quinta-feira, 9 de junho de 2016

LINA  - Filha de Pã
(romance)

Por Joaquim A. Rocha 

desenho de Luís Filipe G. Pinto Rodrigues

// continuação (ver em 5/5/2016).

   O Mário partiu a correr, o tempo caminhava velozmente. Por volta das dez da noite tinha que estar no portão do Senhor Juiz, as namoradas não gostam de esperar. A horta ficava ali a dois passos. Colheu tudo o que a irmã lhe pedira e voltou para casa. Depois de comer uma boa tigela de caldo, com um bocado de toucinho, broa e chouriço lá dentro, saiu apressadamente. Desceu as escadas das muralhas antigas, foi pela avenida, ainda em construção, olhou para o portão, mas a moça ainda lá não estava. Via-se luz na cozinha. Devia estar a arrumar a louça. Logo a seguir a luz sumiu-se. Um vulto desceu as escadas da casa, falou com o cão, com certeza prevenindo-o da chegada de alguém estranho, e logo a seguir dirigiu-se para o exterior. O apaixonado desceu os cinco ou seis degraus que separavam a avenida do portão, e espera que ela o abra. Havia um luar quase apagado, sem brilho, a lua não estava nas suas noites. Ela abriu o metálico portão, o qual rangeu, lamuriento, e logo o viu:

- Ainda bem que vieste. O Senhor Doutor já se deitou. Agora só sai do quarto de manhã. Estamos à vontade.
- Tu sabes que eu gosto de ti há imenso tempo, mas sempre me rejeitaste, eu até já perdera a esperança de um dia vires a ser minha.
- Eu gosto muito de ti, mas como sou nova não estava interessada em namorar, foi só por isso.
- Ainda bem que mudaste de opinião, eu ia ficando doido por tua causa.
- O melhor é entrares; aqui pode alguém ver-nos, e depois já sabes, é um falatório dos diabos. O Senhor Doutor Juiz corria logo comigo.

     O “Brilhantina”, como era conhecido, entrou, mas receoso. Aquele cão assustava-o deveras. Está bem, ela acalmava-o, mas nunca fiando. Por outro lado, se o patrão dela se apercebe disparava sobre ele, pois os juízes andavam armados; tinha-lhe dito, isso mesmo, o empregado do tribunal. Estava a arriscar a vida, mas por a sua amada tudo valia a pena. Ela pegou-lhe na mão e levou-o para a garagem. Depois fechou a porta e diz-lhe com meiguice:

- Então aqui não estamos muito melhor?
- Eu desejei tanto este momento; estar a sós contigo, beijar-te, ter-te só para mim.

     Tremia como varas verdes. O coração ameaçava saltar do peito. Pensava que o que se estava a passar era um simples sonho, um devaneio; quando acordasse tudo se dissiparia. Ela, esperta como era, apercebeu-se da sua agitação, pega-lhe na mão direita e coloca-a nos seus seios. Esfrega-os e ele, pouco a pouco, vai aderindo. Põe-lhe a mão esquerda nas costas, encosta-a mais a ele, abana-a como se fosse peneira, e espreme-a como se fora esponja; procura a sua boca e beija-a com sofreguidão, entrando em êxtase. Ela baixa-se, estende-se numa manta que ali colocara durante o dia, sobe as saias e fecha lentamente os olhos.  

- Mas tem mil cuidados – diz-lhe; - eu estou pura, virgenzinha, nunca tive nada com homem nenhum; és tu o primeiro.
    
     Ele baixa apressadamente as calças, cheias de remendos, os quais reagem mal àqueles movimentos bruscos, como que pedindo mais calma, pois o tempo e as sucessivas lavagens no tanque público tinham causado algumas mossas; ajoelha-se e deita-se sobre aquele corpo aparentemente sedento de brincadeira. Passado um pouco resfolegava, parecia um animal no período do cio. Ela não sentia nenhum prazer. Aquele indivíduo metia-lhe asco, nojo! Só o suportava por causa da criança que transportava no seu ventre.

- Não tenhas pressa – solicitou-lhe ela. – Olha que o mundo não acaba hoje.
- Bem sei, mas é a primeira vez que eu faço estas coisas com uma rapariga. Fui algumas vezes à tia Rosela, mas aquilo não presta – está velha e cheira mal, ia vomitando.
- Metes-te com bandalhos! E ainda por cima pagaste. A partir de agora não precisas de procurar esse coiro, tens-me a mim.
    
