LEMBRANÇAS AMARGAS
Por Joaquim A. Rocha
... (continuação - ver em 26/6/2015)
- Malditos homens! Cambada! Não me largavam a saia, sabiam que
estava indefesa, ninguém me respeitava. Esse era um patifório, pior ainda do
que o teu pai, ameaçava-me de morte, batia-me como se eu fora uma cadela!
Fez-me uma filha, que graças a deus morreu, e depois casou com outra, mesmo
depois de casado ainda quis andar comigo, fugi-lhe sempre, mas só quando
comecei a namorar com o teu pai é que ele me deixou de vez – teve medo!
- E os seus pais, não a aconselhavam?
- Cheios de penas andavam eles, a tua avó, antes de casar com o teu
avô, mais novo sete anos do que ela, já tinha tido três filhos, coitada,
padeceu muito, dois morreram-lhe com meses, com aquela maldita doença das
crianças, o garrotilho, ou o sarampo, já não sei, poucas escapavam; o terceiro,
o meu irmão Roberto, ainda viveu dezoito anos, pobrezinho, foi um ferro em
brasa que espetou nas partes, era ferreiro, foi um grande desgosto para nós todos,
olha que o teu avô gostava dele como se fosse seu filho, respeitou-o sempre,
tratava-o como nos tratava a nós, meteu-o no padrinho e tio a aprender a arte,
nunca se pensou que o levasse à sepultura. Também era músico da banda da terra.
Teve um grande funeral, os colegas dele não puderam conter as lágrimas! Do teu
avô nasceram… nem eu sei quantos, mas a maioria morreu criança, que naquele
tempo havia muitas doenças, epidemias, as febres, que levava muita alma para o
purgatório e para o céu. Deus sabe o que faz; se Ele os chama para a sua beira,
é porque acha que é bom para eles.
II
As virtudes vegetam no sofrimento
Venham comigo. Agora sou
proprietário de uma modesta oficina de consertos em calçado, que apelidei
pomposamente de “Sapataria Ideal”. O meu ex-patrão, o Hilário, emigrara para
França em busca dos francos, e eu aproveitei o rés-do-chão de minha casa para
instalar aí a lojita. Tudo está a correr às mil maravilhas, mas aproxima-se
inexoravelmente o dia de ingressar na vida militar; sou, por temperamento,
pacífico, não quero fazer a tropa, mas também não tenho dinheiro para pagar ao
engajador. Aproximem-se:
- Ó mestre, as minhas botas já estão prontas?
- Mestre, sim! Um fraco aprendiz. Mestre é o senhor Tinoco, esse
sim, sabe trabalhar com moldes, corta a pele e faz calçado novo; eu, não passo
de um remendão, devia ter estado mais uns anitos a aprender, mas o senhor
Hilário emigrou para o estrangeiro. Quando os velhos morrerem não haverá mais
artistas, o calçado terá de ser comprado nas lojas. Perguntou-me pelas suas
botas. Acabei há instantes de as aprontar, e muito trabalho elas me deram; só o
cortar o pneu para as solas puxou-me bem pelo peito. Espere um bocadinho que
lhe vou pôr mais uma camada de pomada e dar-lhe brilho. Você depois em casa
ponha sebo nelas, assim não deixarão passar a humidade. Ficaram como novas, tem
aqui botas para uma vida.
- Olha que vão para França, vão trabalhar no duro. Lá os invernos
não são para brincadeira, aqui queixámo-nos, mas olha que lá é bem pior, há
dias em que a gente nem pode pegar ao trabalho, as mãos não se podem tirar das
luvas, aquilo é que é cair neve, e o frio é de rachar, não se aguenta. Mas um
homem lá ganha algum, aqui não dava nem para o caldo, é verdade que um homem se
esforça, mas traz dinheiro ao fim de uns anos.
- Ó tio Anacleto, e o que me diz da França? É bonita?
- Ó meu rapaz, nós não dispomos de tempo para visitar nada, vamos
de metrô para o trabalho, voltamos de metrô para a barraca, fazer o comer,
lavar a roupinha, remendá-la, fazer as compras ali na loja ao lado, e nada mais;
dormir poucas horas, às seis da manhã já imos a caminho, aquilo é uma vida
cadela, não gozamos nada, é só trabalho. Depois, quando vimos de férias,
metemo-nos a construir a vivenda, isso é importante, nunca tivemos nada de
nossa pertença, era tudo do patrão, agora começamos a ter qualquer coisa nossa.
- Ó tio Anacleto, acha que eu, com dezoito anos feitos, deva ir
para França?
- Não to aconselho meu rapaz, és muito fraquinho, nunca trabalhaste
nos campos nem nas obras, sempre metido na oficina, não estás curtido pelo sol
nem pelo vento, tens pele de homem da cidade, não tens as mãos calejadas como
nós, as nossas parecem de aço, não sei se te aguentarias; mas experimenta, se
não te deres bem vens-te embora. Mas agora só se fores a salto, por causa da
tropa. Qualquer dia vais à inspeção militar e não te livras, que eles agora
precisam de soldados para a guerra nas colónias, e aquilo está bravo, caramba!
Olha que não sei se fazes bem fugir-lhe, até pode ser que arranjes trabalho
numa fábrica, sempre é mais leve, e estás recolhido, embora ganhes menos do que
nas obras.
- O pior é o diabo do dinheiro, este mester só dá para o caldinho,
não se junta nem um tostão. Se calhar vou pedi-lo emprestado a um parente, pode
ser que o arranje, depois se pagará, até com juros, o pior é se sou preso na
Espanha; perco o dinheiro e ainda por cima vou preso.
- «Quem não arrisca, não petisca.» // (continua)...
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