ESCRITOS SOBRE MELGAÇO
Por Joaquim A. Rocha
Acabei de ler o
livro com o título acima, da autoria do senhor padre Júlio Vaz, e só me ocorre
dizer-vos uma coisa: fiquei emocionado. É surpreendente a quantidade de
informação recolhida e, sobretudo, a sua qualidade. Poucas pessoas seriam
capazes de tamanho empreendimento. Como melgacense sinto-me orgulhoso com mais
esta obra acerca do nosso concelho. Ela vai ser, como já sugere o senhor Manuel
Igrejas, o livro de cabeceira de todos nós. Apesar de eu ser um estudioso das
coisas de Melgaço, neste livro foram inseridos dados que eu, francamente,
desconhecia. Por exemplo: os capítulos XIII (Estela sepulcral arcaica do Alto
Minho); XIV (Esconderijo morgeano da Carpinteira); XV (Breve notícia, até ao
presente inédita, do achado de instrumentos de bronze no concelho de Melgaço).
Relembrei também a excursão a Castro Laboreiro do grande sábio José Leite de
Vasconcelos (1858-1941), e deliciei-me com o apontamento sobre o antigo Colégio
da Barronda. Juro-vos que se antes tivesse lido o artigo «É necessário e
urgente preparar o Alto Minho para um verdadeiro Turismo», publicado em A Voz
de Melgaço de 1/3/1985, e agora transcrito para o livro (capítulo VI), não
teria arriscado uma linha sequer sobre o assunto: aí está tudo dito, tudo
sugerido!
Um dos capítulos
mais importantes é, sem dúvida, o primeiro: «o que o rio Minho não separou.» Aí
se fala da geografia comum (… a Galiza e
o Minho formam um todo, página 12); da língua comum: (… uma língua substancialmente uniforme,
página 13); «… sem menosprezar a raça
comum», página 13.
Se eu fosse o
autor deste livro talvez nele não incluísse os capítulos VIII (Actualização e a
reacção do Arcebispo D. Francisco) e IX (Conflito eclesiástico de A Voz de
Melgaço). Parecem-me deslocados, embora não ponha em causa o seu interesse
histórico. Reservá-los-ia para um Livro de Memórias. Não tenho quaisquer
dúvidas que o Padre Júlio (com tanto que tem para nos dizer) publicará, um dia,
essa obra.
Quanto ao
capítulo X (Herói Melgacense) acho-o um pouco castrense, isto é, do foro
militar. Os melgacenses, quanto a mim, são todos heróis: quer na guerra, quer
na paz. Não é herói o emigrante que trabalha quarenta anos em França na
construção civil para proporcionar à família o bem-estar? Não é herói o
camponês que trabalha de sol a sol as suas terras? Não é herói o alfaiate, o
barbeiro, o professor, o padre? A heroicidade não é exclusiva dos militares –
que me perdoem Padre Júlio e Sargento Lobato.
Talvez seja
ousadia o que atrás escrevi, mas é isso que eu penso e seria hipocrisia da
minha parte não o manifestar. Ambos, autor e eu, prezamos a liberdade de
expressão e por ela estamos dispostos a bater-nos sempre. O amor à nossa terra
e o respeito que devemos às pessoas superiores não pode impedir-nos de criticar
(no bom sentido da palavra) tudo aquilo que saia da pena de um escritor ou do
pincel de um pintor, ou seja, o que for que nós achemos que não está de acordo
com a nossa maneira de ver o mundo. A crítica é saudável quando feita
honestamente e sem segundas intenções. Também deverá ser feita por quem esteja
minimamente dentro do assunto que está a criticar. Lá diz o ditado: «não vá o sapateiro além da sandália.»
Penso que além da
Gastronomia o autor deveria ter inserido um capítulo sobre a poesia popular do
concelho, alguma já recolhida pelo mencionado Leite de Vasconcelos na sua
monumental obra «Etnografia Portuguesa”, e aprofundar mais o tema sobre a
emigração dos anos sessenta, que tanto tem alterado a fisionomia de Melgaço.
O Padre Júlio
surge-nos, depois desta obra, como um continuador dos historiadores melgacenses
Dr. Augusto César Esteves e Padre Bernardo Pintor (o Professor Doutor José Marques
ultrapassa o âmbito regionalista).
