ENTRE MORTOS E FERIDOS
romance histórico
Por Joaquim A. Rocha
desenho de Rui Nunes |
// continuação (ver 10/7/2016)
Mamadu, talvez analfabeto, apercebia-se do conflito. Não sabia História,
nem sequer Geografia; sabia, isso sim, que Alá significava o Deus e Maomé o seu
profeta; que o Corão era o grande livro sagrado dos muçulmanos e que nele se
ensinava: «dente por dente, olho por olho»,
ao contrário do cristianismo, que sugere que se dê a outra face a quem nos
bate, mas na prática tanto uns como outros, se puderem, arrancam dentes e olhos
aos seus inimigos.
- O rapaz acaba por ser uma figura
exótica, uma espécie de extra-terrestre, do seu ponto de vista…
- Talvez. Foi em Bolama que o vi pela
primeira vez, naquela ilha bela e estranha, a ilha das noites serenas e dos amores
adiados. Ao princípio imaginei que se tratava de um prisioneiro, mas não: era a
mascote! Nunca soube como o encontraram ou como ele encontrou a Companhia. E
logo naquela operação que faltei – a minha febre subira aos quarenta graus! E
por causa daquelas feridas, a que dão o nome de impigem, na virilha, entre
pernas, provocadas sem dúvida pelas lamas asquerosas das intermináveis bolanhas.
Pensei morrer.
Caramba! Como eu gostaria de ter
assistido a tudo; não teria o mesmo encanto, o infinito mistério, mas saberia.
E os meus camaradas apenas me informavam: «surgiu!»
Durante muito tempo permaneceu na Companhia. Só a abandonou, desaparecendo
misteriosamente, como surgira, como o vento depois da procela, quando a
destacaram, no ano de mil novecentos e sessenta e sete, para Contuboel, uma
zona mais pacífica.
Parecia alheio ao mundo que o rodeava: as cubatas incendiadas; os corpos
desfeitos; as fugas rocambolescas; o medo e a morte, os feridos, tudo o deixavam
indiferente. Mamadu era feito de aço e acção! E aquele sorriso de anjo
guerreiro, apocalíptico, permanecia, teimoso, no seu fidíaco rosto. Sem
desfalecer, sem jamais dar parte de fraco, continuava a sua justa luta.
- Andava fardado?
- Mais ou menos. Vestiu camuflado do
exército luso e teve direito a G-3, a metralhadora que então se utilizava. Deixou
de ter idade, de ter família, de ter chão. Estava onde estivesse a Companhia,
pensava militarmente, pensava guerra, respirava e vivia tempestade!
Teve medalhas, qual atleta vitorioso nuns quaisquer jogos olímpicos, louvores
mil; tornou-se herói nacional! Um exemplo a seguir. Os antigos escultores
gregos teriam de ser ressuscitados para produzirem a sua estátua: a colossal e
eterna estátua do pequeno grande Mamadu!
- Está a exagerar – farfalhou Henrique.
- Talvez… Medalhado, e já com a arca
cheia de troféus, não parou – isto eram coisas de somenos. O seu objectivo pairava
alto, residia na sua mente obcecada. A sua tribo… tinha-se esquecido dela!
Mamadu lutava em nome dos fulas, mas estes já não o reconheciam.
Se tivesse olhado com atenção à sua volta verificaria que todas as
etnias da Guiné tinham esquecido as suas antigas rixas e, unidos, combatiam o
colonizador. Não olhava! Estava fora do tempo e do espaço. Os chefes tribais
compreenderam finalmente que o ódio cansa e que o seu inimigo nunca poderia ser
o seu irmão de cor, de raça, de estirpe.
- O gaiato ficou, desse modo, isolado!
- Completamente sozinho. A sua guerra
terminara no dia em que todas as etnias se abraçaram e decididas lutavam contra
o regime opressor. Encontrava-se entre a espada e a parede. Passou a ser um alvo
a abater!
- E o que é que ele fez?
- Quando toma consciência da situação
desaparece: «Desapareceu o Mamadu» - comentavam com emotividade os meus
camaradas. «Ninguém sabe para onde foi!»
«Ele não era deste mundo» – disse-lhes eu por graça.
«Mamadu reencarnava Farang, herói
dos Sorcos», brincava o alferes Briosa, amante dos mitos e das lendas.
«Farang?» - perguntaram todos a uma só voz.
«Querem saber quem foi essa importante personagem?»
