terça-feira, 30 de abril de 2019

ENTRE MORTOS E FERIDOS
- dois anos de guerra na Guiné-Bissau -
(romance histórico)
 
Por Joaquim A. Rocha
 
 
 





 

19.º Capítulo


 

CONTUBOEL

  

     Mais uma tarde de domingo. As ruas da Baixa fervilhavam de gente; aproximava-se o natal e as lojas tentavam vender o máximo possível. Os portugueses gostam de oferecer prendas nesta quadra do ano, todos se reúnem na famosa ceia de família, e à meia-noite trocam as prendas adquiridas, quantas vezes com que sacrifícios financeiros. É uma tradição antiga e o povo não abdica dela. Claro que com o tempo irá desaparecer, como tudo se extingue, mas não será para já.

    As ruas estavam iluminadas, a Câmara Municipal fizera questão nisso, e à noite era um autêntico espetáculo. Milhares de lâmpadas, de várias cores, proporcionavam uma visão de sonho, de irreal.

     Os dois amigos mais uma vez se encontraram. O primeiro a chegar foi Cândido, mas não esperou muito. Quando avistou Henrique disse-lhe: 

 

- Boa tarde. Hoje está um dia cinzento, não sei se preferes antes ir ao cinema, agora nesta época passam bons filmes.

- Não me importava nada de ir ver um desses filmes bíblicos, mas prefiro ouvir a sua história africana. Quando a acabar então sim, vamos ao cinema e ao teatro, agora estão boas peças em cartaz. No Parque Mayer estão em cena umas revistas interessantes.

- Tudo bem! Tu mandas. Então escuta:

     Em Contuboel encontrei um rapaz dos meus lados. Chamava-se Jeremias e era ajudante de cozinheiro. Tinha sensivelmente menos um ano de Guiné do que eu, um periquito (alcunha dada aos novos por causa da farda esverdeada), e não passara ainda pelos sucessos que atrás te narrei.

     Contou-me que, tal como eu, não arranjara o dinheiro suficiente para o engajador, que ainda tinha circulado por Espanha «somente a ver como as coisas decorriam, onde as modas paravam, quais as probabilidades», mas depressa chegou à conclusão de que sozinho nunca conseguiria chegar a França «é um país longínquo e correm-se imensos riscos; cumprirei a minha sina», diz-me num tom lamuriento e resignado. «Melgaço está cada vez mais desértico» - lamenta-se. «Só velhos e crianças lá continuam

     «E as belas raparigas da nossa terra?» - perguntei-lhe.

     «Os emigrantes levam-nas todas; até com quinze anos de idade já estão a casar 

     Foi ele, num gesto de solidariedade, que me deu a morada de uma garota sua conhecida, a viver no sul de França com os pais, gente da primeira geração de emigrantes.

     Escrevi-lhe ainda nesse dia. Pedi-lhe a fotografia, e ela mandou-ma. Era linda, menina de uma beleza serena, suave, comovedora, com feições nobres. Fiquei logo pelo beicinho. Trocámos algumas missivas. Não passou disso, apesar de lhe ter criado alguma afeição. Rematava sempre as suas cartas: «Desculpe o meu péssimo português

 

- E a guerra, acabara?! – pergunta Henrique com salpicos de ingenuidade.

- Dali, desse calmo e aprazível lugar, partíamos, quase diariamente, para patrulhamentos em toda a zona junto à fronteira do Senegal; levávamos a cabo ações de psicossocial, isto é, tentávamos convencer os indígenas de que o governo era forçado a combater os rebeldes, porque estes não acatavam a ordem e as leis portuguesas. «A guerra não se faz contra o povo», dizíamos-lhes.

- E conseguiram transmitir-lhes essa mensagem?! – pergunta Henrique, convencido de antemão de que a resposta seria negativa.

- Quem falava sempre era um oficial, nós, os soldados rasos, permanecíamos calados que nem gente muda! Numa dessas ações psicológicas, tendo ido libertar águas atrás de uma árvore, vi fugirem da tabanca, sorrateiramente, dois latagões negros. Fiquei indeciso: disparo, não disparo? Na dúvida, optei por não disparar.

- Podiam ser dois homens da guerrilha; devia, talvez, tê-los mandado parar.

