ESCRITOS SOBRE MELGAÇO
Por Joaquim A. Rocha
PROVÁVEL ORIGEM DO NOME MELGAÇO
Não pretendo
com este modesto trabalho exibir conhecimentos em Linguística, Etimologia, ou
ciências afins, ou sequer colocar em causa investigações passadas de pessoas
sérias, honestas, que tudo tentaram para descobrir a origem dos nomes da nossa pequena
pátria. Eu quero apenas contribuir com o meu esforço para esclarecer alguns
pormenores que escaparam a esses senhores, todos eles já falecidos. Certezas
absolutas, quem as têm? Claro que, no meio desses estudos, surgiram algumas
fantasias, por vezes vindas de gente de quem não se esperaria tal coisa, mas
enfim, sem as ferramentas adequadas, que não possuíam, teremos que ser nós, gente
do século XXI, com outros meios, outros recursos, a separar o trigo do joio. O
caminho é sáfaro, ingrato; mas desistir era o pior que nos poderia acontecer. É
necessário dar passos seguros, com a ajuda de todos: etimologistas,
arqueólogos, etc., para que um dia não restem quaisquer dúvidas sobre o
assunto.
O concelho tem dezoito freguesias desde
meados do século XIX, e dentro de cada uma delas existem muitos lugares, cada
qual com o seu nome; conhecer a sua raiz não é fácil, sobretudo porque Melgaço
está longe dos grandes centros e os cientistas diplomados quase esqueceram por
completo a sua existência! Teremos de ser nós, gente que nasceu neste lindo
torrão, a fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para que o passado
histórico surja a nossos olhos limpo de poeiras, sem ambiguidades e mentiras. Eu
sei que é mais fácil escrever quando nada, ou pouco, se sabe, pois inventam-se
mil patranhas e fica tudo resolvido.
A seguir vou transcrever, não sei se
exaustivamente, todos os textos que até agora se escreveram sobre a etimologia
do topónimo Melgaço, além de outros cujo tema lhe é próximo. Não são muitos, e
o seu valor é desigual, mas serviram pelo menos para lembrar que este rincão
foi visitado por gentes de outros continentes – Ásia e África – além de povos
da velha Europa, que por aqui andaram, quer em guerra, quer em paz. Omito,
propositadamente, os textos de Fernão Lopes, Alexandre Herculano, e de alguns outros,
pois apenas se debruçam sobre a História, sobretudo militar. Leia-se então tudo
aquilo que se disse, de uma forma mais ou menos sábia, sobre a origem remota da
bela palavra Melgaço:
«Quando,
pois, os romanos conquistaram a península, Melgaço, a ocidente dos querquérnios
e bem perto dos aobrigenses, não foi riscado do mapa da antiga Gallaecia e
porque manteve a sua integridade, quando os conquistadores ajustaram a divisão
administrativa das Hespanhas, criando a província Tarraconense, ficou uma das
vinte e quatro civitates ou povos do convento jurídico de Braga. Simplesmente o
nome deste povo, a palavra Melgaci, não esmalta as páginas do livro de Plínio,
porque como ele próprio confessou, pareceu-lhe fastidiosa a enumeração total
desses povos.
Ora o chefe dos melgaceos, o celta Melgacus que os baptizou, baptizou
também este querido torrão natal, porque escolheu o planalto, onde hoje assenta
a Vila, para aí erguer o seu opidum, que lhe serviu, ao mesmo tempo, de centro
de governo da sua civitas, de defesa e de habitação: uma fortaleza com duas ou
três ordens de muralhas, à semelhança de Briteiros, Sabroso ou Santa Luzia, com
casas redondas ou rectangulares para o chefe e servos, estábulos para gados,
etc.
Os romanos levaram anos a arrancar os melgaceos para a civilização e se
até hoje não apareceram lápides ou outras memórias a provar terem arrasado ou
conservado o opidum, deles ficou memória nas “villa”, propriedades rústicas
cuja cultura ensinaram a fazer, disseminadas por estas redondezas, como Erada,
Cavaleiros, Colanes, Prado, Cristóval…»
(Melgaço e as Invasões Francesas – 1807-1814, por Augusto César Esteves,
1959, página 77).
