ENTRE MORTOS E FERIDOS
(dois anos de guerra na Guiné-Bissau)
romance
Por Joaquim A. Rocha
... (continuação)
-
Chegamos finalmente a Melgaço. Nos anos sessenta do século XX era uma Vila minúscula,
sem alma, triste e semi-desértica! Os jovens tinham emigrado. As raparigas, em
grupo, aos domingos à tarde, pareciam andorinhas na primavera procurando o seu
companheiro para, juntos, construírem o seu ninho. As fadas do lar, atingidas
no âmago do seu peito, choravam amargamente. Umas… porque tinham os seus rebentos
por essa Europa fora; as outras, em menor número, porque eles combatiam em
Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. As mães estão sempre em pranto quando os
seus meninos estão ausentes.
- Eu
nunca passei por essa experiência – lembra
Henrique. - Estive sempre com a minha mãe. Quem sabe, um dia…
- Não
tenhas pressa, rapaz; é bom viver com os nossos pais, com aqueles que o são,
porque há criaturas que não merecem esse nome. Mas é melhor não abordar esse
assunto, pois quando falo disso fico sempre triste.
-
Continue com a sua narrativa – propôs
Henrique, amavelmente, verificando que o seu amigo estava deveras emocionado.
-
Durante o período que estive na terra natal trabalhei arduamente, a fim de
juntar uns tostões. Os preços praticados eram baixos, não dava para amealhar; os
meus clientes eram pobres, quase todos pequenos agricultores, mesmo assim ainda
consegui umas centenas de escudos. O implacável calendário ia-me informando de
que o dia de regressar ao CICA-1, assim se designava o quartel, se aproximava
vertiginosamente. Andava taciturno e pensativo. Que raio, por que não podia
fugir, ir para França ou Alemanha, como os outros foram?! Que força, maldito
fado, me obrigava a caminhar em direcções opostas à minha vontade, ao meu sentir,
à minha maneira de ser, à minha ingénita passividade? Estaria a ser posto à prova
por entidades superiores, divinas?! – pensava
eu, temeroso, mergulhado ainda na fase do obscurantismo religioso! Não lera, só alguns anos mais tarde isso
aconteceu, Bertrand Russell (Porque Não
Sou Cristão), nem o surpreendente romance “Jean Barois”, de Roger Martin du Gard, editado pelas Éditions
Gallimard em 1914.
- Nem
Marx, Engels, Lenine, Estaline, Mão Tsé-Tung…
- Antes
de 25 de Abril de 1974 não se podiam ler essas obras em Portugal. A igreja
católica portuguesa, sobretudo a sua hierarquia, e a PIDE, estavam atentos, as
livrarias não podiam colocar à venda esses livros, sob pena de ficarem sem eles
e arranjarem problemas graves com a “justiça”.
A censura era implacável, meu amigo. Se alguém estivesse sob suspeita, a sua
vida tornava-se num inferno, corria perigo. A sua casa podia ser invadida a
qualquer momento, submetê-lo-iam à tortura do sono, podia, inclusive, ir parar
ao aljube, ao Tarrafal, essa maldita colónia penal de Cabo Verde...
- Mas
não eram apenas os militantes do Partido Comunista os alvos da PIDE? – perguntou Henrique, cheio de dúvidas.
-
Qualquer um podia sê-lo, desde que mantivesse um comportamento social que
suscitasse suspeitas aos esbirros de Salazar. Para eles, nós, os que estávamos
contra o regime, éramos todos comunistas!
Mas,
dizia eu, que essas leituras me ajudaram a compreender o mundo. Eu estava de
olhos fechados, completamente! O padre Emiliano, o «santinho», como as beatas lhe chamavam, mais as catequistas,
obstruíram o meu cérebro de criança. Tudo era pecado: desobedecer, recusar,
pensar! Ter imaginação era considerado heresia! Até brincadeiras inocentes
eram, por vezes, vistas com maus olhos. A repressão era o pão-nosso de cada
dia. Tínhamos que rezar o credo, a salve-rainha, eu sei lá, como castigo! E a
cana-da-índia funcionava sempre: na escola e na catequese. Há pecados mortais e
não mortais. Um deles, que alguns padres jamais cumpriram, é aquele que diz: «Não cobiçarás a mulher do próximo»! Quanto
a mim os padres católicos deviam casar, para saberem o que é amar um filho, e o
que custa educá-los com dignidade.