- E se não fossem? E se não parassem? Teria de agir, teria de matá-los. Não sou nenhum assassino!

- Então por que fugiram eles? Não acha esquisita essa atitude?

- No lugar deles provavelmente faria o mesmo; os nossos superiores, quando desconfiavam de alguém, sobretudo de homens jovens, davam-lhes ordem de prisão, independentemente de pertencerem, ou não, ao PAIGC. Depois se veria se a decisão tinha sido acertada. Às vezes já era tarde de mais para estes desgraçados! Mas deixemos isso…

     Falava-se em recentes combates com os guerrilheiros, para os lados de Pirada, mas eu tive a sorte de não assistir a nenhum – estava saturadíssimo de tiros e de confusão, o que eu queria era paz e sossego.

     Os habitantes da região passavam de um lado para o outro da fronteira com a maior das naturalidades; nós, nada podíamos fazer, pertenciam à mesma etnia, falavam a mesma língua (o francês e o português para eles não passavam de duas línguas estrangeiras), e além disso possuíam terrenos de cultivo em ambos os países. Faziam-me lembrar aqueles povos serranos do Alto Minho, que têm propriedades na Galiza, circulando à vontade entre a Espanha e Portugal, quando, claro, os dois países estão de boas relações.

- Para eles as fronteiras são simbólicas. E a sua especialidade?!

- Apesar de ser condutor, andando aqueles meses ao volante, não conduzia qualquer tipo de viatura, visto estas não chegarem para as encomendas. O capitão escolheu quatro ou cinco, ao seu exclusivo critério, ou aconselhado pelos alferes, e os restantes continuaram a ser atiradores e a não receberem o prémio a que tinham direito.

- Mais uma brutal injustiça, amigo Cândido, mais uma brutal injustiça!

- Tens razão. E olha que o dinheiro do prémio, não obstante ser pouco significativo, cem, ou duzentos escudos por mês, dava um grande jeito.

- Pensa que alguém se abotoava com ele?!

- Não sei concretamente, falava-se nisso, mas como deves calcular nós não tínhamos acesso às contas, à escrita; o cabo amanuense era o único da nossa classe afeto à contabilidade; mas esse era astuto, «rato», um privilegiado, a nada aludia, por conseguinte, tudo que nós disséssemos a esse respeito, reverteria contra nós próprios. Por muito menos, colegas nossos, de outras Companhias, tiveram de cumprir outra comissão de serviço numa das três frentes de guerra!

- Isso foi cruel, desumano! – explode, irado, Henrique.

- Também acho. E, como é evidente, não ficariam na cidade, mas sim bem no interior da colónia, nos locais onde sibilavam as balas e o troar dos canhões. Mas deixa-me continuar, se não perco o fio à meada.

     Existia em Contuboel um campo de futebol, de pequenas dimensões e de terra dura. Como ele me fazia lembrar o do Monte de Prado, onde tantas vezes competira! Que estremes saudades daquele tempo, dos meus patrícios: «Hoje vamos jogar contra os de Cristóval, vensIa sempre. Por vezes tínhamos de levar uma enxada para arrancar os torrões que já o cobriam, surgidos durante os meses de inverno, bastante rigoroso, mas com que satisfação nós o fazíamos! Levávamos também umas sandes e um garrafão de vinho de cinco litros, do verdinho, para matar a fome e a sede.             

     No mini estádio de Contuboel disputámos alguns jogos, bastante renhidos, embora eu evitasse participar, devido à pouca resistência física. Iria levar algum tempo a recuperar a minha antiga pujança.

- Mas agora já comia comida quente, todos os dias?!

- Sim. A alimentação melhorou, tínhamos refeições com pontual regularidade, no aniversário do comandante foi-nos servida uma gazela estufada (a carne mais saborosa que comi até hoje); podia-se caçar aves e alguns animais, podíamos ir à pesca ali bem perto. Como a maioria não possuía equipamento apropriado, pescavam com granadas de mão! Claro que por este processo, matavam peixe graúdo e miúdo. Um crime ecológico, como em nossos dias é vulgar ouvir-se.