O
Dr. Augusto César Esteves (1889-1964),
melgacense dos quatro costados, morreu convencido de que obtivera a resposta
para as suas dúvidas quanto à origem do nome Melgaço. No entanto: [Já o
Arqueólogo Português registou iguais fantasias, anticientíficas, de fisionomia
popular, a respeito de Malha, em Torres Novas, Alenquer, Nagosa, etc. Vejamos o
texto: «Vulgarmente, o povo designa como
cidade certas ruínas e localidades antigas, revestindo-as até de lendas, por
exemplo, cidade de Malha (Torres Novas), cidade de Alenquer, cidade de Nagosa
(Tua), e, por antonomásia, Cidade (Melgaço),
palavra que corresponde a castro.»] (Estudos
de Língua Portuguesa – Arlindo de Sousa, Rio de Janeiro, 1956, página 10).
Mas há mais: «Depois da época dos castros e das citânias andaram por aqui os romanos.
Esta palavra Melgaço está ligada com
isso; supõe-se que a sua origem seria o nome de um tal Melgaceus, romano ou
nativo muito romanizado, cuja vida pode ser documentada por inscrições
epigráficas aqui do Alto Minho.» (O Tempo e a Alma, de Hermano José
Saraiva, página 12).
Numa lápide que se encontra na Casa do
Avelar pode ler-se: «ARQUIVS VIRIATI F C
AGRIPIA H. S. EST MELGAECUS PELISTI MONVME(NTVM) C(OLLOC) AV(IT), ou seja: Arquius,
Viriati f(ilius), c(enturia) Agripia, h(ic) s(itus) s(epultus) est. Melgaecus,
Pelisti (filius), monume(ntum) co(lloc)av(it).» // Resumindo: um tal “Melgaecus”
erigiu um monumento funerário a Arquius, filho de Viriato.
Outra inscrição, esta de Málaga: «(Ca)malo Melg(aci) Fi(li)o Bracara
A(v)gustano (S)acerdoti (Ro)mae Aug. Caesa(rum) Conventus (A)vgvst(anvs).» //
Traduzido para português, dá mais ou menos isto: Câmalo, filho de Melgaci, sacerdote de Bracara Augusta…
«Melgaço. Topónimo. Melgazo em 1173 (Documentos
Medievais Portugueses, página 418), Melgacio em
1181 (Leges, página 422; ver também D.M.P., I, páginas 475 e 477), e em 1219 (D.M.P., I, página 477), Melgazo, novamente, em 1258 (Inquisitiones,
página 330).»
No “Dicionário Onomástico Etimológico da Língua
Portuguesa”, da Editorial Confluência, volume II, página 974, lê-se: «Melgaço. Origem obscura; do latim
*mellicaceus, de *mellicus, este de melle (mel)?, de melga, insecto? A hipótese
de Leite de Vasconcelos (do
antropónimo galaico Melgaecus) também oferece dificuldades (Religiões da
Lusitânia, volume III, página 152, nota 2).»
Vamos então consultar José Leite de
Vasconcelos «Religiões da Lusitânia, volume III, página 152, nota 2»: [… é provável
que (…) houvesse povoações indígenas, como se deduz dos nomes locais (de divindades e de pessoas) que
aparecem nas inscrições da época romana, por exemplo Rego, Verora, Apilus,
Arquius, Camalus, Melgaecus (talvez
esta palavra contenha o radical de Melgaço, nome actual de uma Vila do Alto Minho;…)].
Natália Correia, num posfácio que redigiu para
o livro de Moisés Espírito Santo “Origens Orientais da Religião Popular
Portuguesa”, seguido de “Ensaio Sobre Toponímia Antiga”, na página 393 questiona-nos:
«Que património mitológico nos chegara
desse fundo semita dos cultos arcaicos antes de Moisés Espírito Santo lançar
este desafio às entorpecidas convicções académicas da etnologia e da toponímia?
A grande influência do templo de Melcart,
o Hércules de Tiro venerado em Cádis nos cultos indígenas que, na Península, se
desenvolveram no primeiro milénio antes da nossa era. Desse centro de irradiação
religiosa do semitismo, cuja influência chega até à plena época imperial
romana, seria réplica na faixa ocidental da Península um santuário de Hércules
no Promontório Sacro, que Ephoros (Éforo, historiador grego: 390-334) refere como
existindo no seu tempo.»