- Esses
grandes sábios ajudaram-no a libertar-se desse jugo irracional, dessa
escravatura do espírito…
- Em
parte sim; o resto é a experiência, o rolar dos anos, o contacto com os outros,
os altos e baixos da vida, a infinita curiosidade. Muitas pessoas não querem
sair do fosso – ficam lá, chafurdando! É cómodo.
2.º Capítulo
CICA – 1
Os
dias agora eram compridos, o sol brilhava, banhando de luz a cidade, mas não
havia aquele calor excessivo do verão. Tudo convidava ao passeio, mas os dois
amigos preferiam conversar, sentados na esplanada, beber umas cervejinhas em
garrafa, e os populares “finos” ou “imperiais”, acompanhadas de tremoços ou
amendoim. Cândido, sabendo do interesse do outro, iniciou a conversa:
- Finalmente a hora da partida chegou. Muito
triste, choroso, amargurado, quase doente, apanhei a camioneta no Largo da
Calçada, ou Largo José Cândido Gomes de Abreu, em homenagem ao fundador do
Hospital da Misericórdia, conhecida por carreira, e depois o comboio em Monção,
em segunda classe, para a grande cidade do norte. O primeiro dia destinou-se a
receber a fardeta cinzenta, cujo capote pesava quilos – só em Abril ou Maio
desse ano de 1965 é que nos entregaram as novas fardas, de cor verde – e as
instruções acerca do funcionamento do quartel.
Tínhamos que conhecer os cantos à casa,
apreender as regras para as cumprir escrupulosamente. As fardas, por mais
estranho e absurdo que isso pareça, não as davam à medida do nosso corpo –
botas com o número 44 entregavam-nas, por vezes, a rapazes que calçavam o
número 39! Essa forma de distribuir os fardamentos mostrava-se, à primeira
vista, caótica, sem sentido, e quanto a mim, era, mas depois, já na caserna,
tudo se resolvia através da troca. Não seria isto também um teste à nossa
inteligência? Ao lançarem esta confusão, os militares de carreira iam
verificando como os jovens recrutas encontravam a saída do labirinto.
-
Engenhoso! Genial! – reconheceu Henrique,
até ali calado.
Cândido,
ao ouvir a voz do seu amigo, quase deu um salto! Imaginara-se sozinho, a
discorrer sobre o seu passado, matando-o se possível, esquecendo-o, pelo menos.
Não estava só, e ainda bem. Aquela amizade livrava-o do isolamento, libertava-o
de pesadelos horríveis. Logo a seguir continuou:
- Uma
gritaria imensa atroava os ares; entregues a nós próprios, extenuados e numa
babel sem rumo, sentávamo-nos sobre as caixas de madeira de pinho que no futuro
nos iriam servir de roupeiro e despensa. Essas caixas tornaram-se mais tarde
motivo para muita rixa, pois os filhos de camponeses e agricultores levavam
nacos de presunto e chouriços da sua casa, da sua adega, e metiam-nos ali; como
cheirava, os improvisados ladrões rebentavam as frágeis arrecadações, as que
não tinham aloquete, e comiam regaladamente essas iguarias. Quando descobriam o
guloso gatuno, havia porrada pela certa. Tinha que vir o cabo, ou o sargento de
dia, apartá-los, de contrário o sangue jorrava.
- O
Cândido chegou a andar à tareia com algum colega?!
- Não
vais acreditar! Um dia, ou melhor, uma noite, quando me ia deitar não tinha
roupa na cama! Que fazer? Comprá-la não podia! Onde havia dinheiro para isso?
Por outro lado, não podia sair do quartel a essa hora. Fiz o que outros fariam
nessa situação: procurei uma cama onde não estivesse ninguém e levei a roupa
para a minha. No dia seguinte aparece um soldado e atira-se a mim! Andamos aos
socos, eu até parecia o Belarmino, e depois veio o cabo e separou-nos. Depois
de tudo esclarecido, fizemos as pazes.
- E a
roupa? – interroga Henrique.
- Já
não me lembro, mas penso que o oficial dia resolveu isso. Os que furtavam as
coisas – sobretudo fardas e calçado – era para depois as vender. Não sei como
conseguiam passá-las para a rua, é um autêntico enigma, pois a vigilância era
apertada!
