domingo, 31 de janeiro de 2016

LEMBRANÇAS AMARGAS

romance

Por Joaquim A. Rocha



VII
   
     O amor e uma cabana são coisas do passado.


     Aos meus ouvidos chegaram rumores, zunzuns, de que a Bera dava troco ao Artur, recém-chegado de França; claro que os ciúmes, esse sentimento mesquinho e incontrolável, feroz, logo se manifestaram. Porém, ela, de momento, dissipará todas as minhas dúvidas. Ai as mulheres! São capazes de todos os sacrifícios, de todos os atos nobres, mas também são autoras de grandes perfídias! Aproximem-se:

- Bera, ouvi dizer que o filho da Teresa, que veio agora da França, te anda a arrastar a asa, é verdade?
- Esteve a falar comigo, esteve; disse-me que se quer casar, se eu conhecia uma rapariga que o quisesse, sabes que eles só têm um mês de férias, depois têm de se ir embora, eu disse-lhe que raparigas não faltam, é só ele querer, mais nada.
- Vê lá! Eu dentro de uns meses, como sabes, vou para o exército e botarei lá uns bons três anos; se não morrer na guerra das colónias, casaremos quando regressar; não quero perder-te. Nunca tive outra namorada, tu também só me tiveste a mim; não casamos ainda porque combinamos fazê-lo só depois de eu vir da tropa.
- Não estejas já com ciúmes, achas que te trocava por outro? É bem verdade que os emigrantes trazem francos, disse-me que tenciona comprar um terreno e começar a fazer uma casita, já tem um bom carro, e algum dinheiro no banco…, mas o dinheiro não é tudo, não se pode casar com alguém só por via dele, eu nunca faria isso, mas é verdade que há aí raparigas que não se importam, num mês metem a papelada e casam, depois vão com eles para França, coitadas, nunca tinham andado de «cú tremido», num carrinho bonito, nem sequer tinham ainda entrado num. É verdade que eu também não, mas não sou como elas; eu a ti não te trocava por nada deste mundo; dei-te já provas disso, e para mais agora que vais para a tropa, eu ainda tenho vergonha nesta cara.  
- Confio plenamente em ti; não imagino sequer o que seria a minha vida sabendo-te nos braços de outro, não sei se suportaria a dor, olha que só de pensar nisso fico doente, eu não fui para a França porque não arranjei os dez contos que o passador me pediu, ninguém mos emprestou, se não teria ido, se as coisas tivessem corrido de feição já poderíamos ser marido e mulher, mas não podia ir roubar, que eu sou honesto, prefiro ir cumprir com a minha obrigação, pode ser que tudo corra bem, há rapazes que nem vão fazer a guerra, e a maior parte dos que vão regressam; caramba, nem todos morrem, valha-nos essa certeza, alguns vêm sem braços e sem pernas, mutilados, coitados, esses ficam com a sua vida arruinada, nunca mais podem voltar a ser o que eram; fala-se que na Alemanha põem pernas e braços artificiais, mas não é a mesma coisa, preferia morrer a andar a arrastar o corpo pelas ruas, que Deus me perdoe a blasfémia e a arrogância.
- É preciso ter fé em Jesus e na Virgem, e olha que essa guerra pode acabar de um momento para o outro; as nossas forças armadas são bem mais fortes do que os terroristas e acabam com eles depressa, se calhar já nem será necessário ires lá, quem sabe!
- Também não me quero iludir, mas tudo é possível; por outro lado, e segundo dizem, nem todos os gentios estão contra nós, o governo afirma que a maior parte dos africanos são nossos irmãos e estão do nosso lado, esses, coitados, não querem a independência, esses querem ser portugueses. Pergunta ali ao João preto, o criado do Doutor Morais, que é natural de Angola, se ele não quer ser português, diz-te de pronto que é português do coração, ele já nem sequer sabe falar a língua dos seus irmãos de África, a língua dos indígenas.
- Nós devíamos ter realizado o casamento antes de tu ires embora para a tropa, eu agora ficava aqui com a tua mãe, apesar de ela não gostar muito de mim, coitada, já está caduca, e vai ficar sozinha, claro que virei aqui de vez em quando, mas não é a mesma coisa, se tivéssemos casado era diferente, era a nora dela, agora já é tarde, e tu também sempre disseste que só casavas comigo depois do regresso, é uma ideia fixa, até parece que não confias em mim.
- Lá estás tu com essas coisas, sabes bem que gosto de ti, nem sequer me passa pela cabeça gostar de outra, és o meu oásis neste triste deserto; desejo casar contigo, mas pode-me acontecer alguma coisa má quando for para a guerra, e não te quero deixar viúva.
- Se tu morreres, viúva fico eu; mesmo não sendo casada, tua esposa legítima! Cruzes, canhoto! Nem é bom falar nisso, mas se acontecesse eu não me queria mais casar, o diabo seja surdo e mudo.           
                   // continua...

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