     Parecia que a temível guerra, pelo menos aquela que nós conhecêramos anteriormente, tinha finalmente terminado para a minha Companhia. Até as cartas das madrinhas de guerra tinham outro sabor, exalavam um perfume inebriante.

- Ainda bem que me fala nelas; suplico-lhe, Cândido, leia-me uma cartinha. Concorda?

- Como posso recusar um pedido assim formulado?

 

Querido afilhado:

 

          A continuação de boa saúde é esse o meu desejo. Já estava a estranhar não me escrever, até pensava nas piores coisas, que tinha ido para fora do sítio onde está, em alguma missão perigosa, mas felizmente não foi por isso.

          Diz-me que a um soldado, quando vem de cumprir o serviço militar lhe é dado facilmente o passaporte; está nisso muito enganado, pelo menos aqui neste distrito. Conheço um rapaz que esteve quatro anos na tropa e quando veio pediu-o e não lho deram, está na Suíça a trabalhar, mas seguiu com contrato de trabalho; já vê que não é fácil arranjá-lo nem que seja de turista, só se tiverem rendimentos suficientes.

          Diz-me que é melancólico; eu sou bastante alegre, toda a gente me diz que se não existisse teriam de me inventar, pois à minha beira só há boa disposição, não gosto de ver pessoas de semblante carregado. Vai ver que quando sair dessa guerra já fica com outro espírito, eu dou uma ajudinha

          O tempo custa a passar para aqueles que sofrem, mas é preciso ser forte, paciente; o galardão será serem heróis, os defensores da Pátria.

          Continuo a ver filmes de grande interesse; ultimamente vi o «Adeus às Armas», com Rock Hudson, deve conhecê-lo, e estou a pensar ver a «Ultrapassagem». Nunca me canso de ver cinema, é a minha distracção predilecta. Vocês aí não vêem? Provavelmente só nas cidades; quando voltar, desforra-se.       

          Por agora é tudo. Não desespere, continuo a rezar muito por si, vai ver que em breve estará de volta, para nos conhecermos, estou ansiosa por isso.

          Receba abraços sinceros da madrinha muito amiga.

 

                                                        Fernanda   


 

- As ondas estão a agitar-se; o namoro está a criar raízes, daqui a pouco não lhe poderá escapar!

- Rique! Brincas com assuntos sérios; se te lesse algumas cartas de outras madrinhas verias que as coisas já estavam bem mais adiantadas!

- Não me diga! Por favor, leia-me uma dessas, morro de curiosidade.

- Tiveste sorte, porque, a prever esse teu pedido, também as trouxe. Mas é uma exceção.

 

Afilhado querido:  

                      Em primeiro de tudo o que te desejo é a tua saúde. Cá recebi a tua carta e nela vi que tinhas ficado um pouco chateado por te mandar dizer que tinha ouvido na rádio o teu nome todo a dedicar um disco aos pais, irmãos e noiva, e que nesse caso não podia estar a perder tempo nem a gastar dinheiro em cartas, pois a minha mãe também diz ter ouvido, e aconselhou-me a não te escrever mais, mas como dizes que é mentira, que há muitos soldados com o mesmo nome, então continuo a escrever-te. Mas vê lá, se for verdade eu o saberei pelo padre da freguesia.
 
 



          Mandaste-me dizer que agora tens aí uma vida boa, que só é pena eu não poder ir, pois olha: às vezes pode ser que vá ter contigo aí, quem me dera para te ver pessoalmente.

          Com isto, querido, não te estou a ser mais maçadora, só te pedia que me fosses sincero, que tu bem deves saber que em ti acredito. Mandaste-me dizer que fui eu o teu primeiro amor. Pois olha: tu, para mim, também o foste; e serás o único, toda a minha vida. E com isto não estou a demorar mais.

     Recebe muitos beijinhos e abraços juntos e um coração cheio de saudades desta tua querida apaixonada.

                                                                                  Genoveva

 

 

- Esta madrinha, pelos vistos, não perdia tempo. Não me diga que lhe apareceu na Guiné!

