LEMBRANÇAS AMARGAS
romance
Por Joaquim A. Rocha
IX capítulo - continuação (ver 15/6/2016).
- Muito me ri à tua custa; eras um autêntico saloio! Pensavas que
na cidade ninguém dormia, tinhas medo de pinchar dos carros elétricos em
andamento, ficavas boquiaberto com tantas luzes, com tantos reclamos luminosos.
- E lembras-te daquela vez que penetrei na casa dos vizinhos da
Susana?
- Já não me recordo bem, conta.
- Ainda na rua, toquei à campainha do terceiro andar quando devia
ter tocado para o quarto; de cima abriram, deviam ser seis horas da tarde, e
fui subindo as escadas, que nunca mais terminavam; logo que vi uma porta aberta
entrei; sentei-me no banquinho que se encontrava na cozinha e esperei
tranquilamente como era hábito. Às tantas começo a ver caras totalmente
desconhecidas para mim. Então pensei: «olha
que este não deve ser o apartamento onde reside a tua irmã!» Sem me
denunciar, ergo-me sorrateiramente, saio porta fora, galgo mais uns degraus, e
fui bater à porta do andar de cima – reconheci de imediato a pessoa que me veio
abrir a porta.
- Eras mesmo um labrego! E tiveste sorte, pois aquelas pessoas na
sua maioria eram hóspedes; se fosse uma família mandavam-te prender, pensando
que eras um ladrão!
- Normalmente os irmãos mandam ir os outros para a cidade ou para o
estrangeiro, mas tu a mim nunca me disseste para ir trabalhar perto de ti!
- Ainda pensei nisso, mas tu não tinhas corpo nem energia suficiente
para aguentar aquela vida, borravas-te todo, não aguentavas uma semana, ias-te
logo abaixo das canetas; aquele trabalho de carregar às costas cestos com
quilos e quilos de mercadoria só para gajos fortes, possantes como bois, por
outro lado tu estavas a aprender um ofício, embora não desse muito sempre ia
dando para a comida, casa não pagavam e o bruxo sempre ia desembolsando alguns escudos.
- Não sabes que a mamã se zangou com o feiticeiro no ano seguinte à
tua ida para Lisboa? Zangaram-se, mas depois ele começou a rondar a porta, o
que ele procurava sabia eu, era velho, mas para isso não! A tua mãe pouco tempo
lhe resistiu, fez logo as pazes, mas aí intervim eu, apanhei os dois na cama,
eles pensavam que eu só aparecia à noite, que tinha ido ao rio, eu costumava ir
todos os fins-de-semana à pesca, era o meu desporto favorito, além do futebol,
levava um livro para ler, o que me fascinou mais foi o Don Quixote de la
Mancha, fartava-me de rir, é uma obra extraordinária, muito bem escrita. Sabes
que eu até falava com as águas que, lenta ou velozmente, corriam para o mar?
Serviam-me de amigo e confidente. Nesse domingo de verão à tarde, e como já
havia tempo desconfiava deles, não fui à pesca. Nesse dia resolvi andar ali por
perto. A porta da casa estava trancada, era para eu não entrar caso aparecesse
de surpresa, mas eu engendrei outro processo, outro método de entrar. Ágil como
era, qual esquilo jovem, entrei pela varanda, peguei na machada, aquela que
levava para o monte para cortar a lenha, e gritei-lhe: «saia imediatamente dessa cama, seu velho porco, e ponha-se na rua, se o
vejo cá outra vez mato-o!» O filho da mãe viu que eu estava a falar a
sério, a mamã chorava, não era certamente de vergonha, que essa já a tinha
perdido há muito tempo, mas de raiva por ver que eu já estava crescidinho e
jamais lhe aceitaria estas jogadas sujas, enquanto esteve amigada com ele era
uma coisa, agora ele entrar na casa como se ela fosse uma prostituta, talvez
pagando-lhe, isso não.
- E o bandido, como reagiu?
- O patife meteu o rabo entre as pernas, como fazem os cães cobardes,
e nunca mais entrou na nossa casa, grande besta, tinha-lhe uma raiva, um pó,
que nem para a cara lhe podia olhar.
- Pensava que te davas bem com ele!
