GENTES DE MELGAÇO
Por Joaquim A. Rocha
Crimes
FERNANDES,
António. Filho de Maria Ludovina Fernandes, moradora em Casal Maninho, Penso. Neto materno
de José Fernandes e de Rosa Maria Domingues, do dito lugar. Nasceu a 8/1/1863 e
foi batizado a 10 desse mês e ano. Padrinhos: Manuel António da Lama, casado,
rural, de Felgueiras, e Rosa Teresa Barbeitos, solteira, de Paradela. // Foi
para Lisboa, ainda novo, onde conheceu uma moça, com quem viveu maritalmente.
Tiveram dois filhos. // Teria perto de trinta anos de idade quando deixou o
trabalho de cabouqueiro nas obras e entrou para uma quadrilha de ladrões,
constituída por Santiago Rey y Lopez, António da Fonseca Pinto, Alfredo Gomes,
João Esteves e Romão Louzada. Eram desordeiros e jogadores, frequentadores
assíduos das tascas imundas, cheias de gente miserável e mesquinha. // Um dia,
numa dessas tascas, o João Esteves diz aos outros: - «Como sabem, sou do concelho de Monção. Ontem escreveram-me dali,
participando que minha tia, governante em casa do reitor da freguesia de
Troviscoso, recebeu um conto de réis duma herança. Não acham que seria um “golpe
real” apanharmos aquele dinheiro? Além disso, o reitor também possui pé-de-meia.
De uma cajadada matam-se dois coelhos. Que dizem?» Alguns argumentaram com
o preço da viagem, com a distância, o desconhecimento do sítio, enfim, não
estavam dispostos a encetar aquela aventura tendo ali à mão de semear algumas
casas bem recheadas. Apesar de tudo, o João Esteves lá os convenceu. Empenhavam
alguns bens no prego e com esse dinheiro meter-se-iam a caminho. A 25/6/1892,
em casa de Alfredo, encontraram-se de novo. Foi nessa altura que Romão
apresentou aos companheiros Santiago Rey y Lopez, a fim de fazer parte da quadrilha.
Decidiram então que o chefe nesse assalto seria Romão. Partiram para o Minho a
28 de Junho. Como só havia comboio até Valença tiveram que ir a pé a partir
dessa vila alto-minhota. Chegados a Troviscoso, refugiaram-se na mata que havia
ali perto. Entretanto um deles foi comprar alimentos a uma mercearia de aldeia.
Os bandidos dirigiram-se de noite a casa do tal reitor. Os criados do sacerdote
regavam as geiras da terra, por isso os seis gatunos tiveram de regressar ao
esconderijo; teriam que aguardar algum tempo, até que os serviçais fossem dormir.
Por volta da meia-noite decidiram avançar. Tiveram pouca sorte. Um dos criados
ainda não se fora deitar. Ao ver os bandidos correu à procura da espingarda que
a seguir disparou. Os salteadores fugiram a sete pés para o bosque. O João
então disse: «É melhor abandonar o primeiro
plano e deixar em paz minha tia; aqui perto mora um lavrador, o “Rendeiro”, que
avesa bons cabedais; vive com duas filhas, lindas como os amores. Vamos até lá?»
Chegaram a casa do agricultor de madrugada. Na horta andavam dois jornaleiros
com sacholas nas mãos. Ficaram desapontados. Iam ali para roubar, não para
matar. É nessa ocasião que António Fernandes, por alcunha o “Guerra” (*),
lembra aos companheiros que sua mãe trabalhara em Vilar, Alvaredo, em
casa do padre Manuel António de Sousa Lobato, o qual residia com seu irmão e
sua irmã, esta casada. «O reverendo tem
bons capitais, e não seria mau limpar-lhos», diz ele. Os outros acharam a
ideia excelente, pois estavam a ver que voltavam para Lisboa de mãos a abanar.
O Guerra e o Santiago foram comprar alimentos à loja de António Luís Pereira,
dos Moinhos, Paderne. No regresso, e depois de comerem, o Guerra traçou a lápis
num papel a configuração da casa do presbítero, pois conhecera-a muito bem. Até
sabia onde os seus moradores dormiam. Os bandidos permaneceram na mata até às
duas da madrugada de 2 de Julho. A partir dessa hora foram-se aproximando da
casa do padre Lobato. Iam todos armados, com exceção do Alfredo, que dera ao
Guerra a sua pistola. «Fonseca levava um
punhal, Romão uma navalha de ponta e mola, Santiago um revólver e um cacete, e
João outra pistola pertencente ao Guerra.» A entrada na vivenda seria
fácil, pois numa estrumeira encontraram uma escada, a qual encostaram a uma
janela. Como os moradores conheciam o Guerra, ficou decidido que ele não
entrava – ficaria a vigiar. Santiago foi o primeiro a penetrar na habitação e
fez um barulho dos diabos. Quando os cinco já se encontravam no interior, Romão
acendeu a vela que fora adquirida na dita loja. Viram então, a um canto da
sala, quatro espingardas carregadas. Deitaram-nas pela janela fora. Entraram no
quarto do padre à procura de dinheiro. Este acordou. Soltou um grito, ao ver os
larápios, e tentou defender-se. Romão apagou a luz, mas entretanto já o
sacerdote se agarrara a Santiago. Os outros puxaram das navalhas e esfaquearam
o padre, que caiu no chão inanimado. O seu irmão e cunhado apareceram e
travou-se luta renhida; porém os bandidos levaram a melhor, mas os gritos dos
feridos despertaram a vizinhança, pelo que os malandros tiveram que fugir sem
levar nada. O Guerra, vendo aproximar-se pessoas, deu à sola, a fim de não ser
apanhado. Os outros só mais tarde o encontraram. Chegados perto de Monção, um
deles, o João, separou-se dos colegas, dizendo-lhes que ia para Cristelo, freguesia
de Bela, para a casa da sua antiga ama, a fim de ser tratado, pois tinha um
ferimento no pescoço. Os outros dirigiram-se para o Extremo, perto dos Arcos.