- Qual quê?! Escreveu-me mais uma ou duas cartas e deixou de escrever. Certamente apareceu-lhe um emigrante e casou-se; assim procediam as raparigas da província naquela época. A vida do campo (especialmente para as jovens) era árdua; logo que lhe pudessem fugir, faziam-no. Depois iam para França lavar as escadas e os cães das senhoras francesas, desempenhar o cargo de porteiras nos altos prédios de Paris, mas recebiam os francos, com os quais vinham mais tarde pavonear-se para a sua terra natal.

     Aquele amor de que fala nas cartas não é verdadeiro, é fruto da imaginação, da imaturidade, e porque sabe à partida que a distância nos impedia de concretizar fosse o que fosse.

- O Cândido estimulava…

- Alimentava esse tipo de linguagem porque me divertia, e precisava imenso de me distrair, não pensar na parca. Já que vem a talhe de foice, vou abrir mais uma exceção e ler-te outra carta, de outra madrinha… Posso?

- Até lhe agradeço. Desse modo fico a saber que a relação soldado madrinha se baseava num divertido jogo de palavras, de linguagens amorosas, mais ou menos escondidas, de um subterfúgio!

- De certo modo, acertaste no alvo, mas não vás tão longe. As primeiras missivas que se trocavam revelariam o caminho a seguir: tudo dependia das respostas. Mas ouve, em silêncio, esta:

 

Querido afilhado

 

                      Em primeiro lugar estimo que esta minha carta o vá encontrar de óptima saúde. Eu fico bem, graças a Deus.

                      Cá recebi o seu aerograma e nele vi tudo quanto me mandava dizer, pois mandava-me dizer que passa lá muitos trabalhos. Peço-lhe que nunca desanime, o tempo vai passando lentamente, Deus Nosso Senhor há-de ter dó de si, há-de livrá-lo de todos os perigos, pois saberá que eu rezo cá muito por si para que Nosso Senhor o livre de todo o mal e quando vier venha com saúde, então não é assim?

                       Como tem passado esses meses de tropa? Gostava que me contasse um pouco da sua vida. Tenho uma irmã e um cunhado e uma sobrinha no Brasil que estão muito bem, vai qualquer dia um que anda para ser meu cunhado para lá, que lhe arranjou lá um emprego a minha mana e cunhado, e é para um emprego bom; pois saberá, se nós houvermos de ser um para o outro, já me mandou dizer que nos arranja lá também um emprego para nós os dois.

                       Saberá que vamos ter cá na terra uma grande festa, é pena que você não possa cá vir este ano. Para o próximo já espero que cá esteja junto de mim.

                      Peço-lhe que me mande dizer quantos anos tem, gostava muito de saber, mais ou menos.

                      Por agora não me lembro de mais nada para lhe dizer. Receba muitos cumprimentos e despede-se a

                                                                                       Maria Teresa  
 
 
 




 
- Não sei o que hei-de dizer-lhe, meu caro Cândido. Você era um Don Juan, ou andava a brincar com os sentimentos das raparigas casadoiras!    

- Nem uma coisa, nem outra; apenas dei início a uma troca de correspondência com jovens madrinhas de guerra, sem outro objetivo que não fosse o de me distrair, esquecer a violência do dia-a-dia na terrífica guerra. Não desejava namorar (sabes que a única namorada que tive antes dos meus vinte anos me trocou por um emigrante e com ele casou logo que ingressei no serviço militar?!); muito menos queria casar novo, pois não tinha nessa ocasião um rumo definido – a minha vida ainda iria sofrer uma grande reviravolta.

     Este princípio de namoro fazia parte do contrato inicial: «tu aceitas ser madrinha de guerra e com o tempo aceitas ser namorada até ao fim da comissão; acabada esta, cada qual segue o seu caminho

    Eis o jogo, ninguém se pode queixar. Nunca critiquei aquelas que me deixaram de escrever de um momento para o outro, sem uma explicação, sem um adeus; seguiram o seu destino. Não seria a mesma coisa se respondesse a um anúncio de jornal pedindo noivo – nesse caso assumiria um compromisso.

- A minha observação reside mais na ausência de princípios, isto é, se era madrinha não poderia ser namorada, e vice-versa; vocês não tinham isso em conta, desdobravam o estatuto conforme lhes conviesse. A não ser que elas aceitassem tornar-se madrinhas de guerra na esperança de arranjarem marido!

