quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

ENTRE MORTOS E FERIDOS
(dois anos de guerra na Guiné-Bissau)
 
romance histórico

                                                                Por Joaquim A. Rocha




17.º Capítulo

 
                       AS LAVADEIRAS



 
     Após uns dias sem se verem, os dois amigos retomam a conversa, como habitualmente à mesa de um Café na Baixa Lisboeta. O verão já se fora, e agora tinham de ficar na parte de dentro, respirando o ar impuro, poluído, motivado sobretudo pelo maldito fumo do tabaco. Não sei que dera aos portugueses, cada vez fumavam mais, agora até as raparigas e senhoras o faziam, mesmo na rua, numa exibição bacoca, parola, prejudicando a sua saúde e a dos outros! O efeito já se começava a notar, sobretudo nos dentes. O dinheiro para essa droga não sei aonde os iam buscar, pois cada maço custava os olhos da cara e a malta nova não tinha quaisquer rendimentos. É provável que fosse parte do dinheiro que os pais lhe davam para se alimentarem na cantina da Escola, eu sei lá!
     Alguns médicos iam aconselhando os jovens a deixarem de fumar, pois, o mais certo, era virem a sofrer do coração, cancro, e até os dentes perdem o protetor esmalte e tornam-se amarelados!       
     Depois de se cumprimentarem, Cândido dirigiu-se ao amigo com estas palavras simpáticas:
 