Os jovens,
sobretudo eles, precisam destes livros para que o seu orgulho pela «Terra-Mãe»
aumente. A televisão, as discotecas, os vídeos e as cassetes em profusão,
provocaram tal avalanche de distrações que os jovens têm dificuldade na
escolha. As noites sossegadas em casa, os fins-de-semana pachorrentos, os
passeios a pé, deram lugar às noitadas, ao aturdimento prolongado, ao encurtar
da vida e seus prazeres simples. Melgaço é demasiado “pequeno e pobre” para
muitos deles, que já visitaram as cidades ricas de França e Alemanha. Esquecem,
ou talvez nunca tenham nisso meditado, que o Homem pode sentir-se
espiritualmente bem em terras sem grandes atrações lúdicas. O contacto com a
natureza, o convívio com as outras pessoas (nas cidades é cada vez mais
difícil) dá-nos uma calma interior, um bem-estar tão profundo que compensa
todas as “farras” loucas, onde a saúde e a bolsa saem delapidadas. O
artificialismo criado pelos “fabricantes” da ilusão a qualquer preço pode levar
ao divórcio do ser humano com as suas raízes mais profundas: a Terra, a
Família…
«Na Terra de Inês
Negra” esse regresso ao simples é patente. A Casa (com letra maiúscula) dos
pais é também a nossa Casa (é todo o concelho, as suas gentes, os seus
costumes, as suas virtudes e os seus defeitos). Esta é a grande lição do Padre
Júlio. Conhecendo as nossas origens, os altos e baixos da comunidade,
permite-nos respeitá-la mais e mais. Ninguém pode amar aquilo que não conhece.
A emigração é
apenas um episódio da nossa história; quando ela terminar, e a fase descendente
já começou, Melgaço retomará a sua verdadeira imagem e de Babel que é atualmente
transformar-se-á em comunidade genuína. Não sou contra a emigração, ela é quase
uma fatalidade, mas a dos anos sessenta provocou tal sangria na população, e
tantas consequências no concelho, quer benéficas, quer nefastas, que pouco
faltou para o descaraterizar completamente!
A nossa terra,
devido em parte à sua situação geográfica, tem estado praticamente isolada dos
“grandes meios”; a cidade mais próxima, em termos de importância, é Braga, e
Braga está longe, demasiado longe! As auto-estradas constroem-se até Valença
(será que Portugal começa ali?!), as pontes do rio Minho não têm o nome
Melgaço, apesar das promessas. Deveríamos perguntar aos ministros se os melgacenses
têm a lepra ou qualquer outra doença contagiosa que os faz afastar deste belo
recanto minhoto. De acordo com a minha opinião, a nossa “lepra” é o termos
poucos votos para lhes dar, porque o dinheiro, esse, vai todo parar-lhes às
mãos. Algo se tem feito, é certo, mas pouco para um concelho tão carecido como
é o nosso. Eu não tenho dúvidas que se dos milhões «desbaratados» um pouco por
este país fora alguns fossem aplicados em Melgaço, em projetos consistentes e
duradouros, o concelho teria condições para alimentar muitas mais bocas, sem
estar à espera das pensões de França ou da Alemanha, ou das remessas (por
quanto tempo?) dos emigrantes.
A capa do livro,
da autoria de Manuel Félix Igrejas, é belíssima, mas de uma imprecisão (ou será
que eu vi mal?) assustadora! Vejamos: não é verdade que o artista se inspirou
no desenho de Duarte D’Armas (vide «VI Centenário da Tomada do Castelo de
Melgaço», página 40), fidalgo da corte de D. Manuel I? Se assim foi, a capela
que nela se vê não pode ser a da senhora da Pastoriza (a primeira missa que aí
se cantou teve lugar a 17/8/1727 - «Melgaço e as Invasões Francesas», página
18). Que capela é aquela? Por outro lado, encontra-se a mesma na outra margem
do rio, isto é, na Galiza! O rio Minho, se é esse rio que está representado na
capa, era nessa altura ainda mais caudaloso do que agora. Situar a luta de Inês
Negra com a Arrenegada na outra margem é, no mínimo, absurdo. A luta travou-se,
embora se trate de uma lenda, junto às muralhas do castelo. Quanto a mim, o desenho
de Duarte D’Armas não permite essa leitura. É certo que o artista tem a liberdade
de executar, de criar, as suas obras de acordo com uma visão interior e
desprezar aquilo que os olhos vêem no exterior; eu só “refilo” porque se trata
de um livro de ensaios históricos – não estamos perante uma ficção. Trutas
saltando à superfície do “rio”, assistindo admiradas à luta entre as duas
mulheres, pode ser uma imagem surpreendente, mas é, também, uma imagem
surrealista!