- Esse é um estudo que está por fazer; não duvido que algumas delas pensassem assim; a maioria, não. De qualquer modo, tiveram um papel importantíssimo na nossa vida belicosa, ajudaram-nos muito. Eu até penso que não fiquei maluco graças a elas!

- Quase me convenceu, mas, como disse, esse tema está por explorar. Talvez um dia apareçam sociólogos e psiquiatras que se debrucem sobre o assunto. 

 

    Depois de uma curta pausa, Cândido continua a contar ao amigo a sua interessante história.

 

- Amigo Henrique, logo que as coisas correm mais ou menos, ninguém quer a gente! Explico-te por quê: quando não ia nas colunas patrulhar a zona, ficava na oficina a ajudar o mecânico. Gostava desse serviço. Apesar de sujinho, aprendi bastante. Trabalhávamos e divertíamo-nos.

     Alguns colegas gostavam de cantar o fado, e até havia um ou outro que não cantava mal. Jamais esqueci a letra de um deles:   

 

Já morei na Mouraria

na Rua do Terreirinho;

num prédio muito velhinho,

cai, não cai, mas não caía.

 

Hóspede duma beiroa,

natural de Vila Chã;

mulher simples e boa,

como agora já não há.

 

Tinha um quarto pequenino,

com cama a condizer;

era quarto de menino,

de menino a crescer.

 

Estava nas águas furtadas,

mesmo junto do telhado;

vinham as chuvas zangadas

ficava todo molhado.

 

Havia uma tasca ao lado,

daquelas d’antigamente;

na qual se cantava o fado

e se bebia aguardente.

 

Era uma tasca bairrista,

de tosco e velho balcão

que amparava o fadista,

o tal fadista gingão.

 

Cantava lá um mocinho,

tinha voz de rouxinol;

davam-lhe um copo de vinho

parecia um raio de sol.

 

Hoje é nome conhecido,

até tem discos gravados;

mas à tasca, agradecido,

vai cantar um ou dois fados.

 

Não cobra nem um tostão,

só quer goela molhada;

aquele vinho rascão,

feitinho à martelada.

 

Quando me lembro entristeço,

já tanto tempo passou;

e quanta coisa eu esqueço…

não aquilo que se amou!

 

Não vou lá e que saudade,

tanta vida a recordar;

ali, na velha cidade,

onde eu estive a morar.

 

Talvez um dia, um dia…

eu volte àquele lugar;

quase assim em romaria,

minha promessa pagar.

 

 

- Uma letra bem gira! – aprova Henrique. – Afinal de contas também se divertiam.

- Naquelas idades, e depois de nos termos safado daquelas batalhas infernais, tudo nos parecia já cor-de-rosa. A esperança voltou aos nossos corações.

     À tardinha, depois do jantar, íamos dar umas voltas (até o furriel Bonito podia passear livremente o seu pastor alemão, não correndo agora o risco de lhe deitar a G-3 ao rio, como o fizera antes); assistíamos às festas dos indígenas, entrávamos nas suas danças, embora eles não gostassem muito dessa intromissão (sabes que cantam e dançam quando morre alguém com idade avançada?! Ficam contentes porque, dizem eles, a pessoa viveu aquele tempo todo e foi feliz; choram os novos, pela razão contrária.)

- Julgo que estão certos. E como são os cemitérios deles? – pergunta Henrique, roído de curiosidade.

- Perguntas bem, mas francamente não me lembro! Penso que usarão campas térreas, pois jazigos – (com espaços fechados por paredes ou gradeamentos) – nunca vi; por outro lado, penso que enterram os seus mortos, não me apercebi que utilizem a cremação.

     Mas continuando: quando lá aparecia o homem da sétima arte, com a maquineta, víamos cinema – filmes antigos, já ultrapassados: Charlot, Cantinflas, Irmãos Marx, Bucha e Estica, Tarzan, dramalhões, fitas policiais, cow-boyadas…, ao ar livre, pois salas não existiam. A fita, já tão usada como o fato coçado e porco do seu dono, rebentava constantemente; o exibidor tentava consertar aquilo o mais depressa possível – pateticamente, ríamos. Ele não gostava nada de ouvir essas risadas hipócritas e mesquinhas, mas reconhecia humildemente que o público tinha razão. «Mas que diabo!» - comentava ele – «vocês querem galinha gorda por pouco dinheiro?! Pensam que é fácil andar pelo interior da Guiné a exibir filmes? Não estamos em Bissau

- Vocês não deviam ter gozado com o homem! - criticou Henrique, fazendo uma cara séria.

