quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

LEMBRANÇAS AMARGAS
(romance)

Por Joaquim A. Rocha



desenho de Rui Nunes


Capítulo XXVII
 
Nas rotundas escabrosas também há encontros
 

     Depois dessa pouco amistosa conversa, desse diálogo tempestuoso, eu fiquei convencido de que perdera a minha amada para todo o sempre. Passei a viver ainda mais triste, mais próximo da solidão e da amargura. Os meus irmãos encontravam-se em Lisboa, e os meus avós maternos já tinham falecido. Os avós paternos, esses nem sequer os conhecera! Mas eis senão quando, de saco às costas, surge em cena o meu avô. O destino prega-nos destas partidas: um avô e um neto de costas voltadas, ignorando a existência um do outro, aproximam-se como o metal se aproxima do íman. Este é um dos momentos mais emocionantes de toda a minha história – dois corações sangrando, embora por motivos diferentes, batem ao ritmo de uma angélica música. Este quadro dar-vos-á a visão de um futuro humano melhor, onde a compaixão supera e vence o desprezo, a sede de vingança. Como agentes secretos de uma qualquer novela policial, abeirem-se desta sofredora gente:


- Aquele que ali vai é o teu avô Meliças, o coitado anda a pedir esmola.

- A pedir esmola? Não era caseiro em Cendre?

- Deve-lhe ter morrido a mulher, o maroto do filho anda lá pelas Espanhas, o mais certo é ele nunca mais o ter visitado, sozinho e velho não podia tomar conta daqueles campos todos, não daria conta do recado.

- E agora pegou num saco e toca a mendigar!

- É o fim de todos aqueles que trabalham as herdades dos outros: quando já não prestam, quando já não têm forças para arrancar do solo o tão desejado fruto, são atirados fora, como lixo imprestável, como cinzas de um fogo que se extinguiu.

- Vou chamá-lo.

- Se quiseres, fá-lo; mas olha que eles foram muito maus para nós. Tanto ele como a velha puseram-me de rastos, chamaram-me o que o demo não ousou chamar à sua própria mãe, que andava a encaminhar mal o filho, nunca vos quiseram ver!

- Temos de perdoar; não perdoou Cristo a quem o matou?

- Isso é verdade, mas nós somos humanos e ele era o filho de Deus, o redentor.

- Coitado, vai tão triste, aquelas barbas brancas, derreado pelo peso dos anos e possivelmente pelos desgostos: sem filho, sem mulher, sem netos; nem um pouquinho de felicidade ou esperança brilha naqueles olhos mortiços.

- Se tivessem deixado o Olavo casar comigo, outro galo lhe cantaria agora, que eu nessa altura estava disposta a ter juízo, a respeitá-lo, nunca gostei tanto de outro homem como dele; mas não, escorraçaram-me como se eu fosse uma vadia, só porque era mais velha do que o teu pai e porque era mãe solteira. Isso doeu-me imenso, eu não era um bandalho, trabalhava, dia e noite, as coisas até me estavam a correr bem. De repente tudo desaba: os pais dele contra mim, e ele a desaparecer com uma galega! Nunca lhes perdoarei, estragaram irremediavelmente a minha vida. Se quiseres, chama-o, um bocado de pão e um caldo quente não se nega a ninguém, nem a um inimigo.


*


- Senhor Agostinho, senhor Agostinho, chegue aqui.

- Quem me chama?!

- Eu, o filho da Matilde.

- Ai, meu filho, vejo e ouço mal. Matilde? Não conheço, há muitos anos que não vinha à Vila, trabalhei longo tempo em Cendre, nas terras do senhor Louredo.

- Está com fome?

- Que pergunta! Há muitas horas que o meu estômago não sabe o que é ter uma migalha de pão, que Deus lhe pague em dobro tudo que me der.

- A minha mãe foi buscar pão e caldo, não somos gente farta, damos o que temos.

- Aqueles que pouco têm são os que mais oferecem; os ricos, salvo alguns, santas pessoas, são avarentos, nem os restos da sua comida dão, deitam tudo aos animais. 

- Sei que tem um filho, que sabe dele?

- Nada, absolutamente nada, mas porque me pergunta isso e como sabe que este pobre de Cristo tem um filho?

- A minha mãe disse-me quem o senhor é, falou-me nele, que foi há muitos anos para a Espanha com uma galega. Pelos vistos nunca mais deu sinal de si.