      Ela brincou demoradamente com ele, fez-lhe cócegas, rebolaram pelo chão, riram-se com vontade. Diz o rapaz:

- Tu é que me surpreendeste: pareces magrinha, mas afinal és cheiinha, não se te notam os ossos.
- Alimento-me bem, não sou como tu, que passas lazeira!
- Ainda hei-de ser rico, vais ver. Quando puder vou para o Brasil.
- Só se fores abanar a árvore das patacas. E quem é que te manda ir?                    
- Isso… não sei; não conheço nenhum parente que esteja lá. Nem sequer amigos. Mas se Deus quiser tudo se consegue.  
- Tenho uma ideia. Se viermos a ser um do outro, marido e mulher, peço ao Senhor Doutor Juiz que te empreste o dinheiro para a viagem.
- Fazes isso?! Disseram-me que os barcos saem de Leixões, ali para os lados do Porto. Até lá, ia de camioneta e de comboio.

     Ela, saturada de tanta conversa, já com sono, as pálpebras fechando-se, diz-lhe:

- Bem: se não te apetece mais, vamos dormir. Eu tenho que me levantar cedo para fazer compras e o pequeno-almoço do Senhor Doutor.
- Deixa-te estar mais um bocadinho – mendigou o rapaz, numa voz quase sumida.
    
     Dali a pouco levantaram-se, ela levou-o até à saída e despediu-se dele com um beijo nos lábios. Subiu as escadinhas, abriu a porta e dirigiu-se ao seu quarto. Não estava em condições de se apresentar ao seu senhor – sentia-se suja, emporcalhada.
     Levantou-se por volta das sete horas. Dirigiu-se à padaria a fim de comprar pão acabado de sair do forno. Que cheirinho! Dava gosto. O Senhor Doutor adorava aquele pão, barrado com manteiga. E que prazer ela sentia em servi-lo, com uma boa chávena de leite de vaca, acabadinho de chegar, sobre o qual deitava meio decilitro de café, a fim de lhe tirar aquela cor branca e dar-lhe outro sabor.
     Era mesmo uma Vila rural: tudo cheio de hortas, de campos, de gado a pastar nos baldios próximos, e até suínos e galináceos se viam pelas ruas! Desde que houvesse dinheiro, nada faltava. O pior é que nem toda a gente ganhava o ordenado do juiz, a maioria do povo português, nesses anos trinta, passava imensas necessidades. Os produtos do campo eram vendidos ao desbarato, ainda por cima às vezes o temporal estragava tudo, o milho escasseava, o centeio era pouco, trigo não se dava naquele clima inóspito de inverno e escaldante no verão. A hortinha ia colmatando algumas falhas alimentares, mas era preciso comprar azeite, arroz, bacalhau, carne de vaca e de vitela, peixe fresco, etc. As conservas de atum e sardinha, compradas ali perto, na Galiza, a preços baixíssimos, iam completando algumas refeições. Para arranjar dinheiro vendiam-se os presuntos, lacões, um ou outro salpicão, mas também havia que dar ao médico, ao pároco…, por isso não se podia vender tudo. O regime político saído da Ditadura Militar era severo, controlava tudo, a produção, os preços, os salários, nada era deixado ao acaso. Ser pobre era um desígnio, quase uma fatalidade.

      A primeira República fora um autêntico desastre, diziam os adeptos do Corporativismo, tinha deixado o país na penúria, os cofres do Estado vazios. A nossa entrada na I Grande Guerra exaurira o Tesouro Nacional. Às tantas já não havia dinheiro nem para mandar cantar um cego! Os governos caíam como tordos! Sem dinheiro, não havia progresso. A fome alastrava por todo o país. As colónias ficaram esquecidas, ninguém lhes ligava! Os militares que saíram de Braga, chefiados pelo general Gomes da Costa, puseram cobro à bagunça. Acabou-se a República. Mas, pelos vistos, eles também não desejavam a monarquia. Chamaram um Professor Catedrático, que leccionava em Coimbra, e escrevia sobre matérias financeiras num jornal nacional, a fim de dirigir as Finanças do país. O que aconteceu toda a gente o sabe: pouco a pouco foi-se apoderando do poder e às tantas transforma-se no Chefe, no Senhor Supremo do Estado e da Nação. Criou um modelo político, inspirado na Itália de Mussolini e na Alemanha de Hitler, nem República nem Monarquia, um caldo, uma autêntica miscelânea, mistela repugnante, embora houvesse presidente da “República”, sempre um militar, mas praticamente sem quaisquer poderes, um presidente a bem dizer a fingir! // continua...

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