sábado, 9 de janeiro de 2016

ESCRITOS SOBRE MELGAÇO

Por Joaquim A. Rocha



     Acabei de ler o livro com o título acima, da autoria do senhor padre Júlio Vaz, e só me ocorre dizer-vos uma coisa: fiquei emocionado. É surpreendente a quantidade de informação recolhida e, sobretudo, a sua qualidade. Poucas pessoas seriam capazes de tamanho empreendimento. Como melgacense sinto-me orgulhoso com mais esta obra acerca do nosso concelho. Ela vai ser, como já sugere o senhor Manuel Igrejas, o livro de cabeceira de todos nós. Apesar de eu ser um estudioso das coisas de Melgaço, neste livro foram inseridos dados que eu, francamente, desconhecia. Por exemplo: os capítulos XIII (Estela sepulcral arcaica do Alto Minho); XIV (Esconderijo morgeano da Carpinteira); XV (Breve notícia, até ao presente inédita, do achado de instrumentos de bronze no concelho de Melgaço). Relembrei também a excursão a Castro Laboreiro do grande sábio José Leite de Vasconcelos (1858-1941), e deliciei-me com o apontamento sobre o antigo Colégio da Barronda. Juro-vos que se antes tivesse lido o artigo «É necessário e urgente preparar o Alto Minho para um verdadeiro Turismo», publicado em A Voz de Melgaço de 1/3/1985, e agora transcrito para o livro (capítulo VI), não teria arriscado uma linha sequer sobre o assunto: aí está tudo dito, tudo sugerido!
     Um dos capítulos mais importantes é, sem dúvida, o primeiro: «o que o rio Minho não separou.» Aí se fala da geografia comum (… a Galiza e o Minho formam um todo, página 12); da língua comum: (… uma língua substancialmente uniforme, página 13); «… sem menosprezar a raça comum», página 13.
     Se eu fosse o autor deste livro talvez nele não incluísse os capítulos VIII (Actualização e a reacção do Arcebispo D. Francisco) e IX (Conflito eclesiástico de A Voz de Melgaço). Parecem-me deslocados, embora não ponha em causa o seu interesse histórico. Reservá-los-ia para um Livro de Memórias. Não tenho quaisquer dúvidas que o Padre Júlio (com tanto que tem para nos dizer) publicará, um dia, essa obra.
     Quanto ao capítulo X (Herói Melgacense) acho-o um pouco castrense, isto é, do foro militar. Os melgacenses, quanto a mim, são todos heróis: quer na guerra, quer na paz. Não é herói o emigrante que trabalha quarenta anos em França na construção civil para proporcionar à família o bem-estar? Não é herói o camponês que trabalha de sol a sol as suas terras? Não é herói o alfaiate, o barbeiro, o professor, o padre? A heroicidade não é exclusiva dos militares – que me perdoem Padre Júlio e Sargento Lobato.
     Talvez seja ousadia o que atrás escrevi, mas é isso que eu penso e seria hipocrisia da minha parte não o manifestar. Ambos, autor e eu, prezamos a liberdade de expressão e por ela estamos dispostos a bater-nos sempre. O amor à nossa terra e o respeito que devemos às pessoas superiores não pode impedir-nos de criticar (no bom sentido da palavra) tudo aquilo que saia da pena de um escritor ou do pincel de um pintor, ou seja, o que for que nós achemos que não está de acordo com a nossa maneira de ver o mundo. A crítica é saudável quando feita honestamente e sem segundas intenções. Também deverá ser feita por quem esteja minimamente dentro do assunto que está a criticar. Lá diz o ditado: «não vá o sapateiro além da sandália
     Penso que além da Gastronomia o autor deveria ter inserido um capítulo sobre a poesia popular do concelho, alguma já recolhida pelo mencionado Leite de Vasconcelos na sua monumental obra «Etnografia Portuguesa”, e aprofundar mais o tema sobre a emigração dos anos sessenta, que tanto tem alterado a fisionomia de Melgaço.
     O Padre Júlio surge-nos, depois desta obra, como um continuador dos historiadores melgacenses Dr. Augusto César Esteves e Padre Bernardo Pintor (o Professor Doutor José Marques ultrapassa o âmbito regionalista).
     Os jovens, sobretudo eles, precisam destes livros para que o seu orgulho pela «Terra-Mãe» aumente. A televisão, as discotecas, os vídeos e as cassetes em profusão, provocaram tal avalanche de distrações que os jovens têm dificuldade na escolha. As noites sossegadas em casa, os fins-de-semana pachorrentos, os passeios a pé, deram lugar às noitadas, ao aturdimento prolongado, ao encurtar da vida e seus prazeres simples. Melgaço é demasiado “pequeno e pobre” para muitos deles, que já visitaram as cidades ricas de França e Alemanha. Esquecem, ou talvez nunca tenham nisso meditado, que o Homem pode sentir-se espiritualmente bem em terras sem grandes atrações lúdicas. O contacto com a natureza, o convívio com as outras pessoas (nas cidades é cada vez mais difícil) dá-nos uma calma interior, um bem-estar tão profundo que compensa todas as “farras” loucas, onde a saúde e a bolsa saem delapidadas. O artificialismo criado pelos “fabricantes” da ilusão a qualquer preço pode levar ao divórcio do ser humano com as suas raízes mais profundas: a Terra, a Família…
