ESCRITOS SOBRE MELGAÇO
Por Joaquim A. Rocha
Casa do juíz Pinto
A EMIGRAÇÃO E A
LÍNGUA PORTUGUESA
A língua portuguesa é, como toda a gente
sabe, uma das línguas neolatinas, isto é, pertence àquele grupo de línguas que
tiveram origem no latim, tal como o castelhano, o catalão, o galego, o francês,
o italiano, o romeno e o provençal. Não é de admirar por isso que os emigrantes
portugueses consigam – em relativo pouco tempo – aprender essas línguas: o seu
sistema fonológico e sintático são idênticos. A língua inglesa e alemã já se
tornam para nós portugueses, sobretudo para os adultos, mais difíceis de aprender. Vejamos este exemplo em
três línguas: - Tenho cabelos loiros e olhos castanhos. // J’ai les cheveux
blonds et les yeux bruns. // I have fair hair and brown eyes.
Como se vê, na
língua inglesa a sintaxe (disposição e combinação das palavras na frase) é
diferente da sintaxe das línguas neolatinas. Quanto aos vocábulos… nem se fala!
É raro encontrarmos semelhanças. Pneu, é pneu em francês e tire (ou tyre) em inglês;
guiador, é guidon em francês e handlebars em inglês, etc. Uma coisa, porém, é
aprender uma língua, outra coisa é falar essa língua corretamente, isto é, de
acordo com a norma constituída. A nossa língua tem duas normas: uma em Portugal
e outra no Brasil. Os países africanos de língua portuguesa: Angola,
Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, adotaram a norma de
Portugal, embora surjam desvios bastante significativos, tanto na fonética, como
na sintaxe. A norma portuguesa apoia-se nos falares cultos de Lisboa e Coimbra.
Os emigrantes portugueses, na sua maioria, são oriundos de meios rurais,
possuidores, por conseguinte, de um léxico muito limitado, embora rico de
termos tradicionais, os quais constituem o seu património linguístico.
Com o advento da
emigração o léxico do emigrante enriqueceu-se substancialmente porque
confrontado com realidades diferentes daquela a que estava habituado. A sua
inserção num universo linguístico estranho, num meio por vezes hostil, mesmo de
índole racial, levou-o a criar o seu “dialeto”, designado pelos especialistas
de emigrês (este termo não é de modo algum pejorativo). Esta nova “língua” é
constituída por vocábulos do português e da língua do país onde o emigrante
trabalha: França, Alemanha, Suíça, Estados Unidos da América, Canadá, etc. Uma
frase como esta, da língua francesa: «Il faut développer le Portugal», em
emigrês apresentar-se-ia assim: «É necessário develupar Portugal.» Existe até
um pequeno dicionário do emigrês e é impressionante a deturpação da nossa
língua. No entanto, facilitou, e facilita ainda, a comunicação entre as
comunidades emigrantes. Vamos exemplificar: quem, em Melgaço, tinha baixa por
doença? Ninguém. Logo, o emigrante que trabalha em França não diz que está com
baixa por motivo de doença, mas sim que está de arreta (arrêt). O salário é
peia (paye), a moeda peça (pièce), o lugar é praça (place), subir é montar
(monter), encontrar é trovar (trouver), registar uma carta é recomendar uma
carta, a mala transformou-se em valisa. Ao ascensor chamam censor, ao
desemprego chomage, ao contrato chamam contrata. Quando solicitam ajudam,
dizem: - «Dá-me aqui um cu de mão (coup de main). A reforma é retrete
(retraite); daí dizerem a Caixa da Retrete, em lugar de Caixa de Aposentações!
Os emigrantes que se encontram em países de língua inglesa criaram o portinglês
(português + inglês). Ao gelado chamam açucrim (icecream), farmar é dedicar-se
aos trabalhos na quinta (to farm); afordar é estar em condições de pagar (to
afford); à Beneficência Pública dão-lhe o nome de alferes (welfare); ao
conhecido bar designam por barrum (bar room); o homem importante (big shot)
passou a ser beguechato; o bacon (palavra ainda não traduzida para a nossa
língua) é a beica ou beique; a cerveja é bia; o negócio (business) aqui é muito
maltratado – vejam lá: bisnas! Para o frio e para o calor têm o arcandeixa, ou
seja, «air conditioner». E ariape, isto é, despacha-te (hurry up) porque é
tarde. Não sejas bambo (vagabundo = «bum») e trabalha. Como não se pode baquear,
quer dizer: voltar atrás (to back up) vamos dizendo mais uma coisas – se o
bossa (chefe) nos deixar, é claro. E como não somos gente de faibrar ninguém
(subornar = «to bribe») vamos meter o breique (travão = «brake») na conversa
porque isto pode dar checa (barraca = shack») e nem vendendo todas as minhas
cheias (ações = «share») poderia pagar os estragos. Vamos então chinglar a
nossa fachada (to shingle) antes que me chutem (to shot), isto é, que me
atinjam com balas – mesmo que as mesmas sejam de borracha. Metamos então as
palavras na clauseta (roupeiro = «closet») e clinemos (limpemos = «to clean») a
nossa linguagem. Bebamos um copo (chávena = «cup») de chá, acompanhado de
pipocas, que se compram na corna popa (corn popper). Para ir para a
Universidade é necessário fazer a escola Alta (Higt School). O espírito
(spirits) se for bebido com regra até faz bem. Como hoje estou «off», quer
dizer, estou de folga, e não tenho os fletes (pneus) em baixo, vou colocar os
meus glassas (óculos) e dar uma volta. Você vá para o gorele (que é como quem
diz – vá para o inferno de Dante «go to hell). Como sou um grinone (emigrante
recém-chegado = «greenhorn») e para ter algo na despensa tenho que comprar
grosserias (artigos de mercearia = «groceries»), mas não posso comer muito
senão ainda a imbulança tem de me levar ao hospital (apesar daí haver bonitas
norsas, ou seja, enfermeiras). Para não levar o saco (ser despedido = «to be
sacked») vou já pagar a lisa (lease) ao senhorio. Como não pretendo pinchar
tempo aos leitores (to pinch = roubar) o melhor é ir-me embora, quipar (guardar
= «to keep») a esferográfica ou até deitá-la no rabicho («rubbish» = lixo) e
vocês tenham um bom tempo (divirtam-se = «to have good time»), tirem um tiquete
para a Disneylândia e depois digam como foi. Eu limito-me a ver na tubo
(televisão = «tube»).
Além do
francês-português e do inglês-português, poderia também falar do português
africânder, do português-alemão, do português-holandês, do português-espanhol,
etc. Talvez um dia volte ao assunto.
Artigo publicado no jornal A Voz de Melgaço n.º 941, de
15/6/1991
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