Eu tinha imensas saudades da minha terra,
da minha gente, dos meus hábitos quotidianos, da minha equipa de futebol, da
minha saborosa comida, do jogo da sueca e dos matraquilhos. A Vila de Melgaço
estava algures, longe, muito longe. Eu sonhava. Primeiro começava a vê-la
vagamente, mergulhada em densas nuvens, de variadíssimas cores; depois, pouco a
pouco, elas adensavam-se de tal modo, que me ofuscavam totalmente a visão.
Possuía asas e voava, sobre os mares e montanhas, mas regressava sempre àquele
sítio onde eu nascera; mas quando me aproximava a minha vilazinha fugia,
desaparecia como levada pelo vento em fúria! Eu gritava desesperado: «Não,
não roubem o meu adorado Melgaço, eu preciso de ver o seu rosto, de respirar o
seu ar, de o abraçar afectuosamente.»
Acordava sobressaltado. Estava ali,
naquele casarão de cimento, com rapazes que se pareciam vagamente comigo, mas
que não falavam a mesma linguagem, embora utilizassem o mesmo idioma. Quem
seriam? Tinham outros costumes, vozes roucas, palavras rudes; ao falarem,
denunciavam a sua origem; palavrões obscenos faziam já parte do seu parco
vocabulário; a agressividade era inerente ao seu temperamento. Olhava para as
suas enormes mãos e pareciam-me garras de ave de rapina, prontas a sonegarem a
qualquer momento, se me distraísse, os meus escassos bens. Tive medo, confesso,
mas não gritei. Esperar; a solução para o meu infundado terror seria esperar. «O
tempo será o meu grande aliado», comentei em surdina.
A corneta tocou a alvorada. Seis da manhã.
Levanto-me a correr, no meio de uma algazarra ensurdecedora. Da camarata íamos
para as casas de banho cortar a barba, no meu caso uns pêlos que no meu rosto
tinham aparecido clandestinamente, sem aviso prévio, e tomar um refrescante
banho. Antes fôramos buscar as toalhas, brancas umas, outras amareladas, de
tanto terem sido lavadas, de um pano grosseiro, a imitar o linho. Todos nus. A
vergonha, o pudor, iriam desaparecendo, pouco a pouco. Depois do banho
fardei-me e dirijo-me ao espelho. Afinal, o meu esqueleto franzino e o meu pé
miúdo, ainda não tinham crescido para a vida de guerreiro!
- Você
tinha vinte anos, era um homem – comenta
Henrique, quase esquecido, enterrado na cadeira, bebericando cerveja e comendo
uns tremoços.
- É
verdade, fizera vinte anos havia sete meses, mas o meu corpo era pequeno e
magro, pouco mais pesava do que cinquenta quilos!
-
Depois engordou com o rancho – riu-se Henrique.
- Nem
sequer fazes ideia do que era aquela porcaria. Ao pequeno-almoço davam-nos um
pão grande, chamado casqueiro, para todo o dia, um púcaro de café com leite e
um bocadinho de margarina ou marmelada, feita, salvo erro, de maçã! Ao almoço e
jantar um caldo de couves, aguado, sem azeite, com uns bocados de carne, ou
gordura de porco, de terceira categoria, sem lavar, quantas vezes fora do
prazo, provocando um cheiro nauseabundo, e o presigo, carne ou peixe,
acompanhado de batatas, arroz ou massa. Tudo mal confeccionado e sem higiene. Muitas
vezes na sopa apareciam pedaços de piaçaba, que caíam da vassoura quando os
faxinas – ou ajudantes do cozinheiro – esfregavam as panelas. Não esquecerei
jamais a primeira refeição: arroz de polvo. Intragável! A cem metros de
distância já se obtinha a indescritível sensação de estarmos perto de uma fossa
a céu aberto. Não comer, seria o nosso fim; comer, era um sacrifício. De
qualquer modo, não existia alternativa. Comparecer às refeições e comer, ou
fingir que se comia, era obrigatório – fazia parte do regulamento. O homem, o
ser humano, senhor do mundo mas não senhor dele próprio, tem de se adaptar ao
meio que o rodeia. Teríamos que nos habituar, e quanto mais depressa
melhor.
- Você
é fidalgo! – ironizou Henrique, desejando
desdramatizar.