- Essa rapariga chamava-se Mariquita, filha duns galegos de Tui que viviam ali perto da fronteira com Portugal; foram-se embora e jamais quiseram saber dos velhos pais.

- O seu Olavo antes de ir para a Espanha fez dois filhos numa mulher portuguesa.

- O que eu e a minha falecida lhe ralhámos para a deixar; era muito mais velha do que ele, já tinha tido filhos antes, dois tinham-lhe morrido, mas ainda tinha dois vivos. Ele até queria casar com ela, nós não deixámos, parecia filho dela!

- Mas esses rapazes, vocês nunca os viram?

- Quando eram muito pequenitos ainda cheguei a vê-los, depois essa mulher saiu de lá, parece que veio aqui para a Vila, para casa dos pais, nunca mais lhe pus os olhos em cima.

- Já tem aqui o seu caldo; coma-o enquanto está quentinho.

- Obrigado, santinha, que Deus lhe dê saúde e sorte.

- Sorte não ma deu, não, umas vezes por minha culpa, outras vezes por culpa dos outros.

- Essa voz, e essa cara, ai os meus olhos, estão velhos e doentes e já me enganam.

- Não o enganam, não; eu sou a Matilde, aquela que vocês destruíram.

- Então este aqui é meu neto!

- É seu neto, é, mas não se orgulha disso.

- Oh meu Deus! Tanto mal eu te fiz, Matilde; perdoa a este velho. Meu neto, perdoas ao teu avô?

- Não sei se poderei fazê-lo; vocês magoaram muito a minha mãe, espezinharam-na, barraram-lhe os caminhos da felicidade e da ventura. Toda a nossa vida a partir daí tem sido um calvário, um Gólgota, a cruz tem sido demasiado pesada para os nossos frágeis ombros; a ferida ainda sangra nos nossos corações. Sabe por acaso o que é viver sem pai, com uma mãe destroçada, sem apego à vida? Não sabe? Pois fique a saber que a nossa vida é feita de tristeza, de angústia, de desânimos, por vezes até a fé em Deus nos abandona.

- Eu pensava que estava a defender a felicidade do meu filho.

- Do seu filho? E os seus netos? Não são eles sangue do seu sangue?

- Muito mal fazemos aos outros por egoísmo, pensando só em nós próprios; como eu estou arrependido, mas agora é tarde, sei que serei severamente castigado por Nosso Senhor Jesus Cristo, não perdoará os meus erros e pecados, aliás já estou a padecer agora.

- Onde é que vive, onde dorme?

- Não possuo nada; nem casa, nem amigos, nem família, sou um desgraçado, vivo na extrema penúria, fico por aí, debaixo de um qualquer alpendre, eu que trabalhei mais de sessenta anos, desde os sete anos de idade que peguei numa enxada a cavar campos, nunca fui a uma escola, os meus pais eram muito minguados de tudo, tínhamos de ganhar para o nosso sustento.

- Quem eram os seus pais?

- Não conheceram. Eu sou de Mondim, vim muito novo para esta terra, na esperança de melhorar a minha vida, depois encontrei aquela que foi minha esposa durante estes anos todos; coitada, agora deixou-me, o Senhor chamou-a à sua excelsa presença.

- Nunca mais voltou à sua terra de nascimento?

- Não; as viagens são muito caras, para cá vim a pé, andei dias e dias, pelo caminho ia pedindo esmola, ajudava aqui e ali, até cheguei a ser rapaz de circo! Coitado de quem precisa.

- Então nunca mais viu os seus pais?!

- Nem pais, nem irmãos; eles nem sequer sabiam onde eu estava, como não sei escrever…

- Deveria ter pedido a alguém que o fizesse por si.

- Para lhes dizer que era miserável, que trabalhava como um mouro todos os dias para ter na mesa um caldo de couves e farinha grosseira?

- Vivemos num país de gente pobre.

- Alguns têm muito, à custa de quem labuta, e quando chegamos a velho enxotam-nos como a moscas incómodas.

- Mamã: poderíamos arranjar-lhe um cantinho na nossa casa, o que lá vai lá vai, é meu avô.

- Tens um coração de oiro, meu filho; concordo, mas só até tu ires para a tropa, depois terá de arranjar outro lugar.

- Não chore, avô; nós os pobres temos de ser solidários uns com os outros; é a única maneira de resistirmos aos poderosos.

- Tu és um santo, meu neto; e tanto mal vos fiz. Vais com certeza ganhar o céu graças aos teus generosos atos.         

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