Batalha Gouveia, no jornal Actualidades,
lembra: [Os cananeus, povo que os Hebreus
guerrearam aquando da conquista da Terra Santa, dispunham da expressão Malaku
para denominarem o «rei». Malaku é palavra formada pelos termos mal, «grande»,
e aku «santo». Daí o plural hebraico Malakim dado ao livro bíblico denominado
Reis.]
Platão,
filósofo grego, na sua obra “Crátilo”, escrita há mais dois mil anos, alerta-nos
para as dificuldades que vamos encontrar quando quisermos saber coisas de
épocas remotas: «A grande antiguidade dos
nomes e as profundas modificações que sofreram tornaram-nos indecifráveis.»
Maria Clara de Almeida Lucas, in “A Literatura Visionária na Idade
Média Portuguesa”, página 31, escreveu: «Também
na civilização celta o outro mundo se encontra sobre a Terra, frequentemente
para o ocidente, e muitas vezes sob a forma de ilha dos bem-aventurados, o
“país sob as ondas” ou o “país para lá das névoas” e toma vários nomes: Mag Mor
(grande planície), Mag Mel (planície
dos deleites), etc.»
Maria Lamas, em “Mitologia Geral”, páginas
79 e 80: «Das escavações feitas em
Rãs-Shambra depreende-se que à frente do panteão fenício estava El, criador de
todas as coisas e pai dos deuses, que primitivamente teria sido assimilado ao
céu e talvez também ao sol… Os cananeus foram o único povo semita que utilizou
o apelativo il, el (deus), como nome
próprio, para designar o seu grande deus. El, senhor de todas as divindades,
usava o título de rei, era o “criador da criação” e também o sábio e o juiz por
excelência.»
Na mesma obra, na página 82, lê-se: «No segundo período do panteão fenício, Mot e Aliyan foram assimilados a
Eshmun-Adónis, se bem que os fenícios continuassem a fazer uma certa distinção
entre o espírito da vegetação (Mot) e o da água
subterrânea (Aliyan). Pode dizer-se que o conjunto Aliyan-Eshmun-Adónis
sobreviveu no deus rio Adónis e em Melkart
(o rei da cidade)…»
Na página 85 da obra citada podemos ler: «Melek, Milk, Moloch e Milkom, nomes que
aparecem no segundo período do panteão, significam o “deus”, senhor da cidade
de Tiro, que está em relação com Biblos.»
A mesma obra, nas páginas 96 e 97, informa:
«Fosse qual fosse o seu nome e origem,
todos os deuses e deusas da mitologia fenícia simbolizavam a fertilidade e a
fecundidade, pelo que se pode dizer que o culto fenício foi sempre, em última
análise, a natureza (…). Os santuários
estavam situados no alto dos montes e colinas sagradas. Cada um tinha uma
cela, um bétilo (pedra sagrada) e um
recinto sagrado (haran), onde só podia penetrar o fiel em estado de pureza.
Em frente da cela erguia-se, ao ar livre, o altar rudimentar onde eram
colocadas as oferendas e queimados os holocaustos.»
Luís de Figueiredo da Guerra também se
pronunciou sobre o assunto. Eis a sua versão: «Melgaço. – Divergem as opiniões sobre a origem
desta palavra. Sabemos de povoações portuguesas chamadas Melga, Melgas, Melgar,
havendo também na Espanha um Melgazo. Todas evidentemente se filiam na raiz
latina mel, mellis: mel da abelha; a significação do terminativo “aço” consigna
abundância, correspondendo ao advérbio muito. Se melga já então indicasse uma
variedade de mosquitos, teríamos em vez de lugar abundante em mel, sítio de
mosquitos.»
Como já se observou através das leituras
supra «cada cabeça cada sentença».
Eu, após muitos anos de leituras, de meditação, encontrei um caminho, talvez
uma vereda, que espero não seja um atalho para a asneira. E o que achei é
deveras surpreendente: aquele povo pequenino, mas culto, civilizado, da Ásia
Menor, com as suas cidades nas margens do Mar Mediterrâneo, que difundira o
vidro e inventara a salga do peixe, com escrita, cujo alfabeto espalharam pela
Europa, trouxe-nos uma prenda que se conserva até hoje – o nome Melgaço. Claro
que estou a falar da Fenícia e dos fenícios. Eles estiveram na península
ibérica, quer diretamente, como comerciantes, quer através dos cartagineses,
seus descendentes, como guerreiros. Subiram os rios e, nas partes altas,
erigiram santuários, a fim de adorarem os seus deuses. Melgaço deve, pois,
derivar de Melcart (ou Melkart – o rei/deus da cidade). Os fenícios teriam
entrado no Rio Minho pela sua foz, em Caminha, e avançaram no sentido da
nascente, a fim de levarem os seus produtos às populações que habitavam nas
margens do rio: lã tingida, cerâmicas, couros, perfumes, mas sobretudo o tecido
de púrpura, que eles fabricavam, além de alguns objectos de luxo, só para os
habitantes ricos. Aqui e ali, em lugares altos e provavelmente ermos,
construiriam os altares e fariam sacrifícios aos seus deuses, para que estes
lhes proporcionassem bons negócios.
