ENTRE MORTOS E FERIDOS
7.º Capítulo
TOMAR
«O tempo voa!», costumamos dizer.
Assim é. Havia já meses que os dois amigos se encontravam. Henrique estava a
ficar maravilhado com a história de Cândido. A realidade superava a imaginação.
Numa dessas tardes pergunta-lhe:
- Qual foi a etapa seguinte? E de imediato, sem esperar pela resposta, com
um longo sorriso nos lábios, comenta: - o meu amigo não parava!
Cândido, pensando à velocidade da
luz, responde-lhe:
- Mandaram-nos para Tomar. A cidade que
me encantou. O seu vetusto castelo, mandado construir no século XII por Dom
Gualdim, mestre dos Templários, é interessantíssimo. Também o seu convento, ou
mosteiro, velho de séculos, nos seduz. Não nos é difícil imaginarmos os frades
na sua labuta diária pelo sustento físico e espiritual; as freiras, moças
casadoiras, empurradas pelas circunstâncias para aquela vida sem quaisquer
perspectivas de futuro. Enfim, tempos e costumes que tiveram a sua época.
Nessa belíssima cidade histórica,
situada no distrito de Santarém, com cerca de sete mil habitantes, já se encontrava
a Companhia de Caçadores, à qual eu doravante pertenceria. O comandante, com o
posto de tenente, tinha obtido a sua formação militar na Academia de Lisboa.
Indivíduo ainda novo, vinte e cinco, vinte e
seis anos de idade, rosto aparentemente duro, inexpressivo, mente insondável,
um metro e setenta e cinco de altura, mais centímetro menos centímetro, setenta
quilos de peso bem musculados, moreno, cabelo cortado à escovinha, olhos
escuros, quase pretos, atlético, mentalizado para enfrentar a luta armada «contra os inimigos da pátria e do seu lídimo
chefe.»
O segundo comandante, homem esbelto, cabelo aos caracóis, olhos castanhos-claros,
sorriso cínico, olhar esquivo e irónico, apesar de ser um alferes miliciano
dava ares de mercenário, de profissional da guerra. Enquanto os outros oficiais
tentavam disfarçar a pistola que traziam à cintura, ele exibia-a com gestos
infantis e parolos, convencido talvez de que era o maior pistoleiro das
planícies americanas, do tempo dos cow-boys.
- Era vaidoso, petulante!
- Muito! Usava fardas justas a fim de
realçar o seu físico, que não aparentava, mesmo assim, ser muito musculoso. Era
só aparência!
- As pessoas são diferentes umas das
outras, não se esqueça. Espero que essa fanfarronice toda não se transformasse
em opressão.
- Vim a saber mais tarde que esses
exibicionismos andavam estreitamente ligados a dolorosos complexos, pois apenas
podia apresentar como habilitações literárias o quinto ano dos liceus! Os
outros alferes eram todos licenciados, tinham um curso superior.
- Então como chegou a segundo
comandante da Companhia?! – pergunta,
admirado, perplexo, Henrique.
- A Academia Militar (Amadora e Gomes Freire) não formava
muitos oficiais. Eram cursos de vários anos e alguns cadetes, como eram
designados, ou alunos, desistiam e outros não ficavam classificados. Assim, e
devido à guerra colonial, foi necessário ao regime promover civis, depois de
uma permanência curta nas Forças Armadas. Tratava-se de professores, empregados
de escritório, bancários, etc., ligados quase todos à mocidade portuguesa e à
legião, preparados por esses tais oficiais de carreira. Os melhores, embora sem
curso superior, passavam de furriel a aspirante e logo depois eram promovidos a
alferes. Aqueles que tivessem curso superior não passavam pela classe de
sargentos. Desse modo, o regime conseguiu milhares de oficiais milicianos,
alguns dos quais seguiram depois a carreira militar, combatendo nas várias
frentes, atingindo patentes nunca antes imaginadas.
- E os profissionais, como reagiram?
- No princípio da guerra aceitaram a
coisa, a incongruência, pois não havia quaisquer alternativas. Eles sabiam que
eram poucos para fazer face ao que lhes era solicitado. Três frentes de
batalha: Guiné-Bissau, Moçambique e Angola, não é brincadeira nenhuma. Mas
depois, nos anos setenta, começaram a reagir. Alguns milicianos estavam a
passar-lhes a perna. O 25 de Abril é, em parte, consequência dessa constatação.
- Então o 25 de Abril de 1974 não teve
como objectivo principal derrubar o salazarismo?!
- Não, meu amigo. Serviu de pretexto,
mas a causa principal tem a ver com aquilo que te disse. Os militares já não
suportavam serem superados pelos civis.
