quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

LINA, FILHA DE PÃ
romance

Por Joaquim A. Rocha



3.º Capítulo


     O leitor não pense que nessa altura, 1932,1933, havia uma grande sala de cinema na Vila, como as de Lisboa ou Porto. Não, não havia. O que acontece é que o senhor Alexandre Rodrigues – fotógrafo, taxista e aferidor de pesos – mais o senhor Amadeu Afonso – alfaiate e taxista – fizeram uma espécie de sociedade e, numa garagem, exibiam alguns filmes, sobretudo cómicos, da época do mudo. Alguns anos antes, no lugar do Couto, freguesia de Dernepa, existira também uma sala de cinema, cujo dono se chamava Cícero Meleiro. Foi este senhor o primeiro a exibir filmes em Melcarte.
     Uns anos depois surgiu uma Sala de Cinema na zona histórica, a que deram a designação de Cine Republicano, cujo proprietário se chamou António Alves Semedo. Devido à censura, e à moral vigente, não se podiam passar no ecrã filmes muito ousados, isso só aconteceu muitas décadas depois.

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     Aquela conversa dos rapazes prolongou-se até à hora de comer. Os estômagos estavam vazios, um ratinho roía-lhes as entranhas, tinham comido de manhã cedo umas malgas de água-de-unto com pão de milho, conhecido por broa, mas onde é que isso parava, já fora há umas boas quatro horas. As amoras ainda não estavam maduras; se estivessem, fartar-se-iam, embora alguns rapazes já tivessem ido parar ao hospital por causa delas. Comiam-nas ainda quentes, não as lavavam, e depois era o demo! 

- Vamos embora; - aconselhou o Arnesto – já estou com uma larica dos diabos.
- Só pensas em comer! Trabalhar não é contigo – dispara o Lingrinhas, dando mais umas alfinetadas nos amigos.
- Vai à fava! – descarregou o outro. - Eu não como à tua custa.
- Olha que levas! – ameaça o Lingrinhas.

     Dali a pouco andavam os dois à porrada: ao soco, ao pontapé, trambolhão para aqui, trambolhão para ali, mas o Lingrinhas teve de desistir, porque só era forte na língua; o seu corpo franzino, os ossos do corpo quase a verem-se, sem quaisquer músculos que sobressaíssem, não lhe permitiam grandes pelejas.   
   Partiram, mas prometeram voltar no próximo domingo, admirar as pernas daquelas bonitas moças.

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     O corpo da Lina dera um enorme salto. Com doze anos, e meia dúzia de meses, já com umas visíveis maminhas, apareceu-lhe aquilo que é exclusivo da condição feminina. Assustou-se e foi ter rapidamente com a mãe.

- Mãe, a minha roupa ficou suja de sangue! Estou doente, vou morrer.
- Não vais nada morrer, rapariga. Isso é próprio das mulheres. Eu tinha treze anos quando a menstruação me apareceu. Assustei-me imenso, andava no monte à lenha, não sabia o que havia de fazer. Corri para casa, como tu agora fizeste. A tua avó explicou-me tudo. A natureza dá-nos isto para podermos ter filhos.
- Ter filhos?!
- Sim, a partir de agora já podes ser mãe; mas ainda és muito nova, tens que comer muita côdea, muita batata e toucinho, muito caldo de farinha, para depois casares e teres uma família tua. Com esse corpo não aguentavas um parto, nem a criança conseguia ultrapassar as primeiras horas de vida. Lá para os vinte, lá para os vinte… Agora vai buscar água e lava-te. Muda também de roupa. Eu vou já ter contigo para te ensinar como deves fazer nestas ocasiões.

     A jovem ficou pensativa. Tinha que aguardar ainda sete anos para ter um homem. Era muito tempo. Já os contemplava de cima a baixo; quando algum ia libertar águas ficava atenta, imaginando coisas… Não, não iria esperar tanto tempo. A natureza dá, a criatura consome!
     Clara, vendo que a filha se estava a transformar numa mulherzinha, começou a ensinar-lhe a tratar da casa, a cozinhar, a remendar roupa, a fazer todos os dias a cama, com aquele colchão rijo, cheio de palha centeia, por vezes carregadinho de pulgas, mas já todos estavam habituados àqueles bichos nojentos – faziam parte da família, tal como as galinhas, os porcos, coelhos, cães, etc. O pior era os piolhos, que depositavam aquelas lêndeas no cabelo, não se suportando a comichão; se não se tratasse a tempo até se fazia sangue de tanto coçar!
     Passaram-se dois anos e tal. Um dia Clara chama a filha e diz-lhe:

- Lina, estás a bem dizer uma mulher, já sabes quase tratar duma casa, tens algum jeito para a cozinha, e por isso precisas de ganhar a tua vida. Aqui o teu futuro será igual ao meu: trabalho, mais trabalho, sempre trabalho, e proveito quase nenhum. Nada podemos poupar, porque o pouco que nós conseguimos, temos que o gastar no dia-a-dia – mais que houvera! Não podemos dizer que passamos fome, isso não, mas anos há que o São Miguel nos atraiçoa, e as necessidades são muitas. Temos imensos estômagos para alimentar, o teu pai morreu com a maldita tísica, veio bom do Sanatório, mas não teve juízo, más companhias, sempre a fumar e a beber, os médicos bem o avisaram, mas aquela cabeça não tinha juízo, não quis ouvir os conselhos, sempre borracho, a cair de bêbado, alvo de troça, foi morrendo aos poucos. Os teus avós estão a ficar velhos; pouco mais tempo eles irão permanecer neste vale de lágrimas. Eu e os teus tios vamos aguentando isto. Os teus irmãos andam na escola, vamos lá a ver se não fazem como tu, que nem sequer sabes assinar o teu nome, ficaste uma burrinha nas letras. Para o resto és tu fina, astuta, ninguém te leva a palma, espero que não faças nenhuma asneira, olha que elas pagam-se, e por vezes com juros! Também, para servires como criada, não te vai fazer falta nenhuma saberes ler e escrever – o que é preciso é que saibas fazer as coisas de casa e obedeças às ordens dos patrões.       
- Ó mãe, e se eles me tratarem mal, o que faço?
- Há bons e maus patrões; mas se tiveres sorte, e se Nossa Senhora, mãe de Cristo, te ajudar, hás-de encontrar uns bons senhores. Enquanto fores nova, e tiveres energia, não te há-de faltar uma casa para servir. Sê ajuizada, não te metas em intrigas, não vejas para além do que precisas e do que te permitem. Os homens de casa não são para ti: – «não olhes para o sol, pois ficarás cega», dizia a minha querida mãe. Quem muito quer, tudo perde, por isso sê humilde, razoável, deixa a ambição de lado. O teu homem há-de ser um rapaz do campo, como o teu pai, e não um “fidalgo” da cidade. Esses gostam pouco do labor e muito do conforto. Andam todos os dias vestidos com roupas domingueiras, os sapatos engraxados, os cabelos bem penteados. Desses foge, minha filha, não prestam para nada, vivem à custa do suor alheio, comportam-se como os parasitas das plantas e dos animais.
- Mas, minha mãe, se eu vou servir para uma casa da Vila não posso namorar com um rapaz da lavoura, não acha?

- Nisso tens razão, mas podes vir a casar com um guarda-fiscal ou um guarda-republicano, ou até com um empregado do comércio, ou mesmo da Câmara. Esses, quase todos nasceram no campo, e depois saíram dele, e sabem muito bem o que a vida custa. Também te calhava um artista, um sapateiro, ou alfaiate, mas esses gostam das meninas da Vila. 

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