- Que é que tu queres. Achas, que era possível, e razoável, aguentar todas aquelas interrupções sem botar uma saudável e sonora gargalhada?!

     Certo dia, o capitão mandou reunir a Companhia e disse: «De Bissau pedem dois soldados para fazerem serviços de guarda. Se houver voluntários, que se ofereçam; caso contrário, terei eu de os escolher 

- Ofereceram-se às mãos cheias!

- Pelo contrário: ninguém se ofereceu! Depois de catorze ou quinze meses de guerra intensa; depois de termos percorrido quase todas as matas da Guiné-Bissau a pé; depois de tanta fome e sede; depois de tanto padecimento, ir agora para Bissau fazer guardas, quando se estava num lugar calmo, correndo embora alguns perigos… Não! Ninguém queria ir. Por outro lado, já se tinham criado laços de amizade, que iriam, porventura, durar toda a vida.

     O capitão retirou-se. Passado algum tempo o amanuense diz-me para me dirigir à Secretaria. Estremeci. Fez-me lembrar a Academia Militar. Peço licença e entro. Sem intróito, o primeiro-sargento avisa-me: «Foste tu um dos escolhidos para ir fazer guardas em Bissau. Prepara as tuas coisas. Só voltas a integrar a Companhia quando esta embarcar para a Metrópole

- E o Cândido, como reagiu?

- Eu disse-lhe: «Desculpe, meu primeiro, mas eu sou condutor auto; as guardas, que eu saiba, são feitas por atiradores.» Ele, furioso, levanta-se com ímpeto da cadeira, e lembra-me: «Ordens, são ordens; não se discutem! Rapaz! Pega na trouxa e vai para onde te mandam

     Fiquei sem jeito! Mas a minha fragilidade perante aquela máquina militar saltava à vista. Eu era apenas um número. Com os colegas também não podia contar. A solidariedade só existia nalguns casos; neste, concretamente, sabia de antemão que não me ajudariam. Aliás, indo eu não iria um deles, como era óbvio. O egoísmo é muito forte no povo português.

- Haveria alguma razão forte para o afastarem?! – pergunta Henrique, incrédulo, aborrecido com aquela atitude prepotente.

- Penso que sim. Havia na Companhia um alferes, o segundo comandante, o tal militarista vaidoso de quem já te falei, que não apreciava muito a minha presença. Antipatia parva e inexplicável, porquanto nunca lhe fizera mal, nem lho podia fazer, mesmo se o quisesse. O meu maior defeito a seus olhos era porventura o facto de eu não gostar da tropa, da guerra, ou do que quer que fosse ligado à vida militar. Nem toda a gente pode apreciar as mesmas coisas. Por outro lado, a minha modéstia, simplicidade, desprendimento, representavam para ele uma ofensa, uma afronta. Para teres uma ideia do que te acabo de dizer, ouve esta: um dia os cabos especialistas resolveram promover um copioso almoço de confraternização, uma festa convívio, entre todos aqueles que possuíam especialidade. Contuboel, devido em parte à sua fisionomia singela, revelava-se lugar propício a estas manifestações.  

- Queriam, certamente, marcar a diferença!

- Talvez; mas de qualquer maneira, não havia espaço para todos. Convidaram os condutores, enfermeiros… e também os furriéis, sargentos e oficiais. O almoço, por deferência do comandante, seria servido na messe.

     As mesas estavam impecáveis: guardanapos em forma de flor – (as costas das mãos serviram-nos durante a campanha de guardanapos) – copos de vidro limpíssimos, pratos de vários tamanhos e talheres a condizer. Há quantos meses eu não comia num prato! As inestéticas, ferrugentas e velhas marmitas de lata ocupavam indevidamente o seu lugar. Que trabalheira elas davam para as limparmos: esfrega, esfrega, com areia, com sabão, e o esforço era quase em vão!