Existem poucos ensaios científicos sobre o
povo fenício no território que é a partir do século XII Portugal. No entanto, é
indesmentível que muitos topónimos portugueses têm origem fenícia. Em Espanha,
ao contrário de nós, estudaram profundamente esse povo, e sabe-se que Málaga
deriva do nome do deus Melcart. Quer isso significar, na minha modesta opinião,
que os nomes Málaga e Melgaço têm a mesma fonte! Não é difícil, em termos
etimológicos, fazer derivar de Melcart a palavra Melgaço, tendo em conta que a
pronúncia trazida para a península pelas diversas gentes que para aqui vieram
com os romanos alterava profundamente as palavras mais antigas, ficando por
vezes irreconhecíveis passados alguns anos. Exemplos abundam. Vejamos: o “c”
latino pronunciava-se sempre “k” e passou em muitos casos para o português como
“g”: lacu(m) deu lago; jocu(m) deu jogo; ciconia(m) deu cegonha; etc. Trata-se
do fenómeno designado sonorização.
Analisemos então a palavra que nos interessa:
Melcart. Pelo tal processo, passou a Melgart. Mais tarde o “r” cai, talvez por
se ter tornado inútil – não se pronunciava. Como enfraqueceu, caiu, como
acontece com tudo na vida, e as letras e as palavras não são uma exceção.
Resta, por conseguinte, Melgat. O “t” latino, como se sabe, tornou-se “c” em
português. Exemplo: palatium transformou-se em palácio; ratiociniu-
transforma-se em raciocínio, etc. A palavra vai-se modificando. Temos então
Melgac. Nessa altura dir-se-ia “Melgaç”. Posteriormente foi acrescentado, na
língua escrita, um “o”, que na pronúncia se tornaria “u” – “Melgáçu” (o
“o” nessa palavra é apenas convencional).
No
foral concedido ao concelho pelo primeiro rei de Portugal, Afonso Henriques, em
1183, ou logo a seguir, aparece-nos a palavra Melgacio; e noutro documento de
1261 ela surge escrita Melgatio. O “i” não se pronunciava, por isso foi
abandonado, passando o “c” a ter a cedilha, a fim de pronunciado como “ss”. Esse
foral foi escrito em latim tardio, isto é, num latim não clássico. A época de
Júlio César, de Cícero e de Octávio Augusto já ia longe!
No foral de 1258, “oferecido” ao termo por
Afonso III, o topónimo vem escrito “Melgazo”, alternando com Melgaço. É óbvio
que o “z” se pronunciava “ç”de outra maneira não se explicaria essa grafia num texto
régio, e ainda por cima escrito em latim! Diz-nos Duarte Nunes de Leão: «… Mas, com o tempo, perdeu-se a própria
pronunciação desta letra, que os antigos lhe davam, e damos-lha agora por uma
maneira, que soa entre s e ç; a qual letra porque muitos vulgares a confundem
com o s e às vezes com ç…» (“Ortografia e Origem da Língua Portuguesa”,
Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1983, página 80).
Corrobora a minha tese a seguinte frase de
José Leite de Vasconcelos em “Religiões da Lusitânia”, volume I, página XXVI:
«… muitos dos nossos nomes de lugares
actuais provêm de nomes pré-romanos.»
E para terminar, lembro, apenas como
curiosidade, que existe no Brasil uma cidade com este nome. Alguém me disse que
foi um nosso conterrâneo que a fundou no século XIX, sendo-lhe até atribuído o
título de Barão de Melgaço. Se é verdade, ou não, não sei.
Nota: este pequeno estudo foi publicado há uns anos no Boletim Cultural da Câmara Municipal de Melgaço.
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