LINA, FILHA DE PÃ
romance
Por Joaquim A. Rocha
3.º Capítulo
O leitor não
pense que nessa altura, 1932,1933, havia uma grande sala de cinema na Vila,
como as de Lisboa ou Porto. Não, não havia. O que acontece é que o senhor Alexandre
Rodrigues – fotógrafo, taxista e aferidor de pesos – mais o senhor Amadeu
Afonso – alfaiate e taxista – fizeram uma espécie de sociedade e, numa garagem,
exibiam alguns filmes, sobretudo cómicos, da época do mudo. Alguns anos antes,
no lugar do Couto, freguesia de Dernepa, existira também uma sala de cinema,
cujo dono se chamava Cícero Meleiro. Foi este senhor o primeiro a exibir filmes
em Melcarte.
Uns anos depois
surgiu uma Sala de Cinema na zona histórica, a que deram a designação de Cine Republicano,
cujo proprietário se chamou António Alves Semedo. Devido à censura, e à moral
vigente, não se podiam passar no ecrã filmes muito ousados, isso só aconteceu
muitas décadas depois.
**
Aquela conversa dos
rapazes prolongou-se até à hora de comer. Os estômagos estavam vazios, um
ratinho roía-lhes as entranhas, tinham comido de manhã cedo umas malgas de
água-de-unto com pão de milho, conhecido por broa, mas onde é que isso parava,
já fora há umas boas quatro horas. As amoras ainda não estavam maduras; se
estivessem, fartar-se-iam, embora alguns rapazes já tivessem ido parar ao
hospital por causa delas. Comiam-nas ainda quentes, não as lavavam, e depois
era o demo!
- Vamos embora; - aconselhou
o Arnesto – já estou com uma larica dos diabos.
- Só pensas em comer! Trabalhar não é contigo – dispara o Lingrinhas, dando mais umas
alfinetadas nos amigos.
- Vai à fava! – descarregou
o outro. - Eu não como à tua custa.
- Olha que levas! – ameaça
o Lingrinhas.
Dali a pouco
andavam os dois à porrada: ao soco, ao pontapé, trambolhão para aqui, trambolhão
para ali, mas o Lingrinhas teve de desistir, porque só era forte na língua; o
seu corpo franzino, os ossos do corpo quase a verem-se, sem quaisquer músculos
que sobressaíssem, não lhe permitiam grandes pelejas.
Partiram, mas
prometeram voltar no próximo domingo, admirar as pernas daquelas bonitas moças.
**
O corpo da Lina
dera um enorme salto. Com doze anos, e meia dúzia de meses, já com umas visíveis
maminhas, apareceu-lhe aquilo que é exclusivo da condição feminina. Assustou-se
e foi ter rapidamente com a mãe.
- Mãe, a minha roupa ficou suja de sangue! Estou doente, vou
morrer.
- Não vais nada morrer, rapariga. Isso é próprio das
mulheres. Eu tinha treze anos quando a menstruação me apareceu. Assustei-me imenso,
andava no monte à lenha, não sabia o que havia de fazer. Corri para casa, como
tu agora fizeste. A tua avó explicou-me tudo. A natureza dá-nos isto para
podermos ter filhos.
- Ter filhos?!
- Sim, a partir de agora já podes ser mãe; mas ainda és
muito nova, tens que comer muita côdea, muita batata e toucinho, muito caldo de
farinha, para depois casares e teres uma família tua. Com esse corpo não
aguentavas um parto, nem a criança conseguia ultrapassar as primeiras horas de
vida. Lá para os vinte, lá para os vinte… Agora vai buscar água e lava-te. Muda
também de roupa. Eu vou já ter contigo para te ensinar como deves fazer nestas
ocasiões.
A jovem ficou
pensativa. Tinha que aguardar ainda sete anos para ter um homem. Era muito tempo.
Já os contemplava de cima a baixo; quando algum ia libertar águas ficava
atenta, imaginando coisas… Não, não iria esperar tanto tempo. A natureza dá, a
criatura consome!
