sábado, 20 de agosto de 2016


SANTUÁRIO DA SENHORA DA PENEDA

 
 
 

     Tudo começa com uma lenda. A 5/8/1220 uma rapariga pastoreava por aquelas penedias algumas cabras, quando lhe apareceu a mãe de Jesus, e lhe ordenou que dissesse aos da Gavieira para lhe edificarem naquele sítio uma ermida. A moça foi contar a seus pais, mas estes não acreditaram na sua história. Voltando a pastorinha com as suas reses àquele mesmo local, tornou a aparecer-lhe a senhora em cima de um rochedo e disse-lhe: «filha, já que não querem dar crédito ao que eu mando, vai ao lugar de Rouças, freguesia da Gavieira, aonde está uma mulher entrevada há dezoito anos, e diz aos moradores do lugar que a tragam à minha presença, para que nela cobre perfeita saúde, e assim te darão crédito ao que eu te ordeno.» A jovem assim o fez. Levaram a doente, Domingas Gregório, ao local onde estava a virgem santa e logo alcançou saúde e ficou livre de todos os achaques de que padecia. É óbvio que os habitantes da povoação de imediato construíram uma capela. Ao contrário dos pastorinhos de Fátima, aqui não se menciona o nome da pequena serrana. // O padre Carvalho da Costa (1650-1715), na sua “Corografia Portuguesa”, publicada nos princípios do século XVIII, ao falar da Gavieira, atual freguesia dos Arcos de Valdevez, registou outra versão da lenda: «Aqui, entre ásperas serras, ao pé de uma altíssima e precipitada penha, foi achada há muitos anos, em uma lapa, uma imagem da mãe de Jesus, ficando conhecida por Senhora da Peneda. É tradição que a descobrira um criminoso, natural de Ponte de Lima, que – acossado da justiça – passava miseravelmente a vida entre estes solitários bosques, servindo-lhe os lobos de companhia, nestes termos bem se pode presumir o quanto passaria desgostoso e maltratado, causa de recorrer a Deus com penitências, acompanhadas de grande arrependimento, do que é evidente prova o consentir a Senhora que ele fosse o primeiro a vê-la, depois de tantos anos estar oculta. É de cor morena e o corpo menos de palmo, com o menino Jesus no braço; é imagem milagrosa e de grande romagem todos os anos desde o 5 de Agosto até ao dia de São Lourenço (10 de Agosto)
     Esta romagem, ou festa, passou mais tarde a verificar-se entre 1 e 8 de Setembro, embora a partir de Julho já no local apareçam centenas ou mesmo milhares de pessoas. // Existem muitas explicações - umas fundamentadas, outras nem por isso - para o aparecimento destas imagens. Estas lendas iam-se espalhando por todo o Minho, e também na Galiza, com a ajuda dos párocos das freguesias, realçando os “milagres” entretanto surgidos. Correu a ideia de que quem não ia à Peneda em vivo iria depois de morto, tal como se diz para Santiago de Compostela. A Senhora das Neves, ou Senhora da Peneda, foi ganhando fama, e atraiu cada vez mais gente. Escreveu o padre Manuel António Bernardo “Pintor” (1911-1996), castrejo:
     «O princípio do santuário deve-se ao aparecimento de uma antiga imagem de pedra representando a Virgem Maria com o Menino Deus ao colo.» (ver o seu livro “Santuário da Senhora da Peneda – uma joia do Alto Minho”). Não se sabe ao certo quando foi construída a ermida, mas devido ao facto de acorrerem anualmente ao lugar da Peneda milhares de peregrinos, portugueses e galegos, acharam por bem fundar-se uma Confraria, ou Irmandade, que gerisse as esmolas recebidas e criasse as condições de alojamento das pessoas, erguendo quarteis, melhorasse acessos, além de tratar de todos os assuntos relacionados com o santuário. O arquivo dessa Irmandade apresenta-nos documentação a partir de 1738, o que significa que deve ter nascido no princípio do século XVIII. Já nessa altura os rendimentos anuais do santuário eram consideráveis. Muitos crentes deixavam em seus testamentos dinheiro para pagar dezenas ou centenas de missas e várias ofertas à senhora da Peneda. Alguns desses bens eram leiloados durante a festa anual.             

