ESCRITOS SOBRE MELGAÇO
Por Joaquim A. Rocha
MELGAÇO E REMOÃES
Como disse em
artigo anterior (ver A Voz de Melgaço n.º 957) o nome Melgaço deve provir de
Melkart, deus fenício. Os fenícios, povo de comerciantes, inventores do
alfabeto a partir de outros sistemas de escrita, percorreram toda a península
ibérica, trocando e vendendo os seus famosos produtos, sobretudo tecidos de lã
e seda, cuja cor púrpura a todos impressionava. Os ricos e nobres usavam-nos
com grande requinte. A propósito da púrpura existe uma lenda curiosa. Certo dia
um fenício vai com o seu cão até à praia. Como estava calor, o cão correu para
a água. Feliz com o seu banho, voltou alegremente para junto do seu dono,
fazendo-lhe copiosas festas. O homem vestia uma túnica branca, quase até aos
pés. O focinho do animal manchou a túnica. Quando o homem se apercebeu do que
tinha acontecido, bateu no cãozito. Depois seguiu para casa a fim de tirar as
nódoas da roupa. A mancha, porém, teimou em ficar. O homem volta à praia com o
seu companheiro de quatro patas e verifica que ele tinha estado em contacto com
uma variedade de moluscos, cuja tinta se impregnava nos tecidos, sendo quase
impossível tirá-la. Estava descoberta a púrpura. Ficou famosa a púrpura de
Tiro, cidade fenícia, junto ao mediterrâneo.
Segundo alguns
olisipógrafos, Lisboa deve também o seu nome aos fenícios. O seu alfabeto não
possuía vogais. A escrita deles era silábica; limitava-se «a anotar a sílaba, isto é, uma realidade sempre pronunciável e fácil de
isolar», embora «da sílaba só anote a
consoante, elemento essencial para indicar o sentido, deixando que a vogal seja
fornecida pelo leitor», segundo escreveu o Professor Meillet. Foram os
gregos, seus rivais no comércio do mediterrâneo e costa atlântica, que as
acrescentaram com caráter permanente. É através deles, gregos, que os latinos,
e outros povos europeus, vêm mais tarde a tomar conhecimento do código escrito.
Melkart, com esta
forma, é pois palavra grega. Na sua Gramática Histórica o Professor Doutor Ismael
Coutinho ensina-nos que «nos empréstimos
tomados ao grego, representava o latim o K por g: gummi <grego kómmi; gobius
<kóbiós; gubernare <kubernân.» Logo, o k de Melkart deve ter
desaparecido ainda no latim. Quanto à permanência do nome deve referir-se que
os romanos respeitaram, de uma maneira geral, os topónimos, o mesmo aconteceu
mais tarde com os suevos e visigodos. Os árabes não tiveram nenhum papel relevante
nesta zona da península ibérica.
Como estamos em
maré de nomes, hoje vou fazer uma tentativa para explicar o topónimo Remoães. O
padre Aníbal Rodrigues, pároco de Castro Laboreiro, ao elaborar um pequeno
roteiro turístico-cultural do concelho, em 1983, referiu-se a Remoães do
seguinte modo: «Este nome é pouco usual.
A sua origem deve relacionar-se com os remos do rio (remoanes) – passagem de
barco no rio – os homens que dirigiam os barcos.» Embora esta asserção
peque por vaga, o padre Aníbal dá-nos uma pista para se chegar à provável
origem: «Num monte de forma pirâmide, a
norte da igreja paroquial, à distância de uns quinhentos metros
aproximadamente, encontram-se vestígios de uma antiga povoação castreja –
antigo castro, de há dois mil e quinhentos anos.» Esses castros foram
construídos, como se sabe, pelos celtas, povo oriundo do centro da Europa. Uma
das suas tribos chamava-se precisamente Remi (Remos, em português moderno).
Foram eles que fundaram Reims, cidade francesa no Departamento de Marne.
Informa-nos a Enciclopédia Verbo que Reims era a «principal cidade dos celtas Remi» e que «quando da ocupação romana era uma das povoações mais florescentes da
Galácia.» Pois bem, os habitantes de Reims designam-se rémois, cuja
pronúncia é remuá.
Não há qualquer dúvida que os celtas estiveram
no território que é hoje a freguesia de Remoães por volta de quinhentos anos
antes desta era, há dois mil e quinhentos anos, portanto! Aí devem ter
permanecido durante séculos, isolados ou agrupados com outras tribos, até à
chegada dos romanos. Com a vinda destes para a península ibérica, os celtas
tiveram de se romanizar, pelo menos adotando a língua (embora com uma pronúncia
algo alterada) e a escrita dos vencedores. A língua celta e a língua latina têm
muitas afinidades, pois ambas provêm do remoto indo-europeu. Se foram eles que
deram ou não o nome a esta localidade só a arqueologia e a linguística nos
poderão tirar essa dúvida, mas que as hipóteses são muitas, isso são. A
terminação «anes» é consequência da passagem do latim para o português.
Compare-se Chaviães que, no foral dado a Melgaço por Afonso Henriques, aparece
escrito Chavianes (de Flavianus).
Remoães esteve
sempre no plural (Remoanes = a terra dos Remos?), nunca se escreveu ou
pronunciou, segundo me parece, no singular, pois se assim tivesse acontecido
daria Remoão e não Remoães.
Acerca do antigo
dialeto galeziano (galaico-português) já alguém disse que «não é desarrazoado afirmar que o tratamento diferente que teve o latim
nessa região compreende-se, por ter sido ocupada pelos celtas e suevos, e haver
constituído um feudo, que mais tarde se tornou independente.»
Que os romanos
estiveram em Remoães também não há dúvidas; demonstra-o claramente o nome
Folia, que significa, folha, folhagem. Quando os romanos construíram a ponte da
Folia certamente haveria nesse local muitas árvores frondosas, daí o nome.
Se quiséssemos
especular ainda sobre o nome Remoães poderíamos fazê-lo derivar de remolares,
homens que fazem ou consertam remos. Em catalão, remolar tem o mesmo
significado! O Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro
Machado, transcreve a seguinte passagem de 1434: «… fazemo-lo mestre dos remolares, assim e pela guisa que o ele havia…»
O que prova que esta profissão existiu. Aliás, Lisboa tem uma rua com esse
nome. Não custa, pois, acreditar que nesse sítio, hoje Remoães, houvesse há
alguns séculos atrás uma oficina, na qual se fabricariam e consertavam remos. O
rio Minho era, em tempos idos, mais navegável do que é hoje; e, portanto,
ver-se-iam no seu leito muitos mais barcos do que atualmente.
Sem achados de
vulto na área da arqueologia, e de outras ciências afins, nada poderemos
afirmar sem corrermos graves riscos de fraude científica. Estamos ainda no campo
das hipóteses. Esperemos que um dia Melgaço suscite curiosidade à comunidade
científica, portuguesa e estrangeira; se assim acontecer, esclarecer-se-ão certamente
muitas dúvidas que ainda e teimosamente persistem. Os remoanenses que me
desculpem por eu não lhes dar certezas.
Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 1006, de 1/5/1994.
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