Clara, vendo que
a filha se estava a transformar numa mulherzinha, começou a ensinar-lhe a tratar
da casa, a cozinhar, a remendar roupa, a fazer todos os dias a cama, com aquele
colchão rijo, cheio de palha centeia, por vezes carregadinho de pulgas, mas já
todos estavam habituados àqueles bichos nojentos – faziam parte da família, tal
como as galinhas, os porcos, coelhos, cães, etc. O pior era os piolhos, que
depositavam aquelas lêndeas no cabelo, não se suportando a comichão; se não se
tratasse a tempo até se fazia sangue de tanto coçar!
Passaram-se dois
anos e tal. Um dia Clara chama a filha e diz-lhe:
- Lina, estás a bem dizer uma mulher, já sabes quase tratar
duma casa, tens algum jeito para a cozinha, e por isso precisas de ganhar a tua
vida. Aqui o teu futuro será igual ao meu: trabalho, mais trabalho, sempre
trabalho, e proveito quase nenhum. Nada podemos poupar, porque o pouco que nós conseguimos,
temos que o gastar no dia-a-dia – mais que houvera! Não podemos dizer que
passamos fome, isso não, mas anos há que o São Miguel nos atraiçoa, e as
necessidades são muitas. Temos imensos estômagos para alimentar, o teu pai
morreu com a maldita tísica, veio bom do Sanatório, mas não teve juízo, más
companhias, sempre a fumar e a beber, os médicos bem o avisaram, mas aquela
cabeça não tinha juízo, não quis ouvir os conselhos, sempre borracho, a cair de
bêbado, alvo de troça, foi morrendo aos poucos. Os teus avós estão a ficar
velhos; pouco mais tempo eles irão permanecer neste vale de lágrimas. Eu e os
teus tios vamos aguentando isto. Os teus irmãos andam na escola, vamos lá a ver
se não fazem como tu, que nem sequer sabes assinar o teu nome, ficaste uma
burrinha nas letras. Para o resto és tu fina, astuta, ninguém te leva a palma,
espero que não faças nenhuma asneira, olha que elas pagam-se, e por vezes com
juros! Também, para servires como criada, não te vai fazer falta nenhuma
saberes ler e escrever – o que é preciso é que saibas fazer as coisas de casa e
obedeças às ordens dos patrões.
- Ó mãe, e se eles me tratarem mal, o que faço?
- Há bons e maus patrões; mas se tiveres sorte, e se Nossa
Senhora, mãe de Cristo, te ajudar, hás-de encontrar uns bons senhores. Enquanto
fores nova, e tiveres energia, não te há-de faltar uma casa para servir. Sê
ajuizada, não te metas em intrigas, não vejas para além do que precisas e do
que te permitem. Os homens de casa não são para ti: – «não olhes para o sol, pois ficarás cega», dizia a minha querida mãe.
Quem muito quer, tudo perde, por isso sê humilde, razoável, deixa a ambição de
lado. O teu homem há-de ser um rapaz do campo, como o teu pai, e não um “fidalgo”
da cidade. Esses gostam pouco do labor e muito do conforto. Andam todos os dias
vestidos com roupas domingueiras, os sapatos engraxados, os cabelos bem
penteados. Desses foge, minha filha, não prestam para nada, vivem à custa do suor
alheio, comportam-se como os parasitas das plantas e dos animais.
- Mas, minha mãe, se eu vou servir para uma casa da Vila não
posso namorar com um rapaz da lavoura, não acha?
- Nisso tens razão, mas podes vir a casar com um
guarda-fiscal ou um guarda-republicano, ou até com um empregado do comércio, ou
mesmo da Câmara. Esses, quase todos nasceram no campo, e depois saíram dele, e
sabem muito bem o que a vida custa. Também te calhava um artista, um sapateiro,
ou alfaiate, mas esses gostam das meninas da Vila.
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