- O somítico, quando eu fiz a quarta classe, em Julho de 1955,
ofereceu-me um fato de macaco, de ganga, de cor azul, daqueles que usam os
mecânicos nas suas oficinas, e umas alpercatas, para levar ao exame, parecia
uma miniatura de operário, até os outros alunos se riram de mim, que vergonha,
valia mais ter ido com a minha roupinha rasgada e o cinto e corda, era assim
que eu sempre andava, e já ninguém se ria de mim.
- Depois ficaste sozinho com a mamã.
- Ficámos com alguma tenda e fomos pelos lugares do concelho tentar
vendê-la. Muito calcorreámos: léguas e léguas de veredas, caminhos de cabras,
por vezes tudo encharcado. Claro que foi um autêntico fiasco: a mamã
embebedava-se e perdia a conta aos artigos que se vendiam, eu ia apontando, mas
que queres, tinha pouco mais de onze anos de idade, sem experiência de vendas,
ela era uma analfabeta pura, o velho é que sabia vender, até parece que nascera
tendeiro o raio do homem. Passado uns meses já não tínhamos tenda nem dinheiro
para pagar aos fornecedores, foi um autêntico caos, um desastre absoluto. A
seguir fui aprender o ofício de sapateiro, engraxava sapatos nos dias de feira
e aos domingos, dez tostões cada engraxadela, alguns ainda achavam caro! Ia
ganhando para a bucha, a mamã continuou a percorrer as aldeias, agora sem
tenda, conhecia muita gente, ajudava aqui e acolá, iam-lhe dando umas malgas,
algum milho, uns pedaços de broa, feijão, umas chouriças, coisas que estavam
muitas vezes já a estragar-se, que eles receavam comer, nós éramos o caixote do
lixo, a cloaca; ela aproveitava tudo, eu não podia ingerir essas coisas, já
tinha o estômago estragado, fartava-me de vomitar. Lembras-te quando estive
internado no hospital?
- Lembro-me perfeitamente, foi quando viemos para a Vila, tinha eu
quase nove anos, tu andavas muito enfezado, não comias nada, amarelinho,
parecias tuberculoso, a tua mãe foi pedir ao médico para te internar no
hospital da Santa Casa da Misericórdia, estiveste lá uns dias, depois fugiste,
não sei porquê!
- Fugi porque não gostava de lá estar; parecia-me uma prisão, tu cá
fora a brincar e eu lá preso, a comer sopa de galinha, sem sal, aquilo não
prestava para nada, as enfermeiras é que eram simpáticas, sobretudo a Maria do
Céu, nunca a esquecerei, era o meu anjo da guarda, tratava-me como se eu fosse
o menino querido dela, tão bondosa, eu pinchei as grades, pronto, não gostava
de lá estar, nem da comida, dormia junto com velhos, morreu lá um à minha
beira, apanhei um susto dos demónios, nem queiras saber, nunca tinha visto um
homem morrer, tinha os olhos esbugalhados, parecia um fantasma, muito branco e
amarelo, meterem-me ali, com aqueles idosos doentes, aquele cheiro a remédios,
eu vomitava, até desejava morrer, saltei aquele portão, aquelas setas de ferro
apontadas ao céu, podia ter ficado ali espetado, coitado de mim, mas eu também
não me importava, o que eu não queria era lá estar, queriam dar-me óleo de
fígado de bacalhau, que nojo, ainda vomitava mais, saía-me da garganta um
líquido verde, viscoso, aquilo vinha das tripas, porque eu não tinha no
estômago nenhum alimento.
- Sofreste muito, eu na altura ainda te batia, estou cheio de
remorsos.
- Escusas de estar, eras uma criança, só mais velho do que eu cerca
de três anos, não compreendias o meu tormento, pensavas que eu fazia tudo
aquilo por maldade.
- Depois a mamã, quando soube, andou à tua procura, tu não
aparecias, ninguém sabia onde te meteras, levaras sumiço! Até se pensava que
tinhas ido para o rio, que te afogaras… Pensaram-se imensas coisas. Eu, apesar
de tudo, de seres refilão, de brigares com todos, de seres um rebelde, apesar
disso, gostava de ti, mas claro, andavas atrás de mim, eu tinha os meus amigos,
tu eras uma formiga à nossa beira, nós íamos à fruta, eu não queria que nos acompanhasses,
devias andar com os da tua idade. Tu insistias e eu tinha que te bater, casquei-te
bem, um dia até desmaiaste! Fiquei com medo, o soco fora muito forte, mas
passado pouco tempo abriste os olhos, que alívio para mim. // continua...
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