LEMBRANÇAS AMARGAS
romance
Por Joaquim A. Rocha
(continuação - ver em 5/6/2015)...
- Canalha; malandro! Tens muita queixa, olha que o tirava da boca
para to dar, quantas vezes nem comia coisa de jeito, só falam, mas de barriga
cheia, pão nunca te faltou, e chocolate, duas e três barras que trazia do lado
de lá, esqueces-te que nasceste depois da guerra de Espanha, e que depois
começou a outra guerra, a grande, tudo racionado, e o patife do teu pai
deixou-me com dois filhos nos braços, o rufia, que os céus caiam sobre ele,
tanto lhe dei, e ele a mim nada, encheu-me o ventre duas vezes, e se não fosse
embora ficava com um rebanho, filho de lucifer, que os dias lhe sejam curtos,
que sofra o que eu sofri por causa dele. Como é que eu tinha tempo de vos
limpar se passava o dia a vender peixe, de porta em porta, para conseguir
alguns patacos para vos sustentar? Por que é que ele não vos levou? Assim já
teriam roupa e comida, mas ele não gostava do trabalho, foi melhor assim, não
vos deixei morrer, canté! Pobre, mas os meus filhos nunca passaram fome, até
tinham mais do que outros, os da Touça, por exemplo, esses, coitados, pareciam
raquíticos, não tinham uma côdea para rilhar. Também, coitadita, ficou viúva e
com filharada às costas, muito ela fez, trabalhava que nem um homem, no
matadouro, a matar animais, depois trazia aquelas porcarias de lá, cheiravam
mal que tresandavam, mas aquilo era para eles um petisco, não tinham mais nada,
vós à beira deles fostes príncipes, nunca vos faltou nada.
- O meu irmão Olavo não diz nada disso, se não fossem os vizinhos
tínhamos morrido à fome, o que nos valeu foi broa com toucinho e um caldo com
couves e farinha, daquele de pôr a colher de pé. Até cebolas e tomate cru
comíamos!
- Ingrato! O que ele é, é um ingrato, um mentiroso, um aldrabão;
nunca vos faltei com nada, andava a vender peixe, chegava à noite a casa, mas
nunca iam para a cama sem comer. E tu? Tu mamaste nas minhas tetas até aos
quatro anos, quando eu chegava querias sempre a mama, tive de lhe botar
pimenta, se não nunca a largavas. E olha que paguei sempre às vizinhas, não
ficavam a perder comigo, dava-lhes bons quilos de carne que eu comprava ao
marchante, que pensas tu, que te davam as coisas de graça? Coitados, devo-lhes
muitos favores, mas paguei-lhes sempre.
- Mas o Olavo disse-me que você chegava tarde a casa, já eu estava
a dormir, e vinha normalmente com os copos, com uma grande perua, metade das
coisas ficavam pelo caminho; depois, quando eu cresci, isso aconteceu imensas
vezes, raro era o dia em que você não carregasse uma borracheira das fortes!
- Isso foi por causa do teu pai, pelintra, esse desnaturado deixou-me,
trocou-me por outra, e eu com o desgosto comecei a beber, olha que dantes não
bebia vinho; bebia muita água da fonte, mas depois comecei a beber, mas olha
que nunca desgracei a vida de ninguém, só a minha.
- E a nossa.
- Tendes muita queixa, não tendes pai, mas olha que também esses
por aí não o têm, e não se queixam, até parece que têm o rei na barriga, e não
têm a vossa educação, sois filhos duma borracha, mas não sois filhos duma
ladra, que isso nunca fui, nunca roubei nada, Deus me livre, as minhas mãos
nunca se pegaram a nada, trabalhei sempre, o nosso nome está limpinho, não é
como essa da Ribeira, essa já foi apanhada a roubar na feira, a GNR prendeu-a e
mandou-a para a cadeia, coitada, não tem juízo, envergonha-se a ela e aos seus
parentes.
- Antes de ir para Lisboa acredito que não bebesse, mas quando veio
despejar a Susana começou a enxofrar-lhe, para esquecer as mágoas e o namorado
de Lisboa.
- Isso foi durante pouco tempo, depois comecei a ter juízo,
deixei-me disso, só que mais tarde um malandro fez-me um filho, que viria a
morrer com poucos meses, e eu voltei a cair no vício, mas recuperei. Só que os
homens querem a desgraça das mulheres, depressa fiquei outra vez prenha, do pai
do Ambrósio, convenceu-me, dizia-me que queria casar comigo, mentiroso, o que
ele queria sei eu.
- Logo a seguir, outro!
(continua)...
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