O rio Minho pode
não ter separado a língua, os sentimentos, os costumes, mas separou, isso todos
sabem, os dois territórios: o português e o espanhol. O senhor Manuel Igrejas
vai certamente corrigir-me, demonstrar a minha ignorância relatimente a esta
minha leitura apressada; espero humildemente os seus esclarecimentos, pois um
livro é um conjunto harmonioso e a capa faz parte integrante dele. Não quero
pôr em causa o trabalho artístico, que considero extraordinário; quero apenas
chamar a atenção para o desfasamento entre as figuras e o seu enquadramento
histórico.
Muito mais
haveria a dizer deste livro. Desejo que muita gente o leia para depois falar.
Desejo também que o senhor Padre Júlio continue a escrever sobre o seu e nosso
Melgaço.
Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 991, de 15/8 a
1/9/1993.
Resposta
Ao amigo Joaquim
A. da Rocha
Querido conterrâneo: só o facto de você se
referir ao desenho que ilustra a capa do livro do senhor padre Júlio «Na Terra
de Inês Negra», detalhadamente e com observações críticas, já me satisfaz. A
maior parte das pessoas a quem o livro chegue às mãos não terão esse cuidado e
muito menos se importarão em saber do autor. Pois bem, não obstante as inúmeras
«imprecisões» que observou, agrada-me saber que se deteve analisando aquele meu
trabalho. Só por isso, obrigado. Estaria tudo dito, uma vez que o amigo mesmo
deu a resposta: «É certo que o artista
tem a liberdade de executar, de criar, as suas obras de acordo com uma visão
interior e desprezar aquilo que os olhos vêem no exterior…» mas, como
também pede um esclarecimento de minha parte, aí vai: aquela composição
artística é uma alegoria. Naquele simbolismo não existiu a intenção de retratar
a realidade histórica e geográfica, apenas sugerir alguns dos temas do livro.
Aquele rio representa todos os cursos de água da nossa terra ricos em peixes e
não especificamente o rio Minho. Assim sendo, não demarca coisa alguma; toda a
extensão representada é uma região ilimitada, como ilimitado é o mundo para os
melgacenses. A capelinha que o amigo se esforçou em identificar representa
todas as capelas que, graças a Deus, existem no nosso concelho. Aliás, é minha
marca: quando em meus desenhos vir um castelo indefinido quer dizer Portugal; e
uma capelinha num outeiro que dizer Melgaço. Sempre que se enquadre incluo
esses dois temas nas minhas composições artísticas. O castelo, realmente, é a
partir do desenho de Duarte D’Armas, mas, como disse, sem a preocupação de
reprodução fiel. A disposição dos objetos no desenho obedecem tão-somente a um
EQUILÍBRIO VISUAL, não a qualquer obrigatoriedade realista. Uma vez, tinha eu
catorze anos, o Mário (Aldemar, creio que era esse o seu verdadeiro nome),
irmão do Armando do Buraco, grande pesquisador e escritor, pediu-me para lhe
fazer uma pintura do terreiro com o castelo ao fundo. Eu fiz a aguarela e ele
gostou, porém, criticou-me severamente por reproduzir a Praça da República
(terreiro) tal como era – despida e cheia de regos da chuva. Que eu devia ter
feito um lindo jardim com árvores e outros adornos. Ante a minha perplexidade
ainda infantil disse que ao artista é permitido o privilégio de alterar de
acordo com seu gosto e visão, quando não se trate de documento. Foi a primeira
das poucas lições de arte que tive na minha vida.
Amigo Joaquim: espero que as minhas
justificações o satisfaçam; sem pretender mudar o seu ponto de vista, desejo
que entenda o meu. Aproveito a oportunidade para fazer-lhe uma observação e um
pedido: o tratamento de senhor que me dispensa frustra o meu propósito de relacionamento
fraternal entre todos os melgacenses. Não me reconheço com capacidade e
condição para ser tratado cerimoniosamente; pelo fator idade, pior ainda, será
até uma ofensa à minha pretensa juventude espiritual.
Queira-me bem, amigo Joaquim. Continue
sendo o observador atento e crítico isento de tudo que acontece naquele nosso
torrão. Um grande abraço.
Manuel
Félix Igrejas
Publicado no jornal A Voz de Melgaço n.º
993, de 1/10/1993.
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