ENTRE MORTOS E FERIDOS
(dois anos de guerra na Guiné-Bissau)
romance histórico
Por Joaquim A. Rocha
17.º
Capítulo
AS LAVADEIRAS
Após uns dias sem se verem, os
dois amigos retomam a conversa, como habitualmente à mesa de um Café na Baixa
Lisboeta. O verão já se fora, e agora tinham de ficar na parte de dentro,
respirando o ar impuro, poluído, motivado sobretudo pelo maldito fumo do tabaco.
Não sei que dera aos portugueses, cada vez fumavam mais, agora até as raparigas
e senhoras o faziam, mesmo na rua, numa exibição bacoca, parola, prejudicando a
sua saúde e a dos outros! O efeito já se começava a notar, sobretudo nos
dentes. O dinheiro para essa droga não sei aonde os iam buscar, pois cada maço
custava os olhos da cara e a malta nova não tinha quaisquer rendimentos. É
provável que fosse parte do dinheiro que os pais lhe davam para se alimentarem
na cantina da Escola, eu sei lá!
Alguns médicos iam aconselhando os jovens
a deixarem de fumar, pois, o mais certo, era virem a sofrer do coração, cancro,
e até os dentes perdem o protetor esmalte e tornam-se amarelados!
Depois de se cumprimentarem, Cândido
dirigiu-se ao amigo com estas palavras simpáticas:
- Louvo a tua insaciável curiosidade
relativamente à vida do soldado enquanto combatente nas matas africanas. Quanto
às lavadeiras vou contar-te aquilo que sei. No que me diz respeito, eu
entregava de facto a roupa a lavadeiras, mas jamais olhei para elas como potenciais
amantes. Digo-te mais: sempre manifestei algum receio em ter relações de tipo
íntimo com essas mulheres. Não por me achar superior, ou um anjo, mas sim por
causa das doenças venéreas. Preferia a abstinência. Nesse tempo não distribuíam
preservativos, mas sim umas bisnagas para se usarem após a cópula. A sua
eficácia era diminuta, não ofereciam grandes garantias.
- Os seus colegas da altura não seriam
assim tão castos… - tenta tirar nabos da
púcara o jovem interlocutor.
- É provável que um ou outro, os mais
aventureiros, quiçá os mais imprudentes, esquecessem os perigos que desse acto
adviriam; arriscavam a sua saúde pelo simples prazer carnal – era com eles!
As lavadeiras negras sempre me mereceram o máximo respeito e
consideração. Trabalhadoras conscientes, procuravam servir o melhor possível,
nunca tive queixa delas. Muitas dessas mulheres tinham uma caterva de filhos,
provavelmente mães solteiras, dava-lhes as minhas rações de combate (carne
de porco e de vaca, atum, sardinhas, chouriço, etc., tudo isso em latas
de conserva), além de lhes pagar o preço de tabela.
- Que era baixo, suponho – quis saber Henrique.
- Tudo é relativo; se levassem muito
caro também não lhe poderíamos entregar a roupa. Os nossos ordenados eram curtos,
como sabes.
Moravam quase sempre perto dos tropas e os seus rendimentos provinham
exclusivamente desse trabalho. As inúmeras crianças aguardavam pacientemente
que acabássemos de comer para depois requisitarem os restos, não os das marmitas,
mas sim aquela comida que sobrava nas terrinas e caldeirões.
- Depois da independência, essas
crianças ficaram sem essa fonte de alimentos…
- É verdade; mas isso já não é problema
nosso. Por outro lado, aquilo não se podia prolongar eternamente. Que estudem,
que trabalhem, que se tornem independentes economicamente. Ninguém pode, nem
deve, viver uma vida inteira à sombra do rancho dos militares: é aviltante,
indigno de um ser humano. A igualdade entre as raças passa sem dúvida pela
negação da subserviência. A mendicidade submerge a dignidade; o homem negro tem
de compreender isso.
- Você exalta-se com facilidade!... – observa Henrique.
- Empolgo-me um bocado, é certo; mas a
minha indignação é motivada pelo servilismo de alguns: sejam amarelos, brancos,
negros, vermelhos, ou de outra qualquer cor ou raça. O ser humano deve
emancipar-se; somos todos donos do planeta e, por isso, sem exceção, temos
direito a nele residir com dignidade.
- Estou plenamente de acordo consigo,
amigo Cândido. O planeta Terra é de todos os seus habitantes, mas nem todos
pensam assim... Mas falava-me das lavadeiras…
- Como já te disse anteriormente, a
maioria dos soldados, cabos, furriéis e sargentos, dava a sua roupa a lavar às
lavadeiras africanas. Os oficiais, como ganhavam bem, contratavam, a maior
parte deles, empregada doméstica; as esposas, quando casados, habitavam numa
das cidades mais próximas do acampamento. Sabes que se contava uma história de
adultério acerca de um destes casais, separados periodicamente devido à guerra?
- Uma história de faca e alguidar,
calculo!
- Mais ou menos. Queres ouvir?
