LEMBRANÇAS AMARGAS
(romance)
Por Joaquim A. Rocha
desenho de Rui Nunes |
Capítulo XXVII
Nas rotundas escabrosas também há encontros
Depois dessa pouco amistosa conversa,
desse diálogo tempestuoso, eu fiquei convencido de que perdera a minha amada
para todo o sempre. Passei a viver ainda mais triste, mais próximo da solidão e
da amargura. Os meus irmãos encontravam-se em Lisboa, e os meus avós maternos
já tinham falecido. Os avós paternos, esses nem sequer os conhecera! Mas eis
senão quando, de saco às costas, surge em cena o meu avô. O destino prega-nos
destas partidas: um avô e um neto de costas voltadas, ignorando a existência um
do outro, aproximam-se como o metal se aproxima do íman. Este é um dos momentos
mais emocionantes de toda a minha história – dois corações sangrando, embora
por motivos diferentes, batem ao ritmo de uma angélica música. Este quadro
dar-vos-á a visão de um futuro humano melhor, onde a compaixão supera e vence o
desprezo, a sede de vingança. Como agentes secretos de uma qualquer novela
policial, abeirem-se desta sofredora gente:
- Aquele que ali vai é
o teu avô Meliças, o coitado anda a pedir esmola.
- A pedir esmola? Não
era caseiro em Cendre?
- Deve-lhe ter morrido
a mulher, o maroto do filho anda lá pelas Espanhas, o mais certo é ele nunca
mais o ter visitado, sozinho e velho não podia tomar conta daqueles campos
todos, não daria conta do recado.
- E agora pegou num
saco e toca a mendigar!
- É o fim de todos
aqueles que trabalham as herdades dos outros: quando já não prestam, quando já
não têm forças para arrancar do solo o tão desejado fruto, são atirados fora,
como lixo imprestável, como cinzas de um fogo que se extinguiu.
- Vou chamá-lo.
- Se quiseres, fá-lo;
mas olha que eles foram muito maus para nós. Tanto ele como a velha puseram-me
de rastos, chamaram-me o que o demo não ousou chamar à sua própria mãe, que
andava a encaminhar mal o filho, nunca vos quiseram ver!
- Temos de perdoar; não
perdoou Cristo a quem o matou?
- Isso é verdade, mas
nós somos humanos e ele era o filho de Deus, o redentor.
- Coitado, vai tão
triste, aquelas barbas brancas, derreado pelo peso dos anos e possivelmente
pelos desgostos: sem filho, sem mulher, sem netos; nem um pouquinho de
felicidade ou esperança brilha naqueles olhos mortiços.
- Se tivessem deixado o
Olavo casar comigo, outro galo lhe cantaria agora, que eu nessa altura estava
disposta a ter juízo, a respeitá-lo, nunca gostei tanto de outro homem como
dele; mas não, escorraçaram-me como se eu fosse uma vadia, só porque era mais
velha do que o teu pai e porque era mãe solteira. Isso doeu-me imenso, eu não
era um bandalho, trabalhava, dia e noite, as coisas até me estavam a correr
bem. De repente tudo desaba: os pais dele contra mim, e ele a desaparecer com
uma galega! Nunca lhes perdoarei, estragaram irremediavelmente a minha vida. Se
quiseres, chama-o, um bocado de pão e um caldo quente não se nega a ninguém,
nem a um inimigo.
*
- Senhor Agostinho, senhor
Agostinho, chegue aqui.
- Quem me chama?!
- Eu, o filho da
Matilde.
- Ai, meu filho, vejo e
ouço mal. Matilde? Não conheço, há muitos anos que não vinha à Vila, trabalhei
longo tempo em Cendre, nas terras do senhor Louredo.
- Está com fome?
- Que pergunta! Há
muitas horas que o meu estômago não sabe o que é ter uma migalha de pão, que
Deus lhe pague em dobro tudo que me der.
- A minha mãe foi
buscar pão e caldo, não somos gente farta, damos o que temos.
- Aqueles que pouco têm
são os que mais oferecem; os ricos, salvo alguns, santas pessoas, são
avarentos, nem os restos da sua comida dão, deitam tudo aos animais.
- Sei que tem um filho,
que sabe dele?
- Nada, absolutamente
nada, mas porque me pergunta isso e como sabe que este pobre de Cristo tem um
filho?
- A minha mãe disse-me
quem o senhor é, falou-me nele, que foi há muitos anos para a Espanha com uma
galega. Pelos vistos nunca mais deu sinal de si.
