MELGAÇO E AS INVASÕES FRANCESAS
Por Augusto César Esteves
(continuação)...
Na
torre de menagem o velho relógio anunciara há muito a entrada do dia 9/6/1808
na roda dos tempos, quando Caetano José de Abreu Soares acabou de ouvir da boca
do cunhado as sensacionais notícias do Porto. O descendente dos Gomes de Abreu
riu-se ao ouvir a feliz nova e bateu as palmas de contente, porque a ideia da
revolta contra o domínio francês em Portugal tinha já fundas raízes na alma
melgacense. Esperavam todos, apenas, a ocasião oportuna para o estalar do
movimento. Aparecera agora e aproveitar-se-ia pelos cabelos. // Se Melgaço não
tivesse sido já trabalhado a tempo; se há muito não se tivessem cruzado
comentários e trocado confidências; se a terra não houvesse sofrido vexames e
extorsões e não tivesse comparado com estes de agora os tempos passados, não
era a simples transmissão de uma notícia, embora mui grata fosse ela aos
ouvidos, a forjadora do espírito revolucionário preciso para fazer estalar a
revolta da noite para o dia, ou mais verdadeiramente, duma hora para a outra. Esse
espírito, essa alma revolucionária, criara-se a pouco e pouco no meio e muito
conscientemente algumas figuras melgacenses a fomentaram e exacerbaram. // Melgaço
levantar-se-ia, pois, como um só homem naquele mesmo dia 9/6/1808! Era dia de
feira? Melhor; pois mais peitos haveria para a arremetida e mais bocas para
cantar, depois da vitória, hossanas ao Senhor. Dentro das muralhas havia ainda
sete peças de artilharia e, se fosse necessário, com a gente válida do termo
reorganizar-se- iam, de novo e em cheio, as companhias de ordenanças para sua
defesa. De qualquer parte nos havia de chegar o apetrechamento necessário para
as armar eficientemente.
Melgaço
levantar-se-ia, pois, como um só homem. O fidalgo galego exultou também. Como
companheiros trouxera consigo vários familiares e alguns cabecilhas do
movimento espanhol raiano, entre eles, o abade de Desteriz e o corregedor de
Milmanda, aquela praça de armas ali para os lados de Cela Nova, perto de
Acevedo, que tomou voz pelo nosso Dom Fernando, quando em 1369 muitos dos
fidalgos galegos vestiram as armas para fugirem à ferocidade de D. Henrique,
rei de Castela, o cruel assassino de seu próprio irmão, D. Pedro I e depois, em
3 de Julho da era de 1408, ou seja no ano de 1370 foi doada pelo mesmo D.
Fernando ao fidalgo galego, seu partidário e vassalo, Álvaro Rodrigues de
Límia; aquela Santa Maria del Alcazar de Milmanda a cuja jurisdição pertenciam
Santa Maria de Leirado, a Pousa, Cresciente, Desteriz e todas essas terras
fronteiriças de Cristóval, tão conhecidas dos melgacenses por muitos lá
possuírem bens e outros dinheiros; a vilória naqueles tempos tão florescente e
hoje tão decaída da sua antiga importância, que apenas mostra aos raros
visitantes as ruínas do seu castelo, sem alcaide, sem guarnição nem tinir de
armas.
- Pero,
hombre, quede-se usted! - disse o galego
para o cunhado. – Se os melgacenses ocupavam hoje a sua praça de armas e
hoje mesmo aclamavam o príncipe regente, báia!
Caramba! - Se faziam tudo isso, e tão
asinha, deixassem-nos, a eles, galegos, alinhar também contra o inimigo comum
das suas pátrias e gozarem no fim o prazer da vitória, o melhor manjar para o
seu patriotismo!
- Si
hombre! Pero, porque no? - e, a sorrir-se,
assim aquiescendo, o fidalgo melgacense batia palmadinhas amigas no ombro do
fidalgo Mosqueira.
Os cunhados eram ambos valentes e patriotas
e um momento bastou para criar e cimentar entre eles o mais perfeito
entendimento. Não se podia perder tempo; era preciso pôr-se já em contacto com
alguns vultos da terra, avisar, prevenir a gente e combinar, dar os últimos
retoques à coisa. E Caetano José não perdeu tempo. Os seus dois criados saíram
logo com recados para o Corregedor e para o Juiz de Galvão, a fim de ambos
eles, sem detença, virem falar com o fidalgo da Casa de ao pé da Matriz. Vieram.