     O pitéu já cheirava; os aperitivos serviam-se numa mesa à parte. Quando me aproximo, a fim de me sentar, pergunta maliciosamente o militarão: «Que está aqui a fazer aquele soldado? Não me digam que tem uma especialidade?!»

- Imperdoável! O indivíduo era grosseiro. Como reagiu? – perguntou Henrique, de punhos cerrados, simulando uma agressão física.

- Timorato como era, tomei uma atitude que ainda hoje não sei se foi a mais correta.

- Insultou-o?

- Vontade não me faltou; pura e simplesmente ignorei o que tinha ouvido, engoli o vexame, recuei dois passos e sorrateiramente saí porta fora. Pensas que algum dos meus camaradas me foi procurar? Nem um!

- Quer a minha opinião? Fez muitíssimo bem. O que o meu amigo desejava era ver o tempo a passar. Se brigasse com ele, ou ripostasse, seria pela certa castigado.

- Não tinha, nessa ocasião, nem tenho agora, quaisquer dúvidas que isso me aconteceria. O pobre do soldado nunca levava a melhor. Ainda pensei, simbolicamente, esmagar-lhe a cabeça da sua própria sombra, mas até isso não pude fazer, pois ele protegia-a como o avarento protege o seu tesouro.

     Este era um forte motivo para eu desejar agora a partida. Mais guarda, menos guarda, ninguém morreria por isso, e as armas reais não me cairiam aos pés. Em Bissau teria a possibilidade de obter a carta de condução para profissionais, que um dia mais tarde me poderia vir a ser útil – nunca se sabe o que o futuro nos reserva. Vale mais prevenir do que remediar, como diz o ditado. Apesar de ter conduzido pouquíssimo, o “bichinho” já tinha nascido, sobretudo com a cativante condução do jipe.

- Como se chamava o outro soldado que foi consigo?

- Comigo para Bissau seguiu também o Vinhais, atirador. Bom moço. Não tinha com ele grandes afinidades, pois tratava-se de um jovem quase analfabeto, embora de bacoco nada tivesse. O regime corporativista, superiormente comandado pelo hediondo Salazar, não deu grandes hipóteses de estudo a esses rapazes; a escola primária ficava longe dos lugares onde eles residiam. Por outro lado, aos seis, sete anos, já andavam a guardar gado no monte.

     Não havia estímulos, nem condições materiais, para os que trabalhavam na agricultura, na pastorícia, na pesca... Agora começa-se a fazer alguma coisa, vamos lá ver se conseguimos.

     Demo-nos sempre muito bem até ao dia em que fizemos o espólio em Tomar; depois disso nunca mais nos vimos.

     Ainda na região de Contuboel assisti a uma cena deveras interessante e elucidativa.

- Estou em pulgas para ouvi-lo – interrompe Henrique, há muito calado.

- Escuta: numa camioneta do nosso exército vinha uma data de negros com trajes de cerimónia (panos de cores garridas) e no meio deles uma figura feminina coberta dos pés à cabeça com um longo pano branco.

     Por mera curiosidade, perguntei o que se estava a passar e alguém me elucidou de que a bajuda, pois de uma virgem se tratava, tinha sido comprada aos pais por um dos chefes tribais da zona – um homem de idade avançada e já com várias mulheres e filhos!

- Fazerem isso à cachopa – não se admite!

- Espera: o velho pagara por ela umas quantas cabeças de gado! Sem o querer, fiquei horrorizado e com pena da catraia. Que raio de costumes eles albergavam no seu seio!

     Mas, graças a este acontecimento, fiquei a saber que as mulheres nesta parte de África não possuíam quaisquer direitos: compravam-se e vendiam-se como qualquer mercadoria – uma questão de preço! Elas, vítimas do sistema, nem sequer se queixavam: achavam tal coisa natural!

- Os movimentos de libertação da mulher não teriam ali nenhuma hipótese de êxito.

- Também acho. Mas repara que a maior parte das mulheres portuguesas também não desfrutavam, por esse tempo, de grandes liberdades. Os pais escolhiam o noivo para a filha, ou rejeitavam o que ela elegesse, caso não lhes agradasse. Não tinham rédea solta, como agora, podes crer.     

     Bem, até à próxima. A seguir falar-te-ei de Bissau.

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