     «Na Terra de Inês Negra” esse regresso ao simples é patente. A Casa (com letra maiúscula) dos pais é também a nossa Casa (é todo o concelho, as suas gentes, os seus costumes, as suas virtudes e os seus defeitos). Esta é a grande lição do Padre Júlio. Conhecendo as nossas origens, os altos e baixos da comunidade, permite-nos respeitá-la mais e mais. Ninguém pode amar aquilo que não conhece.
     A emigração é apenas um episódio da nossa história; quando ela terminar, e a fase descendente já começou, Melgaço retomará a sua verdadeira imagem e de Babel que é atualmente transformar-se-á em comunidade genuína. Não sou contra a emigração, ela é quase uma fatalidade, mas a dos anos sessenta provocou tal sangria na população, e tantas consequências no concelho, quer benéficas, quer nefastas, que pouco faltou para o descaraterizar completamente!
     A nossa terra, devido em parte à sua situação geográfica, tem estado praticamente isolada dos “grandes meios”; a cidade mais próxima, em termos de importância, é Braga, e Braga está longe, demasiado longe! As auto-estradas constroem-se até Valença (será que Portugal começa ali?!), as pontes do rio Minho não têm o nome Melgaço, apesar das promessas. Deveríamos perguntar aos ministros se os melgacenses têm a lepra ou qualquer outra doença contagiosa que os faz afastar deste belo recanto minhoto. De acordo com a minha opinião, a nossa “lepra” é o termos poucos votos para lhes dar, porque o dinheiro, esse, vai todo parar-lhes às mãos. Algo se tem feito, é certo, mas pouco para um concelho tão carecido como é o nosso. Eu não tenho dúvidas que se dos milhões «desbaratados» um pouco por este país fora alguns fossem aplicados em Melgaço, em projetos consistentes e duradouros, o concelho teria condições para alimentar muitas mais bocas, sem estar à espera das pensões de França ou da Alemanha, ou das remessas (por quanto tempo?) dos emigrantes.
     A capa do livro, da autoria de Manuel Félix Igrejas, é belíssima, mas de uma imprecisão (ou será que eu vi mal?) assustadora! Vejamos: não é verdade que o artista se inspirou no desenho de Duarte D’Armas (vide «VI Centenário da Tomada do Castelo de Melgaço», página 40), fidalgo da corte de D. Manuel I? Se assim foi, a capela que nela se vê não pode ser a da senhora da Pastoriza (a primeira missa que aí se cantou teve lugar a 17/8/1727 - «Melgaço e as Invasões Francesas», página 18). Que capela é aquela? Por outro lado, encontra-se a mesma na outra margem do rio, isto é, na Galiza! O rio Minho, se é esse rio que está representado na capa, era nessa altura ainda mais caudaloso do que agora. Situar a luta de Inês Negra com a Arrenegada na outra margem é, no mínimo, absurdo. A luta travou-se, embora se trate de uma lenda, junto às muralhas do castelo. Quanto a mim, o desenho de Duarte D’Armas não permite essa leitura. É certo que o artista tem a liberdade de executar, de criar, as suas obras de acordo com uma visão interior e desprezar aquilo que os olhos vêem no exterior; eu só “refilo” porque se trata de um livro de ensaios históricos – não estamos perante uma ficção. Trutas saltando à superfície do “rio”, assistindo admiradas à luta entre as duas mulheres, pode ser uma imagem surpreendente, mas é, também, uma imagem surrealista!
     O rio Minho pode não ter separado a língua, os sentimentos, os costumes, mas separou, isso todos sabem, os dois territórios: o português e o espanhol. O senhor Manuel Igrejas vai certamente corrigir-me, demonstrar a minha ignorância relatimente a esta minha leitura apressada; espero humildemente os seus esclarecimentos, pois um livro é um conjunto harmonioso e a capa faz parte integrante dele. Não quero pôr em causa o trabalho artístico, que considero extraordinário; quero apenas chamar a atenção para o desfasamento entre as figuras e o seu enquadramento histórico.
     Muito mais haveria a dizer deste livro. Desejo que muita gente o leia para depois falar. Desejo também que o senhor Padre Júlio continue a escrever sobre o seu e nosso Melgaço.

Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 991, de 15/8 a 1/9/1993.


Resposta

Ao amigo Joaquim A. da Rocha


     Querido conterrâneo: só o facto de você se referir ao desenho que ilustra a capa do livro do senhor padre Júlio «Na Terra de Inês Negra», detalhadamente e com observações críticas, já me satisfaz. A maior parte das pessoas a quem o livro chegue às mãos não terão esse cuidado e muito menos se importarão em saber do autor. Pois bem, não obstante as inúmeras «imprecisões» que observou, agrada-me saber que se deteve analisando aquele meu trabalho. Só por isso, obrigado. Estaria tudo dito, uma vez que o amigo mesmo deu a resposta: «É certo que o artista tem a liberdade de executar, de criar, as suas obras de acordo com uma visão interior e desprezar aquilo que os olhos vêem no exterior…» mas, como também pede um esclarecimento de minha parte, aí vai: aquela composição artística é uma alegoria. Naquele simbolismo não existiu a intenção de retratar a realidade histórica e geográfica, apenas sugerir alguns dos temas do livro. Aquele rio representa todos os cursos de água da nossa terra ricos em peixes e não especificamente o rio Minho. Assim sendo, não demarca coisa alguma; toda a extensão representada é uma região ilimitada, como ilimitado é o mundo para os melgacenses. A capelinha que o amigo se esforçou em identificar representa todas as capelas que, graças a Deus, existem no nosso concelho. Aliás, é minha marca: quando em meus desenhos vir um castelo indefinido quer dizer Portugal; e uma capelinha num outeiro que dizer Melgaço. Sempre que se enquadre incluo esses dois temas nas minhas composições artísticas. O castelo, realmente, é a partir do desenho de Duarte D’Armas, mas, como disse, sem a preocupação de reprodução fiel. A disposição dos objetos no desenho obedecem tão-somente a um EQUILÍBRIO VISUAL, não a qualquer obrigatoriedade realista. Uma vez, tinha eu catorze anos, o Mário (Aldemar, creio que era esse o seu verdadeiro nome), irmão do Armando do Buraco, grande pesquisador e escritor, pediu-me para lhe fazer uma pintura do terreiro com o castelo ao fundo. Eu fiz a aguarela e ele gostou, porém, criticou-me severamente por reproduzir a Praça da República (terreiro) tal como era – despida e cheia de regos da chuva. Que eu devia ter feito um lindo jardim com árvores e outros adornos. Ante a minha perplexidade ainda infantil disse que ao artista é permitido o privilégio de alterar de acordo com seu gosto e visão, quando não se trate de documento. Foi a primeira das poucas lições de arte que tive na minha vida.
     Amigo Joaquim: espero que as minhas justificações o satisfaçam; sem pretender mudar o seu ponto de vista, desejo que entenda o meu. Aproveito a oportunidade para fazer-lhe uma observação e um pedido: o tratamento de senhor que me dispensa frustra o meu propósito de relacionamento fraternal entre todos os melgacenses. Não me reconheço com capacidade e condição para ser tratado cerimoniosamente; pelo fator idade, pior ainda, será até uma ofensa à minha pretensa juventude espiritual.
     Queira-me bem, amigo Joaquim. Continue sendo o observador atento e crítico isento de tudo que acontece naquele nosso torrão. Um grande abraço.

                                       Manuel Félix Igrejas


Publicado no jornal A Voz de Melgaço n.º 993, de 1/10/1993.

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