quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

ENTRE MORTOS E FERIDOS 


7.º Capítulo

TOMAR

     «O tempo voa!», costumamos dizer. Assim é. Havia já meses que os dois amigos se encontravam. Henrique estava a ficar maravilhado com a história de Cândido. A realidade superava a imaginação. Numa dessas tardes pergunta-lhe:

- Qual foi a etapa seguinte? E de imediato, sem esperar pela resposta, com um longo sorriso nos lábios, comenta: - o meu amigo não parava!
    
     Cândido, pensando à velocidade da luz, responde-lhe:

- Mandaram-nos para Tomar. A cidade que me encantou. O seu vetusto castelo, mandado construir no século XII por Dom Gualdim, mestre dos Templários, é interessantíssimo. Também o seu convento, ou mosteiro, velho de séculos, nos seduz. Não nos é difícil imaginarmos os frades na sua labuta diária pelo sustento físico e espiritual; as freiras, moças casadoiras, empurradas pelas circunstâncias para aquela vida sem quaisquer perspectivas de futuro. Enfim, tempos e costumes que tiveram a sua época. 

     Nessa belíssima cidade histórica, situada no distrito de Santarém, com cerca de sete mil habitantes, já se encontrava a Companhia de Caçadores, à qual eu doravante pertenceria. O comandante, com o posto de tenente, tinha obtido a sua formação militar na Academia de Lisboa.
     Indivíduo ainda novo, vinte e cinco, vinte e seis anos de idade, rosto aparentemente duro, inexpressivo, mente insondável, um metro e setenta e cinco de altura, mais centímetro menos centímetro, setenta quilos de peso bem musculados, moreno, cabelo cortado à escovinha, olhos escuros, quase pretos, atlético, mentalizado para enfrentar a luta armada «contra os inimigos da pátria e do seu lídimo chefe
     O segundo comandante, homem esbelto, cabelo aos caracóis, olhos castanhos-claros, sorriso cínico, olhar esquivo e irónico, apesar de ser um alferes miliciano dava ares de mercenário, de profissional da guerra. Enquanto os outros oficiais tentavam disfarçar a pistola que traziam à cintura, ele exibia-a com gestos infantis e parolos, convencido talvez de que era o maior pistoleiro das planícies americanas, do tempo dos cow-boys.
- Era vaidoso, petulante!
- Muito! Usava fardas justas a fim de realçar o seu físico, que não aparentava, mesmo assim, ser muito musculoso. Era só aparência!
- As pessoas são diferentes umas das outras, não se esqueça. Espero que essa fanfarronice toda não se transformasse em opressão.
- Vim a saber mais tarde que esses exibicionismos andavam estreitamente ligados a dolorosos complexos, pois apenas podia apresentar como habilitações literárias o quinto ano dos liceus! Os outros alferes eram todos licenciados, tinham um curso superior.
- Então como chegou a segundo comandante da Companhia?! – pergunta, admirado, perplexo, Henrique.
- A Academia Militar (Amadora e Gomes Freire) não formava muitos oficiais. Eram cursos de vários anos e alguns cadetes, como eram designados, ou alunos, desistiam e outros não ficavam classificados. Assim, e devido à guerra colonial, foi necessário ao regime promover civis, depois de uma permanência curta nas Forças Armadas. Tratava-se de professores, empregados de escritório, bancários, etc., ligados quase todos à mocidade portuguesa e à legião, preparados por esses tais oficiais de carreira. Os melhores, embora sem curso superior, passavam de furriel a aspirante e logo depois eram promovidos a alferes. Aqueles que tivessem curso superior não passavam pela classe de sargentos. Desse modo, o regime conseguiu milhares de oficiais milicianos, alguns dos quais seguiram depois a carreira militar, combatendo nas várias frentes, atingindo patentes nunca antes imaginadas.
- E os profissionais, como reagiram?
- No princípio da guerra aceitaram a coisa, a incongruência, pois não havia quaisquer alternativas. Eles sabiam que eram poucos para fazer face ao que lhes era solicitado. Três frentes de batalha: Guiné-Bissau, Moçambique e Angola, não é brincadeira nenhuma. Mas depois, nos anos setenta, começaram a reagir. Alguns milicianos estavam a passar-lhes a perna. O 25 de Abril é, em parte, consequência dessa constatação.
- Então o 25 de Abril de 1974 não teve como objectivo principal derrubar o salazarismo?!
- Não, meu amigo. Serviu de pretexto, mas a causa principal tem a ver com aquilo que te disse. Os militares já não suportavam serem superados pelos civis.
