quarta-feira, 15 de junho de 2016

LEMBRANÇAS AMARGAS
romance

Por Joaquim A. Rocha

croça: a gabardine dos pobres


IX

Os túneis da alma também podem ser iluminados


     Insaciável, vou adquirindo informação, jogando os trunfos disponíveis, ansioso por saber o meu passado e o dos meus maiores; não é uma curiosidade mórbida que me move, que me faz rodopiar sobre um tempo que não é o meu mas que julgo também pertencer-me por sangue, pelos laços que me ligam a essas pessoas. Vão ter mais uma oportunidade de escutar uma conversa com o meu irmão Olavo, o meu irmão inteiro, como gosto de sublinhar. Desta vez encontrámo-nos sentados num banco do jardim, perto do coreto da Vila. Não façam qualquer ruído e escutem:

- Então tu, depois de fazeres a quarta classe, foste para a cidade dos alfacinhas?
- Fiz a quarta-classe em Julho de 1954, na escola primária Conde de Ferreira, situada bem ao cimo da Praça da República, era meu professor o senhor Romano, iria completar treze anos em Setembro, portanto ainda a acabei com doze anos de idade. Nessa altura estava a nossa mãe amantizada com o velho, o tendeiro Acúrsio. O bruxo não gostava nada de mim, fazia-me a vida negra, da cor do basalto, o que ele queria era que saísse de casa, para se sentir mais à vontade com a velhota, tu não estorvavas, eras um badameco, um medricas, um zé-ninguém, um choninhas, não contavas absolutamente para nada; eu não, era teso, impunha-lhe respeito, comigo não se metia, ai não, que o derretia, que o amassava de pancada, rachava-o ao meio, ao filho da mãe, ao feiticeiro duma figa. Nas férias grandes puseram-me a servir, em Cendrães, a tratar do gado e a cavar os campos, a puxar a charrua, a mim, uma criança, e sem nunca ter trabalhado na agricultura; a tua mãe colaborava com a besta, e aplaudia, tinha medo dele, mas também o que ela queria era alguém que lhe desse vinho e que dormisse com ela, uma badalhoca, uma cabra, andar com aquele velho porco, que nem sequer era da terra, era de fora, da terra dos bandidos.
- A mamã não teve culpa, coitada, estava farta de sofrer, precisava de alguém que olhasse por ela e pelos dois filhos mais novos.
- Olhar?! Maltratar, queres tu dizer. Contigo as coisas eram diferentes, eras um coitado, não podias com um gato pelo rabo; ora eu tinha corpo, já fazia a barba com treze anos, tinha cara de homem. Mal acabei a escola mandaram-me plantar pinheiros para a floresta, a mais de vinte quilómetros da Vila; tinha de ir a pé, carregado com batatas, feijão, toucinho, uma panela para cozinhar, alimentos para uma semana, tinha de passar por aqueles montes, os lobos uivando, assustavam qualquer um, depois de lá chegar tinha de trabalhar como um escravo, tínhamos de plantar milhares de pinheiros, a comida era escassa, dormíamos no chão, em cima de palha de centeio, aquilo não era vida para um rapaz de treze anos. Os homens cheiravam mal, não tomavam banho, tudo era porco, imundo!
- Então resolveste ir para Lisboa.
- Não foi fácil, pois era necessário ter lá alguém que me arranjasse emprego, o Ambrósio estava prestes a ir para a América do Sul e a Susana era criada doméstica, pouco me poderiam valer, mesmo assim ainda ajudaram. Conheciam um indivíduo aqui da Vila, o senhor Anastácio, que possuía estabelecimento de comércio na capital do país, fui para lá, mas o ordenado era demasiado baixo, e fartava-me de trabalhar, tinha de entregar os cabazes das compras aos fregueses, subir centenas de escadas todos os dias, agora os prédios já têm elevador, naquele tempo não tinham, carregado que nem uma mula, sem horários, coitado de mim, cada dia mais fraco, ia toupando, rebentando pelas costuras.
- Foste promovido…
- Saiu de lá um empregado de balcão e o senhor Anastácio deu-me esse lugar à experiência; fiz tudo para agradar, agradei, a minha vida melhorou um bocadinho, mas olha que a comida não prestava, e o pagamento era uma ninharia, uma miséria, não havia uma hora de sair, trabalhava mais de doze horas por dia!
- Estavas a ser explorado.
- Se estava! Bem o podes dizer. O tipo enriquecia à nossa custa, todos se aproveitam dos pobres, depois vão à igreja bater com a mão no peito, os filhos de uma macaca, é para Deus lhes perdoar, mas não lhes perdoa, que ele é justo, está do lado dos desprotegidos, dos sem rumo, mas olha que às vezes tenho dúvidas, há ricos que nunca são castigados e fartam-se de fazer patifarias, de cometer pecados.
- Que sabemos nós disso?! Estiveste em Lisboa até ires para a tropa.
- Que remédio; tinha imensas saudades da terra, dos amigos, mas nessa cidade é que tinha o emprego, não era grande coisa mas era melhor do que nada, aqui só se fosse trabalhar para a estrada, abrir valas para os cabos telefónicos, ou outra vez para a floresta, isso nunca mais, fartei-me de sofrer, só o cheiro daqueles homens imundos, nunca tomavam banho, eu ainda ia ao rio tomar, mas eles nem isso, cheiravam mal que tresandavam, uma imundície, não se aguentava, e ainda por cima se peidavam, fartavam-se de comer feijão e depois mais parecia uma guerra de puns, e os filhos da mãe riam, achavam graça àquilo! Eu sentia repugnância, metia a cabeça debaixo da manta, mas o cheiro era demais; depois as pulgas, as gajas mordiam-me todo, de manhã acordava cheio de picadelas, e os piolhos, às centenas, era uma autêntica tragédia, pior ainda do que em nossa casa. Em Lisboa havia mais limpeza, dois lençóis brancos na cama, uma caminha pequenina só para mim, alugara um quarto na Baixa, numas águas-furtadas, baratucho, o pior era quando chovia, o telhado estava uma desgraça, o prédio era do século passado, se sofrera obras já devia ter sido há muitos anos, a dona era uma macróbia e não tinha dinheiro para o mandar consertar, quando caísse, caía, mas primeiro ainda havia de morrer ela.
- É engraçado, quando eu e a mamã fomos a Lisboa visitar-vos em 1961 estavas tu prestes a entrar na recruta. // (continua...)

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