LEMBRANÇAS AMARGAS
(romance)
Por Joaquim A. Rocha
XIII
Por a porta da traição
uma víbora deslizava
Regressemos a 1964.
Encostados a uma árvore de grande porte, frondosa, cuja sombra beneficiava uma
vastíssima área, bem perto de uma vetusta casa de granito, sem estilo definido,
arredores da sede do concelho, onde não há muito tempo conversava eu amenamente
com a Bera, encontram-se duas figuras: um homem e uma mulher. Ela parece
triste, receosa, pensativa, escavada, olhar distante, quase arrependida de ali
estar. Ele, afoito, atrevido, decidido a concretizar o seu objetivo.
Aproximem-se, lenta e sorrateiramente, a fim de ouvir o que eles dizem:
- Artur, não sei se deva aceitar a tua proposta: ele é bom rapaz, gosta
imenso de mim, não merece que lhe faça essa desfeita, que lhe pregue essa
partida.
- Não sejas parva, Bera; não vês que o Cândido não passa de um
pobre diabo, sem ambições, sem quaisquer perspetivas de futuro, nunca te
proporcionará bem-estar, enche-te a casa de tinhosos e de miséria. Comigo será
diferente: vais para França, até podes trabalhar na casa de uma senhora
francesa, olha que as criadas lá ganham bons francos, eu também ganho bem,
poderemos dar uma boa escola aos filhos, vimos aqui passar as férias todos os
anos, no mês de Agosto, ou de dois em dois anos, entretanto construiremos aqui
uma boa vivenda, teremos um bom carro, vais ser uma verdadeira «madame».
- Mas, Artur, eu tenho escrúpulos em lhe fazer isso; e também um
estranho pressentimento, sou muito supersticiosa; se ele já estivesse na tropa,
longe daqui, mas não, só vai…
- Não te preocupes com ele, a partir de hoje deixa-o por minha
conta; não apareces aos encontros, dás-lhe uma desculpa qualquer, que a tua mãe
está doente e que tu tens de tratar das refeições, qualquer coisa do género.
Ah! Diz ao teu pai para tratar da papelada, se puder já vai connosco, eu
arranjo-lhe trabalho numa fábrica.
- O que estamos a fazer não é bonito, mas de facto a minha vida e a
dos meus pais e irmãos melhorará muito.
- Não digas mal dele, coitado, é um bonacho, vai ter um tremendo
desgosto quando souber.
- Dás-lhe muita importância; aquele tolo idiota, uma comida sem
sal, nem sequer tem onde cair morto. E com aquela mãe: sempre bêbeda e porca! E
uma língua! Onde te ias meter! Olha para mim, Bera: agradeço-te do fundo do
coração que o esqueças, vamos falar de nós, do nosso futuro, da nossa vida em
comum.
- Será que me vou dar bem em França?
- O que te vai custar um pouco é aprenderes a língua francesa, mas
ao fim de um ano já a falarás mais ou menos, não é nada difícil, vais ver.
Olha, logo já vou falar com o padre Alberto para nos casar, se os papéis
demorarem casamos por procuração e tu segues depois para França com o teu pai.
- Tu não podes ficar aqui mais algum tempo? Foi tudo tão rápido!
- Nem mais um dia; temos um mês de férias e nada mais. Se chego lá
depois do prazo tenho que arranjar uma justificação médica, pois o mais certo é
já não encontrar o posto de trabalho disponível, os franceses são muito
rigorosos e têm muita gente nas listas para trabalhar: espanhóis, italianos,
marroquinos, argelinos, até gregos!
- Eu gostava de ir já contigo, depois tenho de ir de comboio, deve
ser uma viagem cansativa.
- Os comboios espanhóis não valem nada, isso é verdade, ainda são
piores do que os portugueses; os franceses sim, são cómodos e rápidos, chegam a
atingir noventa quilómetros por hora!
- Tenho a alternativa das camionetas, mas segundo dizem vão ali
como sardinha na lata! E os do monte, fazem uma barulheira infernal, que
confusão! // continua...
Sem comentários:
Enviar um comentário