«Sim, meu alferes; conte» - pediram alguns soldados.
[«Então ouçam atentamente:
Os Sorcos eram pescadores. A sua tribo estava instalada junto do Níger
desde há séculos. A tradição diz que eles foram os primeiros homens saídos dos
“buracos da terra”, isto é, os
primitivos habitantes do planeta, fundadores do “clã dos peixes”.
Farang, o nosso herói, pertencia a essa tribo. A lenda começa assim:
«Em Gao vivia Farang. E não havia em toda a terra outro homem que se lhe
assemelhasse. Criança, lembrou à mãe: «nunca se viu um filho de Sorco não ter
barco! Vou à floresta e cortarei uma árvore para construir uma piroga.»
A mãe concordou: «está bem, meu filho.»
De manhã cedo preparou nove medidas de milho e meteu-o num saco de pele
de bode. Pegou na machada e meteu-se a caminho da floresta. Começou a cortar troncos.
Chegou a noite. Adormeceu. Ao romper do sol recomeçou o trabalho. E assim
durante catorze dias. Descascou os troncos, preparou a madeira, iniciou a
construção do barco. Pôs as peças em monte e retornou à aldeia.
«Minha mãe, dê-me uma serra.» A mãe assim fez.
Voltou para a floresta. Nos catorze dias seguintes serrou folhas de
palmeiras anãs. Entrançou-as para fazer cordas e formou um grande rolo. Sentou-se
em cima dele e pensou na maneira de transportar para a beira do rio as peças.
Teve uma ideia: iria buscar gente à aldeia para o ajudarem. Procurou os velhos
de Gao. Disseram-lhe: «Que Deus te dê tantos bens como deu ao teu progenitor.»
E chamaram os rapazes. Foram para a floresta, mas todos juntos não conseguiam
levantar a popa.
«Farang, não será este ano que terminarás a
tua piroga. Nunca mais acabarás de a coser.»
«Esperem.» Enrolou a corda em volta de um braço, pôs à cabeça todas as
outras peças, e caminhou pela floresta.
Quando os jovens se cansaram de transportar a popa, pegou nela, levou-a,
e nem por isso os seus passos abrandaram. Chegado à planície colocou toda a
madeira em monte e preparou um lugar para a feitura da piroga. Levou catorze
dias a unir as peças com as cordas, só faltava fazer uma única costura.
Apercebeu-se de que não possuía mais cordas e a mãe aconselhou-o a ir procurar
o arpoador Tinamor Farang, seu tio. Ele não lhe deu cordas! Fitou-o e chamou:
«Albarcá-Babata!»
«Aqui estou, mestre.»
«Fomboragali!»
«Pronto, mestre.»
«Kusutelge!»
«Kusu-Djumandi!»
E continuou a chamar, chegando a trezentos e trinta e três. Disse ao
sobrinho: «Aqui estão os pirogueiros: os da popa e os da proa. A gente de Gao
será testemunha dos teus actos. Respeita o teu povo.» Virando-se para os
homens, disse-lhes: «respeitai-vos mutuamente, a fim de serdes poderosos.»
Ensinou-lhes todos os sortilégios que conhecia.
«Farang, leva sempre contigo o bode preto, a galinha preta, o vaso de
terra e leite fresco. Não te esqueças de prestar culto aos deuses protectores
dos Sorcos: Karamankoy, Marmamkoy, Kayankoy e Mangasi. É tudo quanto posso
dar-te.»
No dia seguinte foram à floresta cortar palmeiras anãs e terminaram a
piroga. Na sua primeira pesca, matou trezentos hipopótamos, trezentos caimões,
trezentos manatins, trezentas tartarugas aquáticas, trezentos lagartos aquáticos,
além de outras presas. Albarcá-Babata disse aos companheiros: «obedecei a Deus
e a Farang.»
Cansados de tanto ter arpoado, transportaram a embarcação para debaixo
de uma árvore. Passaram aí a noite. Farang deitou-se e adormeceu. Djinni, o
génio da árvore, perguntou aos homens: «de onde vêm?»
«Vimos de Gao e vamos para Tigilem.»
«Não sabem que ninguém pode vir dormir debaixo desta árvore?»
Farang acordou. «Que aconteceu?!»
O génio respondeu-lhe: «a tua viagem será a tua desgraça.»
«Djinni, hoje mesmo cortarei a tua árvore!»
«E tu morrerás hoje mesmo e todos os teus pirogueiros desaparecerão da
face da terra.»