- Essa rapariga
chamava-se Mariquita, filha duns galegos de Tui que viviam ali perto da fronteira
com Portugal; foram-se embora e jamais quiseram saber dos velhos pais.
- O seu Olavo antes de
ir para a Espanha fez dois filhos numa mulher portuguesa.
- O que eu e a minha
falecida lhe ralhámos para a deixar; era muito mais velha do que ele, já tinha
tido filhos antes, dois tinham-lhe morrido, mas ainda tinha dois vivos. Ele até
queria casar com ela, nós não deixámos, parecia filho dela!
- Mas esses rapazes,
vocês nunca os viram?
- Quando eram muito
pequenitos ainda cheguei a vê-los, depois essa mulher saiu de lá, parece que
veio aqui para a Vila, para casa dos pais, nunca mais lhe pus os olhos em cima.
- Já tem aqui o seu
caldo; coma-o enquanto está quentinho.
- Obrigado, santinha,
que Deus lhe dê saúde e sorte.
- Sorte não ma deu,
não, umas vezes por minha culpa, outras vezes por culpa dos outros.
- Essa voz, e essa
cara, ai os meus olhos, estão velhos e doentes e já me enganam.
- Não o enganam, não;
eu sou a Matilde, aquela que vocês destruíram.
- Então este aqui é meu
neto!
- É seu neto, é, mas
não se orgulha disso.
- Oh meu Deus! Tanto
mal eu te fiz, Matilde; perdoa a este velho. Meu neto, perdoas ao teu avô?
- Não sei se poderei
fazê-lo; vocês magoaram muito a minha mãe, espezinharam-na, barraram-lhe os
caminhos da felicidade e da ventura. Toda a nossa vida a partir daí tem sido um
calvário, um Gólgota, a cruz tem sido demasiado pesada para os nossos frágeis
ombros; a ferida ainda sangra nos nossos corações. Sabe por acaso o que é viver
sem pai, com uma mãe destroçada, sem apego à vida? Não sabe? Pois fique a saber
que a nossa vida é feita de tristeza, de angústia, de desânimos, por vezes até
a fé em Deus nos abandona.
- Eu pensava que estava
a defender a felicidade do meu filho.
- Do seu filho? E os
seus netos? Não são eles sangue do seu sangue?
- Muito mal fazemos aos
outros por egoísmo, pensando só em nós próprios; como eu estou arrependido, mas
agora é tarde, sei que serei severamente castigado por Nosso Senhor Jesus
Cristo, não perdoará os meus erros e pecados, aliás já estou a padecer agora.
- Onde é que vive, onde
dorme?
- Não possuo nada; nem
casa, nem amigos, nem família, sou um desgraçado, vivo na extrema penúria, fico
por aí, debaixo de um qualquer alpendre, eu que trabalhei mais de sessenta
anos, desde os sete anos de idade que peguei numa enxada a cavar campos, nunca
fui a uma escola, os meus pais eram muito minguados de tudo, tínhamos de ganhar
para o nosso sustento.
- Quem eram os seus
pais?
- Não conheceram. Eu
sou de Mondim, vim muito novo para esta terra, na esperança de melhorar a minha
vida, depois encontrei aquela que foi minha esposa durante estes anos todos;
coitada, agora deixou-me, o Senhor chamou-a à sua excelsa presença.
- Nunca mais voltou à
sua terra de nascimento?
- Não; as viagens são
muito caras, para cá vim a pé, andei dias e dias, pelo caminho ia pedindo
esmola, ajudava aqui e ali, até cheguei a ser rapaz de circo! Coitado de quem
precisa.
- Então nunca mais viu
os seus pais?!
- Nem pais, nem irmãos;
eles nem sequer sabiam onde eu estava, como não sei escrever…
- Deveria ter pedido a
alguém que o fizesse por si.
- Para lhes dizer que
era miserável, que trabalhava como um mouro todos os dias para ter na mesa um
caldo de couves e farinha grosseira?
- Vivemos num país de
gente pobre.
- Alguns têm muito, à
custa de quem labuta, e quando chegamos a velho enxotam-nos como a moscas
incómodas.
- Mamã: poderíamos
arranjar-lhe um cantinho na nossa casa, o que lá vai lá vai, é meu avô.
- Tens um coração de
oiro, meu filho; concordo, mas só até tu ires para a tropa, depois terá de
arranjar outro lugar.
- Não chore, avô; nós
os pobres temos de ser solidários uns com os outros; é a única maneira de
resistirmos aos poderosos.
- Tu és um santo, meu
neto; e tanto mal vos fiz. Vais com certeza ganhar o céu graças aos teus
generosos atos.
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