ENTRE MORTOS E FERIDOS
(dois anos de guerra na Guiné-Bissau)
Romance histórico
Por Joaquim A. Rocha
... (continuação)
- Mas
vocês, nessa altura, já eram obedientes por natureza – observa Henrique.
- Nem
todos. Os do meio rural, sim; os da cidade, porque também lá havia alguns, eram
lixados. Com vinte anos apenas, já tinham vivido muita coisa.
Mas voltando ao sargento: no quartel,
tornava-se um reizinho! Dava ordens a torto e a direito, gritava, gesticulava,
enfim estava no seu mundo.
- E vocês
andavam numa fona! – comenta Henrique,
ironicamente.
- É
verdade; numa roda-viva! Não nos dava descanso!
-
Havia exceções – aventa o moço.
-
Naturalmente. Conheci alguns desses sargentos, humanos, atenciosos. Ficaram no
exército porque ganhavam mais ou menos e usufruíam de algumas regalias. Com a
quarta classe, muitas vezes obtida como adulto, ou no próprio exército, não
teriam grandes hipóteses de arranjar bons empregos, de angariar uns cobres, a
não ser na emigração; assim, com aquela patente, ficavam praticamente equiparados
a professores do ensino primário! O trabalho não os matava; aquilo para eles já
era rotineiro.
- E a
guerra?
- A
guerra trouxe-lhes alguns benefícios materiais, embora arriscassem – não todos
– a vida.
Mas
continuando… Fizemos vários exercícios antes de envergarmos as cinzentas fardas:
de escrita, de cálculo, de agilidade mental e visual (os chamados testes psicotécnicos), e os imprescindíveis exames
médicos.
-
Passou a tudo, com uma perna às costas – arriscou
Henrique.
-
Passar, passei, mas não foi fácil. De acordo com aqueles que analisaram as minhas
provas, eu daria um razoável condutor auto rodas. Seria, depois de longos
treinos, a minha “ilustre”
especialidade. Nunca, até então, tinha conduzido um carro, nem sequer fazia a
mínima ideia do que era pegar num volante! Eu era pobre como Job, mal ganhava
para comer e vestir, quanto mais para ter carro. Na minha pequena vila somente
meia dúzia de pessoas possuía automóvel: o juiz, o médico, o doutor delegado,
um ou outro padre, e os contrabandistas ricos. Estes últimos, sim, possuíam
dois ou três carros ligeiros, e também pesados, nos quais transportavam as
mercadorias para Espanha.
- «Terra de raia, terra de contrabando» – aponta
Henrique, filosoficamente.
-
Assim é, meu amigo. Os espanhóis, durante a guerra civil, que durou, como sabes,
de 1936 a
1939, compravam tudo: azeite, ovos, milho, café, sabão, pedras de isqueiro,
tabaco… Até tripas! Alguns contrabandistas enriqueceram, outros, perdulários,
gastaram tudo com amantes e negócios mal geridos – não tiveram cabeça!
- Há
quem diga que houve corrupção… - acicata
o rapaz.
-
Houve… e muita! O soldado da Guarda-Fiscal ganhava um ordenado de miséria. Se
fosse solteiro, e vivesse em casa dos pais, ia-se aguentando; mas quando
casava, e vinham os filhos, o vencimento não dava para nada. Na década de
sessenta auferiam pouco mais do que mil escudos por mês! Só dava para a bucha!
A mulher não tinha emprego, tratava da comida, da roupa, dos filhos… e da horta;
quase todos possuíam uma hortinha onde colhiam hortaliça (couves, repolhos, alface), cebola, tomate, pimentos, etc.
A instrução dos filhos não ia além do
ensino primário, pois mandá-los para a cidade – Viana ou Braga – era privilégio
de poucos. Não causava qualquer surpresa ver-se um descendente dum elemento da
Guarda-Fiscal a trabalhar na agricultura, ou como simples empregado de balcão,
sobretudo nas cidades de Lisboa e Porto, ou noutras atividades humildes. Os
empregos bem remunerados e de prestígio estavam nas mãos dos grandes senhores.
- E
não foi sempre assim? – pergunta Henrique.
-
Suponho que sim, mas não está certo. A minoria tudo domina; a maioria trabalha
e obedece!
-
Nesse caso… – impacientou-se Henrique, já
cansado de tantos rodeios.