- Então qual foi o papel dos partidos políticos na revolução? – pergunta Henrique, algo confuso.
- Os partidos: PCP e PS, além de outros menos importantes, estavam no estrangeiro. Em Portugal tinham alguns elementos, mas na clandestinidade. O governo, tanto da ditadura militar (1926-1932), como do Salazar (1933-1968), assim como o de Marcelo Caetano (1968-1974), não permitia quaisquer forças políticas contrárias ao regime designado por Estado Novo.
- Então os partidos tiveram pouco peso na revolução?
- Vejamos: o que aconteceu no 25 de Abril não é uma revolução, mas sim um golpe militar. Logo a seguir, e tendo em conta a adesão do povo, sobretudo os das principais cidades, e com a vinda de Mário Soares e Álvaro Cunhal do estrangeiro, deu-se início a uma revolução, que a pouco e pouco foi criando o regime democrático burguês – mais conhecido por «social-democracia».
- Estavam todos fartos da ditadura…
- Isso facilitou imenso a mudança. Mas voltando a Tomar. A minha Companhia estava, a bem dizer, quase completa. Apenas aguardava os inúmeros especialistas: enfermeiros, mecânicos, radiotelegrafistas, amanuenses, condutores, cozinheiros, vagomestre, etc.
- O que é propriamente uma Companhia? – quer saber Henrique, com o objectivo de compreender melhor a história que o amigo lhe vinha contando.
- Uma Companhia faz parte de um Batalhão (corpo de infantaria com cerca de seiscentos homens), e subdivide-se em quatro pelotões, à frente dos quais se encontra um oficial subalterno, geralmente com a patente de alferes. Os pelotões por sua vez ainda se desdobram em sectores, comandados por segundos-sargentos e por furriéis. Nós, os pseudo especialistas, digo pseudo porque mal preparados, íamos sendo, à medida que chegávamos, integrados nos respectivos pelotões e logo se começava, a partir daí, a conviver com todos aqueles que iriam ser os nossos camaradas de África durante a campanha, que normalmente durava dois longos anos, e companheiros provavelmente de hospital e de morgue. Seríamos cobardes ou heróis, mártires ou desertores – não sabíamos ainda. Os dados estavam lançados, mas não por nós, meros paus mandados, mas sim por eles, governantes e generais.
- Você lamenta-se, mas graças à tropa conheceu vários sítios – ironiza Henrique, para não estar calado.
- Preferia tê-los conhecido como turista; mas quanto a Tomar, agradou-me sobremaneira, apesar de ter um clima inóspito quando ali estive. A sua população dimanava simpatia e jamais hostilizou o soldado. Ainda cheguei, antes de partir para a Guiné, a fazer algumas guardas no mosteiro, e nem o capote nem a manta chegavam para me aquecer! O mercúrio do termómetro descia muitos graus abaixo de zero!
- Tudo passou; agora deve tentar recordar-se apenas das coisas boas – diz Henrique, numa tentativa para apaziguar o espírito amargurado do amigo.
- Sim, tudo passou… Tudo passa!... Mas não se esquece com facilidade. No entanto, também tenho lembranças positivas: o rio Nabão, que nessa altura, Dezembro de 1965, ainda não estava poluído, proporcionava-nos agradáveis momentos de ócio. As suas águas corriam límpidas, murmurando canções de embalar, algumas aves brincavam no seu leito, apesar de estarmos na época fria, tudo numa harmonia natural, sem artifícios.
- Você gosta muito da natureza.
- Desde criança que sinto essa atracção por ela. Tenho imensa pena quando vejo um curso de água ou uma floresta serem maltratados. Infelizmente o capitalismo cego e selvagem tudo destrói, alegando que é para o bem da humanidade! Um dia até eles próprios vão ver que estão errados.
- E Dezembro escoava-se…
- O dia da partida aproximava-se vertiginosamente. O tenente reuniu a Companhia e informou que o embarque seria no dia vinte de Janeiro. Antes disso teríamos direito a uma curta licença para podermos passar o natal e dizer adeus à família e aos amigos. Quantos de nós os tornariam a ver novamente?
- Já voltou a Tomar?
- Ainda lá regressámos, não todos, infelizmente, em finais de 1967 para entregar as execráveis e carcomidas fardas, e despedirmo-nos da vida militar, vestir a calça e o casaco, colocar ao pescoço a gravata domingueira, calçar sapatos, passar à disponibilidade, ou peluda, como então se costumava dizer.

                                                   
// (continua)...




Sem comentários:

Enviar um comentário