de 10/9/1835, por deliberação da Mesa Administrativa, que vai nascer a
nova igreja, iniciada em 1837, monumental, à qual o povo chamará mosteiro. Em
1856, numa memória descritiva, lê-se: «Acha-se,
pois, este novo templo concluído de paredes em todo o corpo da igreja,
capela-mor, sacristias…» Seria inaugurado na romaria de Setembro de 1857. A
velha foi adaptada a quartel para recolher os voventes. Abaixo da igreja
construíram a partir de 1854 um escadório, com quatro estátuas (Fé, Esperança, Caridade e Glória), terminado em 1861, constituindo
tudo - igreja, escadório, capelas - um conjunto harmonioso, de rara beleza. O
responsável pela obra chamava-se António Manuel Gois de Melo, mestre pedreiro,
natural de Lanhelas, Caminha. // O administrador do concelho dos Arcos de
Valdevez, a 25/5/1842, apoiado na lei de 29/10/1840, art.º 40, manifesta
interesse, através de um despacho, em controlar as contas do santuário.
A pequena
ermida, nascida graças ao achado de uma minúscula imagem, transforma-se numa
obra majestosa, numa enorme fonte de receita, num monumento nacional. A Peneda,
fraga sobre fraga, matos e floresta, metamorfoseia-se num lugar da freguesia da
Gavieira, habitado por centenas de pessoas, com cemitério próprio, com fonte de
água potável, com negócios rendíveis. Caso estivesse mais perto de grandes
cidades, ter-se-ia tornado provavelmente numa povoação próspera, tal como
aconteceu em Fátima.
NOTA: poderá ler este artigo, da minha autoria, com mais imagens a cores, no livro «Lugares Sagrados de Portugal I,» edição do Círculo de Leitores, Abril de 2016, páginas 199 a 203 (inclusive).
NOTA: poderá ler este artigo, da minha autoria, com mais imagens a cores, no livro «Lugares Sagrados de Portugal I,» edição do Círculo de Leitores, Abril de 2016, páginas 199 a 203 (inclusive).
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