- Como
ia dizendo, os guardas, segundo consta, fechavam os olhos mediante uma verba
paga pelos grandes contrabandistas, porque aos pequenos, como não davam um
centavo, a esses, se os apanhassem, não lhes perdoavam: tudo apreendido e multa
para cima. Alguém tinha que desempenhar o papel de bode expiatório do sistema. Mas
voltando ao assunto inicial…
Aqui, Henrique, olhando para o relógio,
dá um pequeno grito:
- Santo
Antoninho! Tenho que me encontrar com a Rita, a minha prima. Ia-me esquecendo.
Desculpe Cândido, a conversa estava interessante, mas será retomada na próxima
oportunidade, se assim o desejar.
- Vai-te
embora, homem; não se deve fazer esperar as senhoras, sobretudo as primas – comenta com graça e ironia. - Voltar-nos-emos
a encontrar no próximo fim-de-semana.
Henrique, com um sorriso de orelha a orelha,
diz-lhe:
- Com
pena minha, a Rita já tem noivo. Para que saiba, eu não tenho sorte nem com o
jogo, nem com as mulheres.
-
Pobrezinho! Que pena eu tenho de ti.
E assim se despiram, a rir.
Cândido
ficou só e pensativo. Sempre que abordava o tema da guerra ficava triste,
absorto, incapaz de reagir durante algum tempo. Aquela ferida dolorosa funcionava como uma úlcera; só o tempo,
pensava ele, seria o remédio para a cura. De qualquer forma tivera sorte, não
fora ferido, estava ali, vivo e com saúde, apesar daquelas dores de estômago,
que de vez em quando o incomodavam. Quantos companheiros vira tombar, quantos
tinham vindo para a metrópole feridos. Quantos! O melhor era ir dar uma volta
pela cidade, ver as montras na Rua do Ouro e Rua Augusta, subir depois ao
Chiado, à tardinha acendiam as luzes, que bonito tudo ficava, era sempre festa.
Na sua terra, a mais bonita do mundo, mas medieval, coitada, não havia luzes à
noite. Candeeiros aqui e ali, alguns com as lâmpadas fundidas, mal alumiavam as
poucas ruas que havia; as lojas não tinham praticamente vitrinas, e as que
tinham não estavam decoradas – ninguém se importava com isso!
Olhou para o relógio, a sua “cebola”,
como o designava, e alarmou-se: estava na hora de jantar. Os restaurantes ao
domingo não gostavam de fechar tarde – cliente que não chegasse a tempo, não
era atendido. Claro que havia restaurantes que só encerravam às tantas, mas
esses eram os de luxo, não eram para a sua magra bolsa. Ele ia às tascas, às
tabernas, sentava-se naquelas mesas quadradas, com uma toalha de pano ruim, aos
quadradinhos, que já fora lavada milhares de vezes. Já o conheciam:
-
Então que vai hoje, Sr. Cândido?
- O
mesmo de sempre, Sr. Sousa. Para não variar. Olá menina Quitéria, sempre linda.
A rapariga ficava ruborizada, um piropo daqueles sabia-lhe bem, embora
pensasse de si para si que dali nada viria de concreto, de namoro ou casamento.
Canté! Com um empregado de escritório. Ela, apenas com a 3.ª classe, estava
condenada a casar com um moço de mesa, como ela, ou com um operário, ou talvez,
quem sabe, com um estivador, profissões muito mal remuneradas.
Passado pouco tempo era-lhe
servido o frango com arroz e batatas fritas, um simulacro de salada: alface,
tomate e cebola, muito vinagre e pouco azeite, ruim, o pior que havia,
misturado com óleo, que ficava mais em conta.
Depois do jantar dava mais uma volta pelas ruas, pejadas de gente, e ia
deitar-se. O quarto era pequeno, a cama pequeníssima e pouco confortável. Quem
sabe se um dia a sorte surgiria, sorrateira; comprava o seu apartamento,
deitar-se-ia numa cama larga, ao lado da sua mulher, bonita, sorridente, culta…
Quem sabe?
No dia seguinte, segunda-feira, levantou-se às seis e meia da manhã,
ainda ensonado, bebera-lhe bem no dia anterior, e dirige-se à casa de banho a
fim de cortar a barba, agora já composta, e tomar o seu duche. Como a casa
tinha mais hóspedes, teria que esperar a sua vez, com paciência. Haveria que
dar tempo ao tempo, viriam melhores dias, a esperança era a sua companheira
inseparável. Já passara por pior!