Pelo caminho compraram pão e chouriço, pois já não se alimentavam há várias
horas. Dali seguiram para Braga. Guerra e Fonseca continuaram a caminhada até
ao Porto. Tudo feito a pé! Romão e Alfredo foram no dia seguinte de comboio.
Santiago ficou em Braga durante dois dias a fim de vender o revólver, o que
conseguiu por 1$000 réis. Da capital do Minho seguiu a pé para o Porto, e dali
partiu para Lisboa, chegando a pedir esmola pelo caminho. Alfredo, Fonseca e “Guerra”
empregaram-se nas obras da estrada da Circumvalação, no lugar de Pereiró, freguesia
de Ramalde. Pelos jornais iam sabendo notícias; a polícia nada descobrira acerca
deles, mas já prendera uns quantos suspeitos. O “Guerra”, já farto do Porto,
resolveu meter-se a caminho da capital do país. A namorada e os filhos aguardavam-no.
Ao chegar a Sacavém acabou-se-lhe o dinheiro. Teve que pedir esmola. Foi
comendo o que lhe ofereciam e lá chegou finalmente a Lisboa. Levara sete dias e
meio na viagem. Lá chegado, arranjou trabalho numa pedreira, nos Prazeres.
O padre Lobato
faleceu vinte e um dias depois do crime, ou seja, a 23/7/1892. Dias antes recebeu-se
na casa de Vilar uma carta anónima, informando que os assassinos residiam em
Lisboa. O cunhado do eclesiástico foi entregar essa carta ao delegado da
comarca. Uma cópia da mesma foi enviada ao Dr. José Manuel da Veiga, comissário
da 3.ª Divisão, em Lisboa. Descobriu-se que o seu autor fora o calceteiro da
Câmara, José Manuel Rodrigues. Escreveu a missiva, segundo ele, porque não
queria que os suspeitos pagassem pelos verdadeiros criminosos. Indicou os
operários que se ausentaram sem qualquer explicação e graças a isso os bandidos
foram descobertos. O melgacense foi capturado na dita pedreira a 2/8/1892. O
“Guerra” «que era, na verdade, o melhor
dos bandidos», perante o interrogatório baixou a cabeça e disse: - «Pois bem! Já vejo que estou perdido. Vou contar
como se passou essa brincadeira.» O Alfredo confirmou mais tarde a
confissão do companheiro. O Fonseca não quis admitir a sua participação no
crime, mas o António Fernandes convenceu-o a confessar com estas palavras: - «Ó homem! Fomos seis a comprar a melancia,
temos todos seis que comê-la. É melhor falar a verdade e não estar para aí a maçar
mais.» Na noite de 9 de Agosto os quatro criminosos (faltava ainda capturar Romão Louzada e João Esteves) foram encaminhados para Melgaço, a fim de serem julgados.
Seguiram de comboio até Valença, algemados, numa carruagem de 3.ª classe, e
escoltados por vários polícias. O “Guerra”, antes de se meter no comboio, pediu
para falar ao Dr. Veiga: «Sr. Comissário,
só uma coisa lhe suplico – é que tome conta e proteja a minha filhinha que tem
apenas cinco anos.» O Comissário prometeu-lhe que iria tratar disso. //
Nessa altura publicava-se em Melgaço o jornal «Espada do Norte», que sucedera
ao «Melgacense», dirigido por António Avelino Douteiro. // Da cadeia de
Melgaço, pouco segura, foram transferidos para o Porto. Entretanto João Esteves
também foi preso e seguiu para junto dos outros. Apenas o Romão se safou. // O
julgamento, feito no Tribunal de Melgaço, verificou-se a 3/8/1893. // António
Fernandes, o “Guerra”, foi condenado em oito anos de prisão maior celular,
seguido de doze de degredo, ou na alternativa de vinte anos de degredo. Os
outros quatro apanharam oito anos de prisão maior celular, seguida de vinte
anos de degredo, ou na alternativa de vinte e oito anos de degredo. A 7/11/1893
confirmou-se a sentença, e a 24/1/1894 os cinco criminosos recolheram à
Penitenciária. // Em 1897 António Fernandes ainda se encontrava na Penitenciária
de Lisboa. Nada mais sei dele.
/// (*) No
«Correio de Melgaço» n.º 236, de 11/2/1917, fala-se no António Fernandes,
chamando-lhe «celerado “Bera”», em lugar de “Guerra”.
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