ENTRE MORTOS E FERIDOS
(dois anos de guerra na Guiné-Bissau)
romance histórico
Por Joaquim A. Rocha
desenho de Rui Marques
12.º
Capítulo
A MASCOTE
A tarde estava linda. Pelas ruas da cidade banhada
pelo Tejo passeava imensa gente, olhando as montras, algumas com manequins expostos
que pareciam mesmo pessoas! As roupas, o calçado, os livros, etc., estavam muito
bem colocadas, tudo arranjadinho, atraente! Em tudo se notava a mão do artista,
do mestre em decoração. Os saloios ficavam embasbacados com tanta beleza, com
tanta arte. Apetecia comprar tudo!
Henrique fora o primeiro a chegar ao Café.
Sentou-se, como já era seu hábito, na esplanada e aguardou pacientemente a
chegada de Cândido.
Este não demorou muito. Tinha almoçado, como
habitualmente, num daqueles restaurantes da Baixa lisboeta, quase todos geridos
por minhotos ou galegos. Os preços eram acessíveis, o raio do ordenado é que
não crescia, e por essa razão tudo parecia caro.
Sentou-se à beira do amigo, sorriu, e disse:
- Deves estar ansioso por saber que
tipo de mascote tinha a minha Companhia?!
- Estou mesmo. O que ou quem era?!
- Chamava-se Mamadu. Era um rapaz de
raça negra, com um metro e sessenta de altura, aproximadamente, magro, mas com
boa aparência, com a pele acastanhada. Parece até que estou a vê-lo! Vinha da
misteriosa mata, essa selva imensa e impenetrável, densa, inacessível, traiçoeira.
Não teria mais do que quinze anos de idade; era filho da floresta africana e do
deus Sacarabu «deus justo, terrível nas
suas vinganças e ávido de sangue…» que o gerou numa noite de tormenta e lhe
pede apenas que sobreviva; a partir de agora será também filho da tropa.
«Fula amigo de branco» - dizia-nos
ele no seu português criança. «Balanta inimigo, balanta quer independência,
balanta quer dominar Guiné!»
Isso talvez fosse verdadeiro. O homem balanta, de rosto altivo,
arrogante, peito de atleta, não desejava o homem branco no sagrado solo
guineense; queria ser senhor e não escravo – ele não se sentia, ao contrário de
outras tribos, inferior ao europeu. Pensava: «Nenhuma raça é superior a outra,
o homem é um ser universal, tem as mesmas capacidades; o modo de viver, os
interesses, é que são diferentes uns dos outros.»
Lamentava que os brancos tivessem ido para África como senhores e não
como iguais. Agora era tarde: só através das armas poderiam os negros
reapoderar-se das suas antigas heranças, dormir em paz com os seus espíritos
avoengos.
Os fulas não pensavam assim. O europeu, segundo eles, trazia o
progresso: as fábricas, as máquinas, a estrada, os carros, as armas de muitos
tiros, e acima de tudo o dinheiro, que tudo comprava! Sabiam que o branco se
dava bem com o negro desde que este o respeitasse, fosse humilde, trabalhador,
obediente. Reconheciam-lhe superioridade em quase todos os domínios e não
punham em causa a sua justa autoridade.
- Isso significava que os fulas e os balantas
se odiavam? – pergunta Henrique, admirado,
mastigando mais um tremoço.
- De certo modo, sim. Os balantas,
porém, não estavam sós. Outras etnias, que antes se guerreavam entre si, uniam
agora os seus esforços a fim de expulsar o intruso, o usurpador, que lhes
tentava impor concepções e estilos de vida diferentes dos seus; costumes e
crenças estranhas e nocivas – a aculturação forçada!
- E o miúdo? Que fazia?
- Mamadu estava radiante. A tropa
dava-lhe comida, roupa e uma cama para ele dormir. Dera-lhe também uma arma
para combater contra os balantas, essa tribo de homens fortes e orgulhosos que
ele odiava. Os fulas eram inteligentes, mas não fortes; com a ajuda do homem
branco, sob as suas ordens e orientação expulsariam do seu amado chão esses
indivíduos indesejáveis.
- Então não era casual a sua
colaboração com a tropa?!
- Os fulas possuíam o seu programa de acção,
o seu plano. Todos veriam como eles seriam capazes de o pôr em prática!
Mamadu tinha sonhos, estratégias, ambições. Na Companhia todos gostavam
dele: aqueles dentes branquíssimos abriam-se prodigamente, num sorriso sem fim,
às solicitações do soldado – era a mascote. Tudo correria bem daí para a
frente: graças ao Mamadu!
- Vocês então acreditavam que ele lhes
trazia sorte!
- Com certeza. Como o trevo de quatro
folhas.
Passou a acompanhar-nos em todas
as operações. Sem aparente cansaço, sempre atento, um sorriso satisfeito
bailando-lhe nos olhos brilhantes e enigmáticos, disparando com o à-vontade do
hábil atirador profissional!
Estava na guerra, estava ali para matar. Era
a sua opção: matar, matar sempre, até ao último inimigo. Era um jovem formado
na escola da guerra; a sua academia seria o próprio local das operações. A
logística, balística, ou quaisquer outras ciências do âmbito militar, a ele
nada lhe ensinariam, pois o instinto, o ódio, a determinação e a sagacidade
superavam de longe essa carência.
- Frequentara a escola?
- Suponho que não. No entanto, nunca
ninguém soube se ele escrevia, lia e contava. Também de pouco lhe serviriam
esses conhecimentos ali: manejar a arma com destreza, destruir sem compaixão, e
sorrir, sorrir sempre, eram de longe dotes mais importantes, necessários,
imprescindíveis... A guerra não se faz com poemas: faz-se com tiros, com raiva,
com sangue, com morte.
Mamadu não tinha nada de idiota, sabia isso. Ali, no inferno de Dante,
não havia lugar para devaneios; as ideias deviam transformar-se em munições e
os sonhos em palpáveis realidades. Mamadu, que tinha quinze anos, também sabia
isso; adaptou-se à guerra, e esta jamais o desiludiu, o decepcionou.
- Até parece que o Cândido estava lá
apenas como observador!
- De certo modo, sim; eu nunca tive
espírito de guerreiro. Era civil fardado e não militar. Esses são diferentes de
nós: no pensar, no agir, em tudo.
Todos aqueles anos de lavagem ao cérebro, aboletados,
moldam inexoravelmente o seu espírito. Mas vou dizer-te uma coisa: existia, sem
dúvida, uma certa harmonia naqueles grupos heterogéneos: a tropa, os amigos da
tropa, os inimigos da tropa e dos seus amigos! Lutava-se rijamente: uns, para
manter o seu “status quo”; outros,
para instituir o seu regime; e ainda aqueles que queriam preservar a tradição,
os ancestrais costumes. Duas civilizações, várias culturas, diferentes e
antagónicas, frente a frente, numa luta sem tréguas e sem fim à vista!
// continua....
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