A semana passou-a como sempre: escritório de dia e aulas à noite, na
Escola Comercial Veiga Beirão. Aquele curso era interessante, permitir-lhe-ia
ser ajudante de
contabilista, e o ordenado seria melhor do que agora, que mal dava para comer e
pagar o quarto. O grande problema residia nos professores: alguns mal
preparados cientificamente, outros, embora com grandes conhecimentos, estavam
cansados depois de um dia de trabalho no Banco ou na Companhia de Seguros.
Enfim, o ensino noturno era o parente pobre do sistema educativo. O esforço
individual era a chave para obter bons resultados – sem ele ficar-se-ia pelo
caminho.
Namorar não queria, era ainda cedo; quando
ganhasse bem, pensaria nisso. Na terra tivera um princípio de namoro, mas fora
informado de que ela já casara com um emigrante. «Melhor!», pensava ele; «assim
não tenho compromissos com ninguém, sou completamente livre.» Claro que
isso disfarçava uma profunda frustração, mas não queria dar o braço a torcer.
Aquela rapariga, de uma beleza ímpar, dera-lhe a volta ao miolo, mas ele,
tímido, não agira a tempo, e perdeu-a. Agora já era tarde de mais.
Provavelmente já seria mãe de um ou dois filhos, com nomes franceses… Enfim, o
melhor era esquecer.
No
domingo, tal como combinara com Henrique, lá foi ter à esplanada e sentou-se à
espera do amigo. Sentia uma ânsia imensa de lhe contar tudo, desabafar,
desentulhar aquela amálgama de mazelas que lhe obstruíam o peito. Quando ele se
aproximou, disse-lhe, a rir:
- Já
pensava que não vinhas; deves estar farto de escutar a minha insípida história.
- Não
diga isso, nem a brincar. A sua odisseia militar é digna de ser escutada. Pena
é que durante a semana a gente não se possa encontrar, mas o trabalho não o
permite. Continue, por favor…
- Tudo
bem! Fico satisfeito por saber que estás a gostar… Dos mil que éramos no
princípio, ficámos seiscentos. Aos restantes quatrocentos, não classificados,
enviaram para outros quartéis, onde seriam treinados como atiradores. Esses
seriam lançados para a guerra mais cedo, dentro de cinco ou seis meses, como os
leões para o circo de Roma no tempo de Nero!
Logo a seguir à seleção, um oficial de
secretaria, brincalhão nas horas vagas, e pensando talvez que possuía carradas
de graça, mas de mordaz humor, tem o atrevimento de me perguntar: - «Preferes outra especialidade, ou estás
satisfeito com esta?»
Ingénuo
até à medula, e nada habituado a lidar com gente tão fina e de língua afiada,
respondo melifluamente: «Se pudesse
escolher, gostaria de ser operador cripto, como foi o meu irmão.»
A
gargalhada soa, sarcástica, metálica, inumana! O monstro ria-se de mim! Na
minha cara! As lágrimas vieram céleres, fáceis, a meus olhos. Seria, podes
crer, a última vez que isso me aconteceria. Apercebi-me então que estava na
selva e aí, nesse universo de maldade e perversão, não se chora: resiste-se,
faz-se das tripas coração, engolem-se todos os sapos vivos e moribundos, aprende-se
quase instantaneamente a eterna e sublime arte da sobrevivência.
Os seiscentos mancebos aprovados foram
divididos em três grupos de duzentos cada um. O primeiro grupo ficava já no
quartel; o segundo iria para casa e voltaria em Fevereiro; os restantes
duzentos rapazes apresentar-se-iam em Março. Tudo matematicamente elaborado,
milimétrico, perfeito! Na tropa não se improvisa: é tudo pré-determinado, tudo
feito a régua e esquadro.
Simularam um qualquer sorteio, e a mim
calhou-me o terceiro grupo. Como não tinha dinheiro em abundância, e porque
também era poupado, quase forreta, e não sabendo o que o futuro me reservava, decidi
regressar à minha querida terra à boleia. Pus-me na berma da estrada e comecei
a fazer o sinal caraterístico, isto é, fechei os quatros dedos mais compridos
da mão e com o polegar bem esticado indicava a direção que pretendia seguir.
