LINA - Filha de Pã
romance
Por Joaquim A. Rocha
5.º Capítulo
O tempo foi escorrendo,
a vida em Melcarte era carregada de monotonia, eternidades de tédio, sempre
igual, uma autêntica pasmaceira. O Doutor Juiz já estava saturadíssimo daquela
terra obscura e dos seus desenxabidos habitantes. À amante começa a
notar-se-lhe a gravidez. Já tratara da papelada para o casamento. Um determinado
dia dirige-se à rapariga:
- Então, já disseste ao lambisqueiro que estás grávida?
Ela estremeceu. A
barriguinha crescera e ela não podia esconder por mais tempo o seu estado.
- Hoje mesmo vou dizer-lhe. Ele até já me falou em
casamento, mesmo não sabendo! Senhor Doutor Juiz, vou pedir-lhe um grande favor:
– empreste ao Mário o dinheiro para ele embarcar para o Brasil ou para a
Argentina – ele depois manda-lho. Assim, eu ficava aqui, casada, e
continuávamos a ser ternos amantes. Ninguém desconfiaria de nada.
- A ideia até não é má! Tens bons raciocínios. Matavam-se
dois coelhos com uma cajadada: tu vias-te livre dele, e eu ficava à vontade
contigo. Vou pensar nisso.
O magistrado
ficou a ruminar no assunto. Inteirou-se dos preços da viagem, uma bagatela,
para ele nada significava; meteu mãos à obra. Mas primeiro tinha de os casar.
A boda
realizou-se a um domingo de manhã, na igreja matriz da Vila. O juiz entrara com
as massas para a cerimónia. Não lhe saíra barata a brincadeira, mas fora melhor
assim: a criança nascia dentro de um lar, embora humilde, e ele via-se livre de
encrencas. Ficara bem visto no concelho: era amigo da empregada, estava ali no
seu casamento, pagara as despesas, que mais ela queria? Agora era tempo de
zarpar. A transferência já estava resolvida. Ia para Évora, no Alentejo, durante
os próximos três anos, bem longe dali. Ela nunca saberia do seu paradeiro.
Provavelmente jamais veria o bastardo, não saberia se era rapaz ou rapariga,
mas que interessava? Mais tarde casaria com uma fidalga rica e teriam os seus
próprios filhos – os autênticos. Dirigiu-se à empregada e diz-lhe:
- Estás muito bonita! O teu marido teve muita sorte.
Ela enrubesceu, e
vieram-lhe as lágrimas aos olhos. Por que chorava? Acaso tinha quaisquer
ilusões? Alguma vez o Senhor Doutor Juiz a tomaria por esposa? Nunca! Nunca!
- Obrigada, Senhor Doutor. Hoje é um dia muito triste e ao
mesmo tempo feliz para mim. O Mário é um bom rapaz e vai tratar bem da nossa criança.
Não se preocupe.
- Sim, hoje é um dia especial para nós todos. Haja alegria.
Não te arrependerás da decisão tomada.
Depois do acto
religioso, dirigiram-se todos para um restaurante de um hotel das Termas, onde
lhes foi servido o almoço, bem regado com o vinho da região, um verdadeiro
néctar, segundo os apreciadores.
À tarde houve
baile. O togado despediu-se de todos, desejando felicidades aos noivos. Lina
ficou atordoada. Pressentia bem que o perdera para sempre. Provavelmente nunca
mais dormiria com ele. Chorou amargamente. O noivo perguntou-lhe:
- Por que choras, meu amor?
Ela, banhada em
lágrimas, respondeu-lhe:
- É por estar tão feliz; não ligues. As mulheres choram,
quando amam.
O Doutor Juiz
cumpriu a sua promessa: entregou algum dinheiro ao Mário, a fim de ele tentar
ir para a América do Sul. O primeiro passo estava dado. A seguir o recém-casado
teria que marcar uma inspecção médica – sem um atestado de boa saúde não
poderia obter os papéis; e sem documentos não o deixavam embarcar. O problema
era aquela sombra no pulmão direito. Devido a isso, as Repartições Públicas não
permitiam que ele emigrasse. Diziam-lhe constantemente: «Cure-se primeiro; depois terá o passaporte.»
Para se tratar clinicamente precisaria de muito dinheiro, de apoios. Onde os
iria buscar? A Santa Casa da Misericórdia estava praticamente falida, com os
seus cofres vazios, não o podia ajudar. As Instituições governamentais não
estavam em condições de prestar qualquer tipo de auxílio. A quem recorrer?
Trabalhou no
porto de Leixões, durante uns meses, na expectativa de partir clandestinamente
num daqueles navios, mas o trabalho era duríssimo, demasiado pesado para as
suas débeis forças, ainda por cima mal remunerado, e assim, desiludido, cabisbaixo,
regressou à sua terra natal.
A criança já vira
a luz do dia. O parto decorrera na maternidade do Hospital da Santa Casa da Misericórdia.
Era uma menina. Foi baptizada na igreja matriz da Vila, na maior das
simplicidades. Puseram-lhe o nome de Lisete, por assim se chamar a irmã da
caridade, a parteira que ajudara a trazê-la ao mundo. Os seus padrinhos foram a
Senhora do Rosário e Santo António. Toda a gente ficava a olhar para ela,
procurando semelhanças com o pai, mas de Mário nada tinha. As bisbilhoteiras
comentavam:
- Aqui há marosca: a Lisete não se parece nada com o Mário!