E afora eles, outros foram as pessoas que, naquela manhãzinha, passaram pela
casa armoriada. A primeira a comparecer foi o Juiz de
Fora, Dr. Filipe Osório Freitas Machado, do Desembargo do Príncipe
Regente, corregedor com exercício de juiz de fora e alçada no cível, crime e
órfãos na vila de Melgaço. Chegara à terra para ocupar a vaga deixada pelo seu
colega, o Dr. António Bandeira Monteiro Subagôa e Vasconcelos, Fidalgo da Casa
Real, cuja passagem pelas cadeiras da nossa Câmara deixou ficar assinalada na
memória, conservada quase um século na casa onde viveu, na actual rua Velha,
antiga rua da Calçada e hoje se vê na parede poente do quintal da Escola Conde
de Ferreira, a fazer fundo ao fontanário de S. João: «À generosidade da
nobreza e povo de Melgaço fez consagrar esta memória eterna o seu juiz de fora
António Bandeira Monteiro - Ano de 1804»
O Dr. Filipe Osório não era
homem que dificultasse a vida ou criasse antipatias. No próprio dia da
apresentação da carta de mercê do cargo aos vereadores da Câmara mostrou a sua
estremada cortesia e encantadora simplicidade. Por isso o apreciaram desde a
primeira hora, como lhe admiraram depois a força de alma, a resolução, a
firmeza e a coerência nos actos.
No convívio com velhos
amigos, outros amigos granjeou; mas quem desejasse apreciar a sua lúcida
inteligência, ou o seu lídimo carácter, tinha de o procurar nos Paços do
Concelho, e ali, quer nas sessões da Câmara, quer nas audiências do tribunal,
via-as sobressair através da isenção do seu proceder. Embora, por vezes, désse
comissão para a prática de vários actos judiciais ao Dr. do Rio do Porto, ao
Dr. Torres da Quinta de S. Julião ou ao Dr. Luís Soares Calheiros, quase sempre
era ele quem presidia às audiências.
Nesses dias, e eram dois
por semana, o porteiro do tribunal, António Rodrigues Monteiro, ia à sua casa,
cedo, buscar os feitos despachados e pouco antes do início das audiências o alcaide
do juízo, José António Pinto, ia lá pôr-se às suas ordens. Empunhando a vara
branda da justiça, com o alcaide a servir-lhe de ordenança, o corregedor fazia
o percurso da casa ao tribunal, onde o esperavam já os escrivães Costa Brito,
Pêro de Sousa e Gomes de Abreu, o distribuidor João Manuel de Araújo Teixeira,
o inquiridor, os advogados, partes, etc.
O porteiro, ao ele entrar
nos Paços do Concelho, tangia nervosamente a sineta do tribunal a chamar os
retardatários, ou qualquer desgarrado pelas tabernas a matar o bicho ou a
beberricar o último copo. Sentado na poltrona de braços, encostada a vara à
parede da sala, publicava os feitos; ouvia os presos, se os havia; despachava
oralmente os requerimentos anotados no protocolo; administrava, enfim, justiça
recta e pronta a todos quantos, para isso, a ele recorriam.
Neste ano de 1808, num dos
primeiros dias de Abril, mandou citar a D. Jerónima de Araújo, da Quinta de
Soengas, para em vinte e quatro horas, descrever em inventário de maiores os
co-herdeiros e os bens que ficaram no casal por falecimento de seu marido, o
capitão de ordenanças Sebastião Gomes do Souto, e o processo lá estava a correr
termos, como tinham requerido a filha e o genro, D. Mariana de Araújo e marido
Joaquim José de Caldas Bacelar, da Quinta da Barqueira. Horas antes, na
audiência anterior, mandara ler e publicar a sentença por si escrita nos autos
de libelo de bens de raiz, requeridos por António de Abreu Magalhães, da Quinta
da Orada, com a assistência do Dom Abade e mais frades do Mosteiro de Fiães, da
Ordem de São Bernardo, contra Manuel de Freitas e muitos outros de Paçô, de
Rouças e da Portela do Couto, Lages e mais lugares de Chaviães, por se terem
introduzido no seu prazo da Orada, apoderando-se do monte de Fora, ou monte do
Cano, lá cortando mato, colhendo castanhas, etc.
Tinha-lhe dado trabalho, o
processo, mas gostara de ver a cópia daquele documento do século XII, o tal das
Calendas de Novembro da era de César de 1211, que os frades de Fiães deixaram
copiado nos pergaminhos do «Livro das Datas» por esta forma: // (continua)...
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