ESCRITOS SOBRE MELGAÇO
Por Joaquim A. Rocha
Interior da igreja de Lamas de Mouro
OLIVEIRA MARTINS E OS MINHOTOS
Na sua História
de Portugal (Guimarães Editores – 16.ª edição,
páginas 44 e 45)
Oliveira Martins pinta o retrato do homem minhoto com cores assaz cinzentas.
Diz ele: «o transmontano, vivo, ágil,
robusto, destaca-se para logo do minhoto, obtuso mas paciente e laborioso,
tenaz, persistente e ingénuo.» Mais à frente afirma: «a humidade (70 a 100%) torna flácidos os temperamentos e entorpece a
vivacidade intelectual, que nem um frio demasiado irrita, nem um calor
excessivo faz fermentar, à maneira do que sucede nas zonas genesíacas dos
trópicos. Temperado o clima (12 a 15 graus), sem excessivos afastamentos
hibernais, a população satisfeita, feliz, e bem nutrida de vegetais e de ar
húmido, oferece a imagem de um exército de laboriosas formigas sem coisa alguma
do alado e brilhante de um enxame dourado de abelhas.»
Oliveira Martins
nasceu em Lisboa em 1845. Viveu no Porto durante algum tempo e foi deputado por
Viana do Castelo em 1886. Devia, por conseguinte, conhecer razoavelmente o
Minho e os minhotos: por isso, não se admite que tenha tido tão má impressão do
nosso povo. Ele sim, foi obtuso quando chegou a essa infeliz conclusão.
Está mais do que
provado que, em relação a nós, essa asserção é errada: então os minhotos
emigrantes não alcançam ótimos lugares de chefia, não se tornam excelentes técnicos,
grandes gestores, em países tecnologicamente avançados? Se fossem estúpidos,
isso não seria possível. Oliveira Martins viveu pouco tempo e escreveu
demasiado para os quarenta e nove anos de vida. Não teve tempo suficiente para
aprofundar os seus conhecimentos das pessoas e das coisas. Tudo quis abarcar e
o resultado está à vista: como historiador ficou muito aquém de Alexandre
Herculano, e como escritor de ficção (que o poderia ter sido e dos melhores)
falta-lhe o principal, a personagem convincente. As suas personagens estão
eivadas de uma ganga histórica, que as penetra até à raíz. O leitor das suas
obras não sabe se está a ler uma obra histórica ou um romance! Oliveira Martins
falou com desprezo e desdém. E tão aligeiradamente o fez que até se esqueceu
das contradições em que constantemente caía! Primeiro afirma que a humidade
torna flácidos os temperamentos – logo, o minhoto seria molengão; mais abaixo
acrescenta que o minhoto é feliz e trabalha como as formigas, isto é, todo o
ano! Ora, um povo obtuso não pode ser feliz, porque a felicidade advém de uma
consciência tranquila, lúcida, viva. Logo, o minhoto é feliz porque é
inteligente. Por outro lado, está provado que uma alimentação rica em vegetais
e um ambiente puro torna as pessoas bem-dispostas, alegres, saudáveis de corpo
e de espírito. Oliveira Martins não tinha razão e ofendeu-nos levianamente. António
José Saraiva e Óscar Lopes escreveram (ver História da Literatura – 9.ª edição,
página 947) - «o pitoresco de Oliveira
Martins é, todavia, quase sempre convencional e forçado, geralmente um
pitoresco de segunda mão, tendo por fontes textos literários e não uma
percepção pessoal da realidade.» Estes autores não são suspeitos, visto
serem, sobretudo o primeiro, admiradores de Oliveira Martins.
Não é minha
intenção reduzir a cisco a obra de um homem que, apesar de a vida lhe ter sido
adversa na infância, nunca deixou de lutar. Alcançou mesmo um lugar de destaque
na sociedade do seu tempo, chegando a ministro da Fazenda no reinado de Carlos
I. Algumas das suas obras ainda hoje se lêem com agrado – Oliveira Martins foi
um artista da palavra escrita. Vamos, portanto, dar-lhe um certo desconto,
considerando-o apenas um teórico imaturo, que não pôde comprovar as suas
extravagantes teorias.
José Leite de
Vasconcelos, um dos maiores sábios portugueses de todos os tempos, conheceu
muito bem o Minho e as suas gentes, e nunca delas disse algo de mal – bem pelo
contrário. As opiniões sobre os minhotos, que abaixo transcrevo, foram
extraídas da sua monumental obra «Etnografia Portuguesa». Agostinho Rebelo da
Costa, na sua «Descrição da Cidade do Porto» (Porto, 1788, páginas XIX e XX)
diz dos minhotos: «na guerra não há
soldados que se mostrem mais impávidos e se arrojem mais intrépidos aos maiores
perigos; na paz não há gente nem mais quieta, nem mais benigna… na religião são
constantes, no trato agasalhadores, graves nos costumes: os que seguem as
letras fazem nelas admiráveis progressos, de sorte que a Universidade de
Coimbra os distingue sempre com louvor entre os alunos.» Alberto Sampaio
(Estudos Históricos e Económicos, I, páginas 530-534, Porto, 1923), diz: «a sua inteligência não tem um
desenvolvimento precoce, nem a faculdade de compreender no primeiro momento
qualquer questão; a raça é morosa e pesada, mas tem no grau mais elevado a
paciência e tenacidade do trabalho, a sensatez ou juízo prudencial; a feição,
enfim, de dirigir lentamente o pensamento, característica fundamental do seu
génio.» Teixeira de Queirós (Campos da Minha Terra, in Atlantida Lisboa,
1915, páginas 45-52) escreveu acerca do minhoto: «… sempre afectivo, pouco desconfiado, dando-se facilmente, mesmo com
aqueles que não conhece.»
Apesar destes
juízos, uns favoráveis outros desfavoráveis, poder-se-á afirmar sem grandes
receios de erro, que a gente do Minho é pouco diferente da outra gente,
sobretudo da população do norte e centro de Portugal.
P.S. – já tinha o
artigo terminado quando, por mero acaso, dou de caras com a famosa secretária
de Oliveira Martins. Trata-se de uma secretária enorme, em boa madeira e em
ótimo estado. Nela está incrustada uma placa em metal, com os seguintes
dizeres: «secretária de constante
trabalho do escritor Joaquim Pedro de Oliveira Martins (1845-1894). Oferecida
em 13/10/1978 à Sociedade de Língua Portuguesa por sua sobrinha-neta Senhora
Dona Maria Beatriz Salema Barbosa Cobeira.»
Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 953, de 15/12/1991.
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