- Quero, quero… – diz Henrique, eufórico.
- Pois bem: um oficial, suponho que
alferes miliciano, foi mobilizado para a Guiné logo depois de ter rebentado a
insurreição armada. Como era casado, e a mulher pouco mais de vinte anos teria,
resolveu chamá-la para a sua beira, não fosse um gabiru rondar-lhe a porta.
Arrendou uma casa numa pequena cidade, Mansoa, salvo erro, e espera ansiosa e
pacientemente que a esposa chegue. Abraços e beijos, misturados com grossas
lágrimas de alegria. Passava um dia ou dois em casa, quinze dias no mato, e o
tempo ia assim decorrendo. Certo dia, ou melhor, certa noite, aparece de
surpresa no lar. Metralhadora a tiracolo, fatigado, mete a chave à porta e
entra. Ouve uns suspiros estranhos, pensou que a sua mulherzinha sonhava: «sonha comigo, possivelmente!» - sussurrou.
Pousa a arma nas costas de uma
cadeira e prepara-se para se descalçar. Os gemidos e ais aumentam de intensidade
e ele fica confuso. Pega na arma, pé ante pé, e dirige-se para o quarto de
dormir. Parece-lhe ser de lá que provêm os tais ruídos. Arreda a porta e o que
os seus olhos veem, embora numa meio escuridão, são dois corpos nus, juntos,
enleados, movendo-se, ora lenta, ora com frenesim. As suas bocas ora se beijam
ora deixam escapar gritinhos de prazer e êxtase. O nosso homem ficou bloqueado,
estupefacto, não querendo acreditar no que via: «Não, não estou aqui, deliro!»
Ergue a arma e aponta: pum! Dispara todas as balas do carregador. O
sangue dos amantes esguichou por todo o quarto, a cama ficou num poço de
líquido vermelho, vermelho!
- Terrífico desfecho, esse! E o
oficial, que fez a seguir? – pergunta
Henrique, bastante comovido, quase não acreditando naquilo que ouvira.
- Há quem diga que ele se suicidou após
esse acto. Uma outra versão diz que ele se entregou às autoridades militares,
cujo tribunal o condenou a uma comissão em Angola ou Moçambique, onde morreu em
combate.
- Se soubessem o nome dele, seria fácil
seguir-lhe o rasto…
- Ninguém sabe, somente os militares, e
esses abafaram o caso.
- Que ela lembra outras histórias similares,
verídicas, isso lembra. E tomaram conhecimento, ao menos, do nome do alvejado,
do amante da adúltera?
- Aí as coisas complicam-se. Há quem
diga que se tratava de um rapaz negro, de vinte anos de idade, criado do casal,
muito habilidoso na cozinha, sorridente, simpático, bem-parecido.
- Pelos vistos, também era exímio na
cama…
- São apenas boatos. Se foi esse rapaz,
fora batizado não havia muito tempo, a solicitação da senhora, por sinal bastante
religiosa, muito temente a Deus.
- Então, se o moço recebeu o banho na
pia batismal, o pecado era menor…
- Brinca, brinca, maroto!
- Contudo, apontam outros suspeitos?
- Também se falava em colegas:
solteiros, com um clima quentíssimo, muito piripiri na comida, afrodisíaco por
excelência, enfim! São apenas suposições. A verdade, verdadinha, só os altos
graduados a souberam.
- Muito interessante essa sua
historieta. E as…
- Já sei: as lavadeiras. Algumas delas
estragavam uma camisa, umas calças, mas que se havia de fazer? Não possuíam os
ferros de engomar que agora existem, a eletricidade, e a vapor, e não dominavam
ainda todas as técnicas de tal mester. Mas também os preços que cobravam não
eram de molde a exigir-lhes perfeição. Quanto ao resto, bem: algumas viram
aumentar o rol de filhos, os mulatos, a cor que não pode negar a sua origem.
São eles que atestam a passagem do homem branco pela terra dos negros. Até se
dizia que uma dessas mulheres veio com seu filho a Portugal à procura do
militar que lho arranjara… Tretas!
- Repugnava-lhe casar com uma mulher de
cor negra?
- A essa pergunta não é fácil
responder. Penso, no entanto, que seria um verdadeiro disparate um branco casar
com uma negra do mato se tencionasse vir para Portugal. Sabes por quê? Porque
ela não iria adaptar-se facilmente à vida europeia. E como apresentá-la aos
pais? «Eis aqui a minha esposa. Não fala
a nossa língua, não sabe o que é morar numa casa de pedra, como a nossa, com
divisórias, ignora o que é uma casa de banho! Vivia em uma palhota de barro
amassado, coberta de capim.» E depois? Seria uma confusão tremenda.
- Até podia dar certo – retruca Henrique.
- Desde que ele ficasse a residir em
África, não digo que não. E isto que te estou a dizer nada tem a ver com racismo,
mas sim com culturas, com maneiras de gerir a vida: os negros que residem na
selva são muito infelizes quando se encontram longe de África, do seu meio
natural.
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