- Louvo a tua insaciável curiosidade relativamente à vida do soldado enquanto combatente nas matas africanas. Quanto às lavadeiras vou contar-te aquilo que sei. No que me diz respeito, eu entregava de facto a roupa a lavadeiras, mas jamais olhei para elas como potenciais amantes. Digo-te mais: sempre manifestei algum receio em ter relações de tipo íntimo com essas mulheres. Não por me achar superior, ou um anjo, mas sim por causa das doenças venéreas. Preferia a abstinência. Nesse tempo não distribuíam preservativos, mas sim umas bisnagas para se usarem após a cópula. A sua eficácia era diminuta, não ofereciam grandes garantias.
- Os seus colegas da altura não seriam assim tão castos… - tenta tirar nabos da púcara o jovem interlocutor.
- É provável que um ou outro, os mais aventureiros, quiçá os mais imprudentes, esquecessem os perigos que desse acto adviriam; arriscavam a sua saúde pelo simples prazer carnal – era com eles!
     As lavadeiras negras sempre me mereceram o máximo respeito e consideração. Trabalhadoras conscientes, procuravam servir o melhor possível, nunca tive queixa delas. Muitas dessas mulheres tinham uma caterva de filhos, provavelmente mães solteiras, dava-lhes as minhas rações de combate (carne de porco e de vaca, atum, sardinhas, chouriço, etc., tudo isso em latas de conserva), além de lhes pagar o preço de tabela.
- Que era baixo, suponho – quis saber Henrique.
- Tudo é relativo; se levassem muito caro também não lhe poderíamos entregar a roupa. Os nossos ordenados eram curtos, como sabes.
     Moravam quase sempre perto dos tropas e os seus rendimentos provinham exclusivamente desse trabalho. As inúmeras crianças aguardavam pacientemente que acabássemos de comer para depois requisitarem os restos, não os das marmitas, mas sim aquela comida que sobrava nas terrinas e caldeirões.      
- Depois da independência, essas crianças ficaram sem essa fonte de alimentos…
- É verdade; mas isso já não é problema nosso. Por outro lado, aquilo não se podia prolongar eternamente. Que estudem, que trabalhem, que se tornem independentes economicamente. Ninguém pode, nem deve, viver uma vida inteira à sombra do rancho dos militares: é aviltante, indigno de um ser humano. A igualdade entre as raças passa sem dúvida pela negação da subserviência. A mendicidade submerge a dignidade; o homem negro tem de compreender isso.
- Você exalta-se com facilidade!... – observa Henrique.
- Empolgo-me um bocado, é certo; mas a minha indignação é motivada pelo servilismo de alguns: sejam amarelos, brancos, negros, vermelhos, ou de outra qualquer cor ou raça. O ser humano deve emancipar-se; somos todos donos do planeta e, por isso, sem exceção, temos direito a nele residir com dignidade.
- Estou plenamente de acordo consigo, amigo Cândido. O planeta Terra é de todos os seus habitantes, mas nem todos pensam assim... Mas falava-me das lavadeiras…
- Como já te disse anteriormente, a maioria dos soldados, cabos, furriéis e sargentos, dava a sua roupa a lavar às lavadeiras africanas. Os oficiais, como ganhavam bem, contratavam, a maior parte deles, empregada doméstica; as esposas, quando casados, habitavam numa das cidades mais próximas do acampamento. Sabes que se contava uma história de adultério acerca de um destes casais, separados periodicamente devido à guerra?      
- Uma história de faca e alguidar, calculo!
- Mais ou menos. Queres ouvir?
- Quero, quero… – diz Henrique, eufórico.
- Pois bem: um oficial, suponho que alferes miliciano, foi mobilizado para a Guiné logo depois de ter rebentado a insurreição armada. Como era casado, e a mulher pouco mais de vinte anos teria, resolveu chamá-la para a sua beira, não fosse um gabiru rondar-lhe a porta. Arrendou uma casa numa pequena cidade, Mansoa, salvo erro, e espera ansiosa e pacientemente que a esposa chegue. Abraços e beijos, misturados com grossas lágrimas de alegria. Passava um dia ou dois em casa, quinze dias no mato, e o tempo ia assim decorrendo. Certo dia, ou melhor, certa noite, aparece de surpresa no lar. Metralhadora a tiracolo, fatigado, mete a chave à porta e entra. Ouve uns suspiros estranhos, pensou que a sua mulherzinha sonhava: «sonha comigo, possivelmente!» - sussurrou.
     Pousa a arma nas costas de uma cadeira e prepara-se para se descalçar. Os gemidos e ais aumentam de intensidade e ele fica confuso. Pega na arma, pé ante pé, e dirige-se para o quarto de dormir. Parece-lhe ser de lá que provêm os tais ruídos. Arreda a porta e o que os seus olhos veem, embora numa meio escuridão, são dois corpos nus, juntos, enleados, movendo-se, ora lenta, ora com frenesim. As suas bocas ora se beijam ora deixam escapar gritinhos de prazer e êxtase. O nosso homem ficou bloqueado, estupefacto, não querendo acreditar no que via: «Não, não estou aqui, deliro
     Ergue a arma e aponta: pum! Dispara todas as balas do carregador. O sangue dos amantes esguichou por todo o quarto, a cama ficou num poço de líquido vermelho, vermelho!
- Terrífico desfecho, esse! E o oficial, que fez a seguir? – pergunta Henrique, bastante comovido, quase não acreditando naquilo que ouvira.
- Há quem diga que ele se suicidou após esse acto. Uma outra versão diz que ele se entregou às autoridades militares, cujo tribunal o condenou a uma comissão em Angola ou Moçambique, onde morreu em combate.
- Se soubessem o nome dele, seria fácil seguir-lhe o rasto…
- Ninguém sabe, somente os militares, e esses abafaram o caso.
- Que ela lembra outras histórias similares, verídicas, isso lembra. E tomaram conhecimento, ao menos, do nome do alvejado, do amante da adúltera?
- Aí as coisas complicam-se. Há quem diga que se tratava de um rapaz negro, de vinte anos de idade, criado do casal, muito habilidoso na cozinha, sorridente, simpático, bem-parecido.
- Pelos vistos, também era exímio na cama…
- São apenas boatos. Se foi esse rapaz, fora batizado não havia muito tempo, a solicitação da senhora, por sinal bastante religiosa, muito temente a Deus.
- Então, se o moço recebeu o banho na pia batismal, o pecado era menor…
- Brinca, brinca, maroto!
- Contudo, apontam outros suspeitos?
- Também se falava em colegas: solteiros, com um clima quentíssimo, muito piripiri na comida, afrodisíaco por excelência, enfim! São apenas suposições. A verdade, verdadinha, só os altos graduados a souberam.
- Muito interessante essa sua historieta. E as…
- Já sei: as lavadeiras. Algumas delas estragavam uma camisa, umas calças, mas que se havia de fazer? Não possuíam os ferros de engomar que agora existem, a eletricidade, e a vapor, e não dominavam ainda todas as técnicas de tal mester. Mas também os preços que cobravam não eram de molde a exigir-lhes perfeição. Quanto ao resto, bem: algumas viram aumentar o rol de filhos, os mulatos, a cor que não pode negar a sua origem. São eles que atestam a passagem do homem branco pela terra dos negros. Até se dizia que uma dessas mulheres veio com seu filho a Portugal à procura do militar que lho arranjara… Tretas!
- Repugnava-lhe casar com uma mulher de cor negra?
- A essa pergunta não é fácil responder. Penso, no entanto, que seria um verdadeiro disparate um branco casar com uma negra do mato se tencionasse vir para Portugal. Sabes por quê? Porque ela não iria adaptar-se facilmente à vida europeia. E como apresentá-la aos pais? «Eis aqui a minha esposa. Não fala a nossa língua, não sabe o que é morar numa casa de pedra, como a nossa, com divisórias, ignora o que é uma casa de banho! Vivia em uma palhota de barro amassado, coberta de capim.» E depois? Seria uma confusão tremenda.
- Até podia dar certo – retruca Henrique.
- Desde que ele ficasse a residir em África, não digo que não. E isto que te estou a dizer nada tem a ver com racismo, mas sim com culturas, com maneiras de gerir a vida: os negros que residem na selva são muito infelizes quando se encontram longe de África, do seu meio natural.

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