- Nem
por isso. A minha mãe era cozinheira profissional, num hotel das Termas do Peso,
e por isso eu estava habituado a comer comidinha bem feita. Mas também te digo:
por incrível que isso pareça, alguns jovens das zonas rurais, campónios,
maltratados pela vida dura do campo, não estranharam. Pelo contrário: muitos
deles até engordaram como texugos! Comiam que nem labregos. Tudo que viesse à
rede era peixe. Lembro-me de um que aumentou o seu peso em vinte quilos bem
medidos, no período de quatro meses. Parecia um cevado!
Depois de um dia fatigante, exercício
físico, manejo de armas, condução de pesados, reunimos na parada. Eram seis
horas da tarde e o corneteiro estava pronto a tocar para a janta. Momentos
antes mirei novamente a minha ridícula figura no espelho. Sorri, sem querer.
Que diriam os meus conterrâneos se vissem este pequenino corpo enfiado naquele
desmedido uniforme? Troçariam de mim, de certeza absoluta! A corneta tocou. Era
o relógio de ponto, o ditador implacável, o hitler mecânico. A partir desse dia
andaríamos sempre ao toque dela: para levantar, para as refeições, para os
exercícios, para recolher, para tudo!
Destroçar e refeitório. Desatei a correr atrás
dos outros. À nossa espera estavam os “velhos”;
queriam rir à nossa custa. E riram! Tinham sido, no passado recente, também
eles, alvo de chacota, de gargalhadas mil. Vingavam-se.
Henrique
não fizera a tropa, porque quando tinha vinte anos a guerra colonial já terminara.
Não precisaram dele. Por um lado lamentava tal facto, pois dizia-se que quem
não fosse militar não era homem, mas por outro lado agradeceu, visto ter-lhe
permitido estudar sem sobressaltos. Perguntou:
- E os
sargentos e oficiais, não comiam com vocês?
- É
óbvio que não, meu amigo; eles possuíam refeitórios separados, a que chamavam
messes, e aí, a comida, segundo constava, era óptima. Servidos com delicadeza,
com abundância… Até vinho bom bebiam – nós bebíamos a zurrapa, vinho batizado e
mesmo assim, pouco. Ao contrário da maioria dos soldados, a sua pele era
luzidia, bem tratada, o que só se consegue através de uma saudável alimentação.
Eu lembro-me de algumas crianças da minha parvónia, raquíticas, com pele de
velhos, porque andavam mal alimentadas.
Permaneci no Centro de Instrução de
Condução Auto (CICA-1) dois meses.
Sessenta dias de intensos e temerários exercícios: capacete metálico na cabeça,
armas às costas… Sabes que muitos rapazes apanharam uma doença qualquer no
couro cabeludo por causa dos capacetes?!
- Não
me diga? – exclamou Henrique, admirado.
- É
verdade! Não punham nada entre o capacete e o cabelo e assim os micróbios que
havia na armadura passavam para a raiz do cabelo, sobretudo quando se suava, o
que acontecia diariamente. Alguns ficaram sem um único cabelinho!
- E
você, não apanhou o vírus?
- Não,
porque eu colocava um lenço enorme na cabeça; tinha nojo, asco, do capacete –
já tinham servido, segundo constava, na Primeira Grande Guerra, em 1917 e 1918,
quando os portugueses lutaram em França contra os alemães.
-
Caramba! Eram antigos, os bichos!
-
Todos os cuidados são poucos para preservarmos a saúde. Mas o que mais me
custou naqueles longos dois meses foram os vexames, aquelas ordens que soavam
como vergastadas no meu frágil corpo – doíam por dentro: «Não pára. A correr, a correr.» «Quem cair leva um pontapé no traseiro.» «Salta o galho, seu nabo!» «Não
sou capaz, meu aspirante.» «Filho da
mãe, levas cinquenta flexões de castigo.» E as humilhações eram contínuas:
«Ó recruta!» «Sim, meu sargento.» «Sabes
andar de bicicleta?» «Sei, meu
sargento.» «Então vais varrer a
parada!» A vassoura era enorme! Os prontos passavam e riam-se, aquele riso
sarcástico, que penetra fundo na alma da gente.
Quando queria sair à rua, o que raras
vezes era permitido, tinha que pedir no portão de saída ao oficial de dia,
normalmente um aspirante ou alferes. «Posso
sair, meu alferes?» «Ora deixa-me
ver. As botas não estão mal engraxadas, não senhor, mas esses amarelos… deixam
muito a desejar.» «Meu alferes,
estive quase meia hora a limpá-los, até brilham…» Ele irritava-se, ou
fingia: «Eh, pá! Estás a gozar comigo?