Será que é filha dele? Não será filha do Doutor Juiz? Com esse parece-se! – aventou a Isolina, cuja língua viperina era
temida em toda a Vila e arrabaldes.
- Não sejas má-língua, mulher! Olha que Nosso Senhor Jesus
Cristo castiga-te – retorquiu a Palmira,
aparentemente mais moderada do que a sua vizinha.
- E que me dizes tu, Palmira, a ter nascido antes do tempo?
Nessa não acredito eu!
- Ó Isolina, achas mesmo que é filha do Senhor Juiz?!
- Não tenho bem a certeza mulher, mas do Mário não me parece
ser – é tão diferente!
Os comentários
foram aumentando à medida que a menina crescia. A semelhança com o verdadeiro
progenitor era espantosa. A cor do cabelo, a testa grande, aqueles olhos
inteligentes e observadores. Não havia qualquer dúvida: a Lina ludibriara o ingénuo
do “Brilhantina”.
- «Que coirão – exclamava
a irmã do rapaz – e meti-os eu em casa. Não a quero mais aqui. Rua!»
O Mário andava
abatido, destroçado. Fartava-se de trabalhar para alimentar a catraia, que
afinal de contas não era sua filha. A Lina agora era criada de servir em São Cristóvão,
a dez quilómetros da Vila. A irmã dele já não queria a criança, dizia que não
lhe era nada, não era sua sobrinha, que a levasse para outro lado. Ele estava
desesperado, tinha os nervos num frangalho. Arranjou um quartinho, onde outrora
existira uma oficina de barbeiro, e instalou-se lá como pôde. Alguns vizinhos
tiveram pena dele e deram-lhe algumas roupas de cama, mantas velhas, uns
cobertores descoloridos, mas que permitiriam aquecê-los no inverno.
Começou a andar no contrabando, na frota,
como na altura chamavam ao comércio ilegal. Levavam certos produtos para a
Galiza e lá traziam outros. Fora o irmão mais velho que o convidara:
- Ouve, Mário: tu andas para aí aos caídos, aos biscates,
mas, se quiseres, o Abílio do Tojal dá-te trabalho, na frota. Claro que é
perigoso: dum lado os guardas-fiscais; do outro, os carabineiros. É certo que
muitos deles, ou todos, têm as mãos untadas, mas às vezes andam mal dispostos e
disparam, sobretudo quando sabem que anda por perto o tenente. Nós temos que
ter muita cautela. Por outro lado, começou há pouco tempo a guerra civil
espanhola, e anda tudo em alvoroço – podemos levar um tiro em qualquer ocasião.
- E quando se faz o serviço: de dia ou à noite?
- É tudo feito à noite. Logo que escurece a gente mete-se a
caminho do rio, com os sacos de café às costas, e depois é só atravessar o rio
na batela; do outro lado estão uns quantos galegos que levam a mercadoria.
O Mário estava
com vinte e dois ou vinte e três anos de idade. Fora à inspecção militar na
altura própria e ficara isento. Casado, com uma filha, que afinal não era dele,
tinha que conseguir algum dinheiro, senão morria à fome.
- Está bem, aceito. Quando começo?
- Pode ser hoje mesmo. Vai cear logo connosco, assim já
falamos melhor. Quanto à Lisete, leva-a lá para casa, a tua cunhada toma conta
dela.
- Obrigado! Vou já tratar disso.
E foi assim que o
jovem foi ganhando uns dinheiritos para o dia-a-dia. Quando viu que já tinha
umas magras economias, arrendou uma casinha e disse à mulher para vir novamente
para a Vila, ele e a filha precisavam dela. Porém, a Lina já arranjara um novo
amante. Ela nunca estivera apaixonada pelo marido, como já atrás se deixou esclarecido;
fora apenas um ardil para salvaguardar a reputação do juiz, e a sua própria, porém
agora não necessitava mais de fingir. O juiz entretanto fora embora, e nunca
mais dera sinal de si. Era de momento, na sua agitada vida, apenas uma
recordação. Ficara a criança, que mais tarde seria, tal como a mãe, uma simples
criada de servir, ou então casaria com um operário, ou com um camponês fardado.
Nada mais poderia esperar da fortuna, ali naquele recanto do mundo, onde
Salazar jurara nunca mais lá voltar, quando lá estivera em 1934. Na ponte de São
Cristóvão, junto de alguns ministros, Governador Civil, e Presidente da Câmara
Municipal de Melcarte, na altura o farmacêutico, Dr. João Magalhães, disse com algum
desprezo e enfado: «Isto aqui é o fim do
mundo! Está tudo velho, tudo a cair… Não me convidem para vir cá mais.» E
de facto o ditador jamais retornou a Melcarte. Nos seus discursos dizia sempre:
«De Valença a Timor…» Este concelho e
o vizinho tinham desaparecido pura e simplesmente do mapa! E fez mais: a
maioria dos professores do ensino primário passou a ser composta por regentes,
apenas com a quarta classe do ensino primário!
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