LEMBRANÇAS AMARGAS
romance
Por Joaquim A. Rocha
desenho de Rui Nunes
(continuação - 14 de Maio)...
- Isso é verdade, salvo raras exceções. Mas uma coisa que eu nunca
compreendi foi o facto de você ficar analfabeta; há mulheres da sua idade que
sabem ler e escrever.
- Ai, ai, tu pensas que naquela altura era fácil as raparigas
andarem na escola? Os pais humildes mandavam-nas trabalhar logo que elas
tivessem sete ou oito anos. Servir. Mocinha de recados. Canté! Que julgas, que
ficavam em casa, a comer, a gastar o pouco que havia? Tinham de ganhar para elas.
Olha, eu ainda fui um ano, mas a minha mãe, coitada, era uma moira de trabalho,
não podia ter-me em casa, sem fazer nada, sem ganhar para mim, além disso a
senhora professora em lugar de nos ensinar mandava-nos à lenha. A tua avó foi
falar com a minha madrinha, que era filha família, gente de posses, de um
clínico, fidalgos, e pediu-lhe para me levar para sua casa. Claro que não era
criada deles, mas era como se fosse. Aprendi a limpar o pó, a varrer a casa, a
fazer as camas, a cozinhar, a passar a ferro, a cuidar do jardim, como uma
criada. Mas davam-me roupinha, aquela que já não vestiam, a minha madrinha
tinha umas mãos de fada, fazia-me vestidos lindíssimos, andava vestida como uma
princesinha.
- Com trapos velhos!
- Farpela usada, mas em bom estado. Que pensas, que a minha
madrinha deixava chegar a roupa a mau estado? Nem penses; logo que deixava de
gostar de uma saia, de um vestido, de um casaco, arranjava-os para mim, que eu,
claro, não tinha o corpo ela, era mais baixinha e magra.
- E enquanto permaneceu lá não teve nenhum pretendente?
- Aquilo era uma casa de muito respeito. A mãe da minha madrinha ia
todos os dias à missa, comungava sempre, muito crente, muito temerosa a Deus. O
pai dela era médico na Vila. Todos os dias, manhã cedo, lá ia na sua charrete
até ao hospital da Misericórdia. Aquilo é que era um doutor! E olha que não
cobrava um tostão aos necessitados, está bem que depois eles ofereciam-lhe
coisas: umas lampreias, uns sáveis, trutas, salmão, umas febras de porco quando
matavam, um presuntinho, perus, salpicões, tudo, até madeira de castanho, mas
olha que ele não pedia nada a ninguém, nem queria aceitar, eles é que lhe
rogavam para ele receber as coisas. Que homem! E curava muita gente, olha que
até se dizia que fazia milagres – um santo! Quando foi da epidemia, quanta
gente ele não curou; até veio a Cruz vermelha de Viana do Castelo para ajudar a
combater essa maldita febre. Eu tinha seis anos de idade e escapei, graças a
Deus.
- Por falta de condições as pessoas morriam novas, na flor da
idade.
- Nem todas, felizmente. A tia Ana, que tu ainda conheceste, morreu
quase com cem anos. E bebia-lhe todos os dias meio quartilho de aguardente. Até
a garrafa escorrichava!
- Era uma exceção; os meus tios morreram quase todos jovens.
- Foi a tísica. Não tinha cura; nem mesmo o xarope de agrião, o
vinho de carne, e os caldos de cobra os curava! Coitados, eram muitos
fraquinhos e não resistiram. Morreu muita gente com a peste. Alguns foram
acabar os seus dias ao cemitério, não havia lugar para eles no hospital, e como
iam morrer, tanto fazia! Coitados! Ficou muita casa sem ninguém, sem uma única
alma. A minha prima, a Amélia, coitada, essa foi por mor do vinagre. Queria
ficar magra, elegante, ia casar, e começou a beber-lhe: emagreceu tanto, tanto,
que adoeceu. O médico disse que ela estava tuberculosa. Não durou seis meses. E
tão linda que ela era. A mais bonita de nós todas. Que eu não era feia, mas à
sua beira… O rapaz ia-se apagando com o desgosto, deixou de comer, queria-se
arruinar. Valeu-lhe um tio brasileiro, pegou nele e meteu-o no barco para o
Brasil, nunca mais se viu por aqui, certamente casou por lá. Mal de quem morre;
aqueles que ficam depressa esquecem, eu é que nunca a esqueci, a minha prima,
gostava muito dela, era como se fosse minha irmã. As daqui ficaram satisfeitas,
invejosas, queriam-lhe o noivo, não prestam para nada, feiosas, ela sim, que eu
não é para me gabar, nas feições até me assemelho com ela, mas claro, era mais
engraçada, tinha outro corpo que eu não tenho, mas olha que os homens também
andavam atrás de mim, até o Licas, vê lá, até ele andava de beicinho por mim,
depois juntou-se com essa remelosa, deu-lhe um rancho de filhos, todos porcos,
todos borrados, a badalhoca não os lava, é uma lástima, ai se fossem meus
filhos.
- Eu sou seu filho e não me lembro de andar asseado. Até metia nojo! ... (continua)
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