Vais limpá-los imediatamente.» «Sim,
meu alferes.» Cabisbaixo, resignado, lá ia eu outra vez para a caserna, dar
mais uma esfregadela nos metais da farda – parecia ouro a brilhar! O estômago
podia estar vazio, mas o exterior, esse tinha que estar bem tratado!
- Isso
revoltava – reagiu Henrique com
espontaneidade.
- Nada
de armar em esperto, meu amigo, isso ali não resultava. Executar as ordens,
justas ou injustas, dadas por aqueles seres sentados num pedestal, mais
poderosos do que os deuses do Olimpo, e calar. Tinham muito poder aqueles
sacanas, até nos podiam matar à porrada! Houve casos em que isso ia
acontecendo, depois argumentavam que o soldado era anarquista, não quisera
obedecer às suas ordens, enfim, ficavam sempre na mó de cima. Os oficiais
superiores, até ao general, davam-lhes sempre razão, mal do soldado – ia parar
à cadeia ou à enfermaria. A seguir, logo que melhorasse, mandavam-no para a
frente de batalha, para morrer!
- Era
quase um assassínio!
- Mais
ou menos. Camuflado, mas um crime, sim…
-
Tempos difíceis, meu amigo, tempos difíceis.
- Podes
crer. E como se não bastasse, ainda tive que apanhar uma vacina que me levou à
cama com febre. Colocaram-nos em fila indiana, junto à enfermaria, e os
enfermeiros – semelhantes a magarefes – iam espetando nos nossos braços a
agulha; minutos depois outros iam injectando o malvado líquido. Alguns rapazes
não reagiram bem à vacina e tombaram no chão desmaiados! Nesse dia assustei-me
deveras. Pensei não resistir.
- Foi
dose para cavalo! – aventou Henrique.
- Era
precisamente isso que todos dizíamos. Quase que nem um elefante aguentava. Os
mais antigos, talvez para nos gozar, ou quem sabe, com pena de nós,
aconselhavam-nos a ir ao bar beber vinho. «O álcool atenua o efeito», diziam
eles. Os enfermeiros, esses, pediam-nos que aguentássemos, pois dentro de uns
meses iríamos para África, e estas vacinas evitariam as febres que grassavam
com frequência naqueles climas quentes.
O
quartel ficava paredes-meias com o Palácio de Cristal e perto do rio Douro.
Talvez por isso me tenha deixado algumas réstias de saudades quando de lá parti.
Podendo, ia até ao rio, ver os pescadores pescarem, lembrava-me sempre o meu
rio Minho, as margens mais bonitas, mais verdes, aqui e ali surgindo uma fonte
natural, água fresca, nunca mais encontrei em parte alguma dessa água maravilhosa.
O rio Douro era maior, mas sujinho, coitado. As suas margens, no Porto, não são
belas nem naturais. Construíram casas abarracadas, onde vivem centenas de
pessoas miseráveis e com pouca, ou nenhuma instrução. No Minho era diferente:
os arvoredos, os campos de milho e de centeio, as vinhas, dão à paisagem um tom
alegre e colorido. De um lado os galegos e de outro os portugueses, umas vezes
à pancada e outras vezes aos abraços!
O poeta
monçanense João Verde soube cantar em verso como ninguém essa
proximidade/afastamento: «Vendo-os assim
tão pertinho/a Galiza mail’o Minho,/são
como dois namorados/que o rio traz separados/quase desde o nascimento…»
Durante esses dois meses de permanência no
CICA-1 fiquei a conhecer razoavelmente a capital do norte: as suas grandezas e
misérias, as suas belezas (monumentos
extraordinários) e fealdades (ruas
estreitas e íngremes, quase sempre sujas e mal cheirosas, gente bêbada e pouco
educada).
- Mais
misérias do que grandezas, talvez? – pergunta
Henrique, com redobrada curiosidade.
- Na
cidade média e grande está tudo equilibrado. Mas estava eu a dizer… Ah! já me
lembro. As montras das lojas eram a minha atracção favorita: atraíam-me, como
os brinquedos atraem o bebé. Olhava, bronco, embasbacado, para os objectos
nelas expostos – um autêntico papalvo! Aquelas luzes variegadas, os milhentos
anúncios luminosos, fascinavam-se, arrastavam-me para outro mundo, para o sonho,
para o devaneio…
-
Estava a nascer em si um poeta.
(continua)...
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