     É provável que D. Frei Bartolomeu dos Mártires, arcebispo de Braga entre 1559 e 1584, tenha dado um saltinho à Peneda quando visitou em Castro Laboreiro a ermida da Senhora da Anamão. As chamadas grandes pestes, séculos XVI e XVII, também ajudaram a divulgar o culto da Senhora da Peneda, pois a este santuário vinham clamores, pedindo à santa remédio, traduzido em curas, para essas graves doenças, costume que ainda se manteve até meados do século XX. // Na Peneda praticaram-se no passado algumas cerimónias macabras. Por exemplo: muitos romeiros eram levados em caixões como se fossem defuntos; o trajeto era desde o pórtico, lá no fundo das capelas, até à igreja, e alguns iam até ao cemitério que ali perto construíram. «Havia quem assistisse dentro do caixão, em geral aberto, à missa de promessa, e até havia quem mandasse cantar ofícios de defuntos», conta-nos o citado padre Bernardo Pintor. Esta prática chegou ao século XX. A emigração, o contacto com outros povos mais evoluídos, tornou essa prática obsoleta.

     Paulatinamente o santuário foi crescendo. A capela deu lugar a uma igreja «capaz de recolher em si mais de trezentas pessoas, com sua capela-mor.» Tinha de comprimento vinte e dois metros e de largura oito metros. Essa igreja foi derrubada e substituída por uma maior no século XIX. Ergueu-se um muro em silharia a suportar o terreiro, obra de grande vulto para a época, tendo em conta a dificuldade que havia em transportar os materiais. Os caminhos eram irregulares, chamados caminhos de cabras, só com carros puxados a bois se conseguia colocar na Peneda a telha, as madeiras, a cal, as imagens, etc. Por outro lado, os trabalhadores tinham dificuldade em arranjar alojamento, pois esse sítio era despovoado, ermo. Tiveram de construir casas rudimentares, sem quaisquer confortos, com invernos agressivos e imprevisíveis. Não havia lojas, não havia hortas, nem campos de milho ou centeio, nada! Tudo teve de ser feito a partir do zero absoluto! «A necessidade obriga», é um ditado muito antigo. A vida nos séculos XVII, XVIII, XIX, e até na primeira metade do século XX, era, para a maioria da população portuguesa, muito dura, quase miserável, até nas vilas e cidades, quanto mais na serra, onde a neve se mantinha durante quatro meses ou mais. Daí as pessoas sujeitarem-se a tudo por umas escassas moedas e um côdea de pão. // As vias de acesso foram ganhando forma, mas lentamente, pois ainda no século XX tiveram de ser alargados caminhos a fim de chegarem à Peneda os automóveis e camionetas. Anteriormente faziam-se dezenas ou mesmo centenas de quilómetros a pé para chegar a esse lugar; os peregrinos pernoitavam debaixo de lapas, rochedos com cavidades, pequenas grutas, sofrendo as agruras do tempo, sujeitando-se a imensos sacrifícios, com o objetivo de ganharem o céu, as graças da virgem Maria. A crença era forte, a ignorância predominava entre o povo, quase todo rural, iletrado, incapaz de se aperceber que há limites, até para o sofrimento. A igreja católica regozijava com o crescimento do santuário; em finais do século XVIII já era considerado o maior e o mais frequentado do Minho! O dinheiro oferecido era muito para a época, as ofertas em ouro, em prata, os legados, surgiam quase naturalmente. A Mesa já emprestava dinheiro a juros! Segundo consta, nem o santuário do Bom Jesus em Braga rendia tanto! Faziam-se peditórios para a obra, a santa virgem tudo merecia, a recompensa viria depois da morte.

