LEMBRANÇAS AMARGAS
romance
Por Joaquim A. Rocha
croça: a gabardine dos pobres
IX
Os túneis da alma também podem ser iluminados
Insaciável, vou
adquirindo informação, jogando os trunfos disponíveis, ansioso por saber o meu
passado e o dos meus maiores; não é uma curiosidade mórbida que me move, que me
faz rodopiar sobre um tempo que não é o meu mas que julgo também pertencer-me
por sangue, pelos laços que me ligam a essas pessoas. Vão ter mais uma
oportunidade de escutar uma conversa com o meu irmão Olavo, o meu irmão
inteiro, como gosto de sublinhar. Desta vez encontrámo-nos sentados num banco
do jardim, perto do coreto da Vila. Não façam qualquer ruído e escutem:
- Então tu, depois de fazeres a quarta classe, foste para a cidade
dos alfacinhas?
- Fiz a quarta-classe em Julho de 1954, na escola primária Conde de
Ferreira, situada bem ao cimo da Praça da República, era meu professor o senhor
Romano, iria completar treze anos em Setembro, portanto ainda a acabei com doze
anos de idade. Nessa altura estava a nossa mãe amantizada com o velho, o
tendeiro Acúrsio. O bruxo não gostava nada de mim, fazia-me a vida negra, da
cor do basalto, o que ele queria era que saísse de casa, para se sentir mais à
vontade com a velhota, tu não estorvavas, eras um badameco, um medricas, um
zé-ninguém, um choninhas, não contavas absolutamente para nada; eu não, era
teso, impunha-lhe respeito, comigo não se metia, ai não, que o derretia, que o
amassava de pancada, rachava-o ao meio, ao filho da mãe, ao feiticeiro duma figa.
Nas férias grandes puseram-me a servir, em Cendrães, a tratar do gado e a cavar
os campos, a puxar a charrua, a mim, uma criança, e sem nunca ter trabalhado na
agricultura; a tua mãe colaborava com a besta, e aplaudia, tinha medo dele, mas
também o que ela queria era alguém que lhe desse vinho e que dormisse com ela,
uma badalhoca, uma cabra, andar com aquele velho porco, que nem sequer era da
terra, era de fora, da terra dos bandidos.
- A mamã não teve culpa, coitada, estava farta de sofrer, precisava
de alguém que olhasse por ela e pelos dois filhos mais novos.
- Olhar?! Maltratar, queres tu dizer. Contigo as coisas eram
diferentes, eras um coitado, não podias com um gato pelo rabo; ora eu tinha
corpo, já fazia a barba com treze anos, tinha cara de homem. Mal acabei a
escola mandaram-me plantar pinheiros para a floresta, a mais de vinte
quilómetros da Vila; tinha de ir a pé, carregado com batatas, feijão, toucinho,
uma panela para cozinhar, alimentos para uma semana, tinha de passar por
aqueles montes, os lobos uivando, assustavam qualquer um, depois de lá chegar
tinha de trabalhar como um escravo, tínhamos de plantar milhares de pinheiros,
a comida era escassa, dormíamos no chão, em cima de palha de centeio, aquilo
não era vida para um rapaz de treze anos. Os homens cheiravam mal, não tomavam
banho, tudo era porco, imundo!
- Então resolveste ir para Lisboa.
- Não foi fácil, pois era necessário ter lá alguém que me
arranjasse emprego, o Ambrósio estava prestes a ir para a América do Sul e a
Susana era criada doméstica, pouco me poderiam valer, mesmo assim ainda
ajudaram. Conheciam um indivíduo aqui da Vila, o senhor Anastácio, que possuía
estabelecimento de comércio na capital do país, fui para lá, mas o ordenado era
demasiado baixo, e fartava-me de trabalhar, tinha de entregar os cabazes das
compras aos fregueses, subir centenas de escadas todos os dias, agora os
prédios já têm elevador, naquele tempo não tinham, carregado que nem uma mula,
sem horários, coitado de mim, cada dia mais fraco, ia toupando, rebentando
pelas costuras.
- Foste promovido…
- Saiu de lá um empregado de balcão e o senhor Anastácio deu-me
esse lugar à experiência; fiz tudo para agradar, agradei, a minha vida melhorou
um bocadinho, mas olha que a comida não prestava, e o pagamento era uma
ninharia, uma miséria, não havia uma hora de sair, trabalhava mais de doze
horas por dia!
- Estavas a ser explorado.
- Se estava! Bem o podes dizer. O tipo enriquecia à nossa custa,
todos se aproveitam dos pobres, depois vão à igreja bater com a mão no peito,
os filhos de uma macaca, é para Deus lhes perdoar, mas não lhes perdoa, que ele
é justo, está do lado dos desprotegidos, dos sem rumo, mas olha que às vezes
tenho dúvidas, há ricos que nunca são castigados e fartam-se de fazer
patifarias, de cometer pecados.
- Que sabemos nós disso?! Estiveste em Lisboa até ires para a
tropa.
- Que remédio; tinha imensas saudades da terra, dos amigos, mas
nessa cidade é que tinha o emprego, não era grande coisa mas era melhor do que
nada, aqui só se fosse trabalhar para a estrada, abrir valas para os cabos
telefónicos, ou outra vez para a floresta, isso nunca mais, fartei-me de
sofrer, só o cheiro daqueles homens imundos, nunca tomavam banho, eu ainda ia
ao rio tomar, mas eles nem isso, cheiravam mal que tresandavam, uma imundície,
não se aguentava, e ainda por cima se peidavam, fartavam-se de comer feijão e
depois mais parecia uma guerra de puns, e os filhos da mãe riam, achavam graça
àquilo! Eu sentia repugnância, metia a cabeça debaixo da manta, mas o cheiro
era demais; depois as pulgas, as gajas mordiam-me todo, de manhã acordava cheio
de picadelas, e os piolhos, às centenas, era uma autêntica tragédia, pior ainda
do que em nossa casa. Em Lisboa havia mais limpeza, dois lençóis brancos na
cama, uma caminha pequenina só para mim, alugara um quarto na Baixa, numas
águas-furtadas, baratucho, o pior era quando chovia, o telhado estava uma
desgraça, o prédio era do século passado, se sofrera obras já devia ter sido há
muitos anos, a dona era uma macróbia e não tinha dinheiro para o mandar
consertar, quando caísse, caía, mas primeiro ainda havia de morrer ela.
- É engraçado, quando eu e a mamã fomos a Lisboa visitar-vos em 1961
estavas tu prestes a entrar na recruta. // (continua...)
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