- Então qual foi o papel dos partidos
políticos na revolução? – pergunta
Henrique, algo confuso.
- Os partidos: PCP e PS, além de outros
menos importantes, estavam no estrangeiro. Em Portugal tinham alguns elementos,
mas na clandestinidade. O governo, tanto da ditadura
militar (1926-1932), como do Salazar
(1933-1968), assim como o de Marcelo
Caetano (1968-1974), não permitia
quaisquer forças políticas contrárias ao regime designado por Estado Novo.
- Então os partidos tiveram pouco peso
na revolução?
- Vejamos: o que aconteceu no 25 de
Abril não é uma revolução, mas sim um golpe militar. Logo a seguir, e tendo em
conta a adesão do povo, sobretudo os das principais cidades, e com a vinda de
Mário Soares e Álvaro Cunhal do estrangeiro, deu-se início a uma revolução, que
a pouco e pouco foi criando o regime democrático burguês – mais conhecido por «social-democracia».
- Estavam todos fartos da ditadura…
- Isso facilitou imenso a mudança. Mas
voltando a Tomar. A minha Companhia estava, a bem dizer, quase completa. Apenas
aguardava os inúmeros especialistas: enfermeiros, mecânicos,
radiotelegrafistas, amanuenses, condutores, cozinheiros, vagomestre, etc.
- O que é propriamente uma Companhia? –
quer saber Henrique, com o objectivo de compreender
melhor a história que o amigo lhe vinha contando.
- Uma Companhia faz parte de um
Batalhão (corpo de infantaria com cerca
de seiscentos homens), e subdivide-se em quatro pelotões, à frente dos
quais se encontra um oficial subalterno, geralmente com a patente de alferes.
Os pelotões por sua vez ainda se desdobram em sectores, comandados por segundos-sargentos
e por furriéis. Nós, os pseudo especialistas, digo pseudo porque mal preparados, íamos
sendo, à medida que chegávamos, integrados nos respectivos pelotões e logo se
começava, a partir daí, a conviver com todos aqueles que iriam ser os nossos
camaradas de África durante a campanha, que normalmente durava dois longos anos,
e companheiros provavelmente de hospital e de morgue. Seríamos cobardes ou
heróis, mártires ou desertores – não sabíamos ainda. Os dados estavam lançados,
mas não por nós, meros paus mandados, mas sim por eles, governantes e generais.
- Você lamenta-se, mas graças à tropa
conheceu vários sítios – ironiza
Henrique, para não estar calado.
- Preferia tê-los conhecido como
turista; mas quanto a Tomar, agradou-me sobremaneira, apesar de ter um clima
inóspito quando ali estive. A sua população dimanava simpatia e jamais
hostilizou o soldado. Ainda cheguei, antes de partir para a Guiné, a fazer
algumas guardas no mosteiro, e nem o capote nem a manta chegavam para me aquecer!
O mercúrio do termómetro descia muitos graus abaixo de zero!
- Tudo passou; agora deve tentar
recordar-se apenas das coisas boas – diz
Henrique, numa tentativa para apaziguar o espírito amargurado do amigo.
- Sim, tudo passou… Tudo passa!... Mas não
se esquece com facilidade. No entanto, também tenho lembranças positivas: o rio
Nabão, que nessa altura, Dezembro de 1965, ainda não estava poluído,
proporcionava-nos agradáveis momentos de ócio. As suas águas corriam límpidas,
murmurando canções de embalar, algumas aves brincavam no seu leito, apesar de
estarmos na época fria, tudo numa harmonia natural, sem artifícios.
- Você gosta muito da natureza.
- Você gosta muito da natureza.
- Desde criança que sinto essa atracção
por ela. Tenho imensa pena quando vejo um curso de água ou uma floresta serem
maltratados. Infelizmente o capitalismo cego e selvagem tudo destrói, alegando
que é para o bem da humanidade! Um dia até eles próprios vão ver que estão
errados.
- E Dezembro escoava-se…
- O dia da partida aproximava-se
vertiginosamente. O tenente reuniu a Companhia e informou que o embarque seria
no dia vinte de Janeiro. Antes disso teríamos direito a uma curta licença para
podermos passar o natal e dizer adeus à família e aos amigos. Quantos de nós os
tornariam a ver novamente?
- Já voltou a Tomar?
- Ainda lá regressámos, não todos,
infelizmente, em finais de 1967 para entregar as execráveis e carcomidas
fardas, e despedirmo-nos da vida militar, vestir a calça e o casaco, colocar ao
pescoço a gravata domingueira, calçar sapatos, passar à disponibilidade, ou
peluda, como então se costumava dizer.
// (continua)...
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