DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO
Por Joaquim A. Rocha
Cartas de um castrejo
... (continuação)
7.ª - «Sr.
Redactor – trocadas as nossas
impressões no pretérito dia 9, a fim de que a indulgência do “Correio” continue
a ser, para nós, uma garantia segura de que as nossas necessidades serão do
conhecimento público, retiramos com a nostalgia do lar – do nosso lar, onde o
fogo crepita e o escabelo espreita a nossa chegada, rodeado de mesinhas,
ocupadas pelos garotos, que esperam as coisas da feira. Chegamos, enfim, mas
que de peripécias no caminho! Descrevê-las todas, no curto âmbito de uma carta,
seria impossível: mas vamos àquelas que mais nos impressionaram: encapotados,
com a nossa calça de cabedal e a chuva inclemente a fustigar-nos o rosto e a
cegar-nos a montada, largamos do Vila Verde às 16 horas. Calçada arriba, alto a
Cabana, Costa da Rolha, Fiães e Breia (aqui já a neve começa a dificultar-nos a viagem), Alcobaça, Costa de Portelinha e,
atingida, cá estamos em plena "Rússia". A derrota facilita-nos a chegada à vila,
mas que desolação! Na orla dos caminhos divisam-se-nos vultos negros a
destacarem-se da alvura da neve: são reses que a fome e o frio abateram. Um ou
outro candieiro de petróleo, cujas résteas de luz se coam pelas frinchas das
janelas e portas, indicam-nos que estamos na vila castreja. Não tomamos nada.
Vamos para o nosso querido e almejado lar. Ali, depois de fazermos a muda do
fato e o arranjo da montada, ocupamos o nosso lugar à lareira, onde a esposa
carinhosa e os filhos estremecidos nos acalmaram das fadigas da viagem. E,
depois dum caldo reparador e quentinho, filosofamos: que triste a nossa vida!
A neve põe uma insuperável barreira ao
nosso convívio: não temos caminhos transitáveis; as messes nada produzirão, por
vergastadas com estas furiosas intempéries, os batatais morrem; e os javalis,
em quantidade, assaltam-nos as covas, onde ainda guardamos a colheita anterior.
Decididamente, somos um povo enteado desta querida pátria, que tanto amamos e
por quem trabalhamos! Ninguém se lembra (…) que a vida que levamos é um
martírio, lutando com a fereza dos elementos e com a ingratidão e olvido dos
homens. Para a cama, pois, onde a manta já nos reclama, com a esperança de que
sonhos fagueiros nos retemperem a alma. Acordamos que só sonhamos coisas tristes…
Castro Laboreiro, 16/3/1916.» // (continua)...
Nota: ainda demoraria muitos anos, mais de trinta, a construção da estrada para Castro Laboreiro; até 1950, mais ou menos, era uma freguesia esquecida, com cerca de duas mil criaturas a sofrer o rigor do inverno e o sol escaldante de verão. Por estas e outras razões é que em 2015, segundo dizem, só ali moram cerca de quinhentas pessoas, apesar de agora terem boas casas e acessos em ótimas condições. A serra é boa para a caça, para o turismo; para residir, o ser humano prefere a vila ou a cidade, mesmo com a maldita poluição.
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