Lutaram. Farang invocou as suas divindades, agarrou Djinni, lançou-o ao
ar e depois atirou-o violentamente ao chão. Quis apoderar-se do seu coração mas
o génio suplicou-lhe: «não me mates; dar-te-ei todos os meus feitiços.»
Susteve o braço. «Deste-me tudo?!»
Encostou-lhe a faca ao pescoço. «Não me mates; ainda tenho mais
feitiços.» Deu-lhe mais trezentos e trinta e três sortilégios. «Toma o vaso com
todos eles.»
Ora aquele génio era o filho do chefe de todos os génios Djinnis.
Choraram amargamente os sortilégios perdidos.
Farang tornou-se poderoso. Lutou com gigantes, monstros de muitas
cabeças, deuses de outras galáxias. Casou com Fatimata, uma bela mulher que não
o amava. Para se libertar dele, um dia solicitou-lhe: «Farang, se me amas
verdadeiramente, traz-me a gordura tirada do ventre do hipopótamo de Denderá-gusu.»
Exclamou: «tu queres destruir a minha casa: ninguém pode combater com
ele; pede outra coisa, mas isso não.»
«Podes dar-me todo o ouro da terra, tudo o que estiver ao teu alcance,
mas eu dir-te-ei: traz-me a gordura tirada do ventre do hipopótamo.»
«Maldita sejas; queres destruir a minha casa!
Matar-te-ei quando regressar.»
«Não me importo, se me fizeres esta vontade.»
Contou a seus homens e a sua mãe e todos o aconselharam: «manda-a
embora, ela quer a tua perdição.»
«Não! Lutarei até à morte; o meu amor por ela é muito superior ao ódio –
lutarei.»
Agarrou o hipopótamo e quis atirá-lo ao chão, mas o sítio onde ele bateu
com a pata transformou-se num pântano! O hipopótamo agarrou Farang e
esforçou-se por abatê-lo, mas o sítio onde ele tocou transformou-se numa grande
duna! A poeira que eles levantaram estendeu-se sobre toda a terra e escureceu o
céu!
O marabuto de Farang apareceu.
Chamava-se Alfa Mahalmudu. Bateu nos dois com o seu bordão: caíram como fulminados.
«Deixa-me; tenho de matar o hipopótamo ou ser por ele morto!»
A luta recomeçou e o marabuto regressou a Gao. Farang pediu protecção
aos seus ídolos. Vieram sem demora. Agarraram o hipopótamo e lançaram-no por
terra. Farang degolou-o e extraiu-lhe a gordura. Chegou a casa.
«Bom dia, meu esposo; estou muito contente por te ver vivo!»
«Aqui tens a gordura, vai untar os cabelos.»
Pegou nela, mandou que a penteassem, entrançou os cabelos com fios de
oiro e prata, pôs argolas nos tornozelos, um labadjur e um bakawel em volta dos
rins, enfiou braceletes nos braços e adornou-se com todas as suas jóias. Farang
ficou sete dias a contemplá-la. Não comeram, nem beberam, durante esse tempo.
Por fim, ordena:
«Fatimata, deita-te; vou degolar-te.»
«Não me degoles; bem vês que estou penteada e bela.»
«Deita-te!» - insistiu ele, com veemência.
Ela deitou-se; ele pegou na faca e brandiu-a, mas não foi capaz de a
degolar. Então o seu filho, num ímpeto de fúria, cortou o pescoço à madrasta.
Farang ficou triste. A partir daí lutou incansavelmente contra todos os
génios e deuses contrários. Mandou construir uma guitarra e começou a tocar.
Ouvindo a música, todos os peixes do rio vêm para a sua beira. É assim que
agora pesca e dá alimento ao seu clã.»]
*
«Que linda história, meu alferes; estava um dia inteiro a ouvi-lo» -
apressa-se a comentar o “Almada”.
*
Henrique tudo escutava com
redobrada atenção. Curioso, pergunta:
- E nunca mais viram a vossa mascote?!
- No término de 1967, quando entramos
no Uíge para regressar a Portugal, um soldado gritou: «Olhem o Mamadu, é ele,
olhem o Mamadu! Está a dizer-nos adeus.» Não sei se alguém o viu além desse
camarada, pode ter sido uma alucinação. Eu, só tendo olhos para o mar, não o
vi, confesso, mas senti um arrepio pelo corpo todo, o seu forte abraço de
despedida, a sua presença ausente! // continua...
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