Nunca antes andara à boleia, mas vi outros fazerem o mesmo e logo se aprende,
se adquire o jeito. Nessa altura, e por razões óbvias, que não vêm ao caso, não
se tornava tão perigoso, como agora, tal procedimento.
Quem tinha carro, e eram poucos, sabia que
a maioria do povo português era pobre. Uma boleia era sempre bem-vinda, pois economizava
uns cobres a quem a recebia.
Os automóveis passavam como bólides, indiferentes
e alheios àquele braço estendido, àquele olhar de criança desprotegida. Carros
de quatro ou cinco lugares apenas transportando uma ou duas pessoas! A viatura
pertencia-lhes, dela podiam fazer o que bem quisessem, mas afinal de contas a
solidariedade, o humanismo cristão tão apregoado no púlpito, tornavam-se em
meros conceitos esvaziados de conteúdo. Por outro lado, um jovem fardado, um
soldado da pátria, que iria brevemente defender o território nacional, ameaçado
por bandidos, como os salazaristas diziam, por hostes de negros, sedentos de
poder, merecia o apoio de todos os portugueses. Mas não! Passavam e não me
viam! Não queriam que um pobre soldado se sentasse a seu lado, eles, que tinham
carro, logo outro estatuto!
Já desesperado, eis que um automóvel
ligeiro, com alguns anos, mas ainda com bom aspeto, pára junto de mim. O condutor,
homem de meia-idade, complacente, interroga-me: «Para onde se dirige?» Eu, ainda incrédulo, algo desconfiado, respondo-lhe:
«Vou para Melgaço.» O senhor, numa
voz algo emocionada, diz-me: «Para Melgaço!!!
Que coincidência, sou precisamente de
lá, embora resida e tenha o meu emprego no Porto; vou neste preciso momento
fazer uma visita a minha irmã, a Brígida, conhece?»
Respondi que sim, por sinal conhecia-a muito
bem. Numa vilazinha tão pequena como a nossa toda a gente se conhecia, éramos
todos vizinhos e amigos. Era proprietária de uma loja de louças junto à igreja
matriz, ali pertinho do castelo medieval, o qual, segundo reza a História, fora
mandado construir por D. Afonso Henriques, o nosso primeiro rei. Esse monarca
também dera ao concelho, em 1183, um foral, que era uma espécie de constituição
concelhia. Eu tinha apenas a sexta classe, ou seja, a quarta classe mais dois
anos de um curso noturno «curso
complementar de aprendizagem agrícola», mas sabia alguma coisa de História,
porque gostava dessa disciplina e tinha como livro de cabeceira uma História de
Portugal.
A senhora Brígida era mãe da Teresinha,
como nós lhe chamávamos carinhosamente. O pai da menina, ninguém sabia concretamente
quem era, falava-se num contrabandista, talvez um padre ou um juíz, era um segredo bem
guardado, provavelmente já teria morrido.
O senhor estava radiante com a minha companhia.
Pelo caminho conversámos sem parar. Ele, mais do que eu. Era pracista, ou
técnico de vendas, como agora se diz. Tinha duas filhas adolescentes,
mostrou-me as fotografias, amorosas, «acompanham-me
sempre», disse com ternura.
Convidou-me a ir a sua casa quando voltasse ao
Porto. Teria muito gosto nisso, fazia
questão em apresentar-me à esposa e filhas. Era sempre bom ter alguém da
mesma terra para conversar, lembrar aqueles tempos felizes, mas de relativa miséria,
tempos que jamais voltariam.
-
Claro que foi visitar esse senhor e a família – interrompeu Henrique, atento ao desenrolar da história.
- Não
fui! Por timidez, para não incomodar. Só muito mais tarde me apercebi que a
presença de um patrício no nosso lar, quando se vive longe, nos traz imensa
alegria e nunca aborrecimento. Essas coisas aprendem-se por experiência
própria. Uma pessoa da nossa terra, um conterrâneo, é um pedacinho dessa mesma
terra, faz parte do nosso ser, é uma molécula viva da antiga memória coletiva.
- Está
a filosofar, mas talvez seja verdade o que acaba de dizer – concorda o moço.
Cândido
quase não o ouviu. As memórias irrompiam, como nascentes de um rio caudaloso.
Prosseguiu: // (continua)...
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