     O Vaticano tomou conhecimento do fenómeno, e em 1742 atribuiu à Peneda um breve com privilégios litúrgicos para os sábados e oitavários da Senhora. Por essa altura foram construídas as primeiras capelas, chamadas da via-sacra, que chegaram a vinte, gastando-se nessa obra quantias astronómicas para a época. // No século XIX, por volta de 1820, D. João VI, então no Brasil, a pedido da Confraria, em litígio com o pároco do Soajo (- sobretudo por causa das esmolas; argumentava-se que se os párocos as recebessem depressa o santuário seria votado ao abandono -) assumiu-se protetor do Santuário, eximindo-o da jurisdição administrativa eclesiástica. Por essa altura já a Irmandade tinha estatutos novos, aprovados por provisão régia passada em Lisboa a 5/4/1819 em nome do rei.
 
 
     Ainda nesse século XIX se construiu na Peneda um hotel para peregrinos mais endinheirados, o qual foi em parte destruído a 28/4/1886 devido a uma gigantesca trovoada, a qual fez deslocar três penedos que destruíram toda a parte do lado poente; sofreu nova derrocada em 1946, devido a ter rebentado um açude construído ali perto. // O poder da Irmandade era tal que cobrava dinheiro aos tendeiros quando ali chegavam para venderem os seus produtos!  Nessa dita irmandade, graças ao prestígio alcançado, estiveram a partir de certa altura pessoas de elevada categoria, embora não residissem lá. Por exemplo: o deão de Braga, D. Miguel José de Sousa Montenegro, e seu tio D. Francisco Pereira da Silva, além do fidalgo da Casa Real, Simão António da Rocha e Brito, cavaleiro da Ordem de Cristo. Um parente deste, da Casa de Aguiã, o padre João Bento da Rocha Brito, também foi juiz da Irmandade. Em 1743 foi eleito para juiz José de Melo Sampaio Pereira. Até o visconde de Bertiandos, Gonçalo Pereira da Silva, foi juiz desta Irmandade, reeleito a 3/9/1851 e a 2/9/1853. // Em finais do século XVIII, ou inícios do século XIX, construíram a Casa do Consistório. // Mandaram fazer uma chapa para imprimir estampas da Senhora da Peneda a fim de serem vendidas aos devotos, negócio que ainda continua em nossos dias. Para que os visitantes pudessem saber as horas, os elementos da Mesa mandaram construir um relógio de sol.

     Depois da guerra civil, com a vitória de D. Pedro IV, em 1834, iniciou-se em Portugal uma reforma administrativa, deixando a freguesia da Gavieira de ser anexa à do Soajo, tornando-se autónoma. Com esta transformação o Real Santuário de Nossa Senhora da Peneda, como se designava, teve de se adaptar à nova realidade. É a partir de 10/9/1835, por deliberação da Mesa Administrativa, que vai nascer a nova igreja, iniciada em 1837, monumental, à qual o povo chamará mosteiro. Em 1856, numa memória descritiva, lê-se: «Acha-se, pois, este novo templo concluído de paredes em todo o corpo da igreja, capela-mor, sacristias…» Seria inaugurado na romaria de Setembro de 1857. A velha foi adaptada a quartel para recolher os voventes. Abaixo da igreja construíram a partir de 1854 um escadório, com quatro estátuas (Fé, Esperança, Caridade e Glória), terminado em 1861, constituindo tudo - igreja, escadório, capelas - um conjunto harmonioso, de rara beleza. O responsável pela obra chamava-se António Manuel Gois de Melo, mestre pedreiro, natural de Lanhelas, Caminha. // O administrador do concelho dos Arcos de Valdevez, a 25/5/1842, apoiado na lei de 29/10/1840, art.º 40, manifesta interesse, através de um despacho, em controlar as contas do santuário.
     A pequena ermida, nascida graças ao achado de uma minúscula imagem, transforma-se numa obra majestosa, numa enorme fonte de receita, num monumento nacional. A Peneda, fraga sobre fraga, matos e floresta, metamorfoseia-se num lugar da freguesia da Gavieira, habitado por centenas de pessoas, com cemitério próprio, com fonte de água potável, com negócios rendíveis. Caso estivesse mais perto de grandes cidades, ter-se-ia tornado provavelmente numa povoação próspera, tal como aconteceu em Fátima.               

NOTA: poderá ler este artigo, da minha autoria, com mais imagens a cores, no livro «Lugares Sagrados de Portugal I,» edição do Círculo de Leitores, Abril de 2016, páginas 199 a 203 (inclusive).                  

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