domingo, 16 de agosto de 2020

ESCRITOS SOBRE MELGAÇO
 
Por Joaquim A. Rocha



VIVER A ARTE

(in memorian de Óscar Marinho)

 

     Todas as mortes nos causam tristeza, consternação, sobretudo as dos familiares, dos amigos, e também de alguns conhecidos, porque as dos outros, embora seres humanos como nós, devido em parte ao não conhecimento mútuo, apenas superficialmente nos atingem, aceitamos com naturalidade e resignação o seu afastamento deste mundo, onde o sublime e a mediocridade se cruzam, como peões num qualquer passeio de megalómana cidade. No que diz respeito aos amigos (não familiares, porque aí o amor sobrepõe-se à admiração, a entrega ao raciocínio, o sangue à crítica), é diferente: não mais poder falar com eles, trocar ideias, mostrar-lhes o nosso carinho e respeito, dizer-lhes amiúde quanto admiramos o seu caráter e a sua obra, afeta-nos profundamente.

     Tudo isto vem a propósito de Óscar Augusto Marinho, um dos maiores artistas do Minho, quiçá do país, na sua especialidade. O pormenor, aquele toque de mestre, de perfeccionista, dão à obra uma dimensão universal, sai fora do âmbito restrito do concelho ou da região. É exímio no que faz e releva os traços mais significativos do modelo. Não se trata de uma pura imitação, de uma cópia mais ou menos perfeita; trata-se de outra coisa, de algo que não existia e que ninguém, somente ele, pôde criar. São jóias raras e únicas, de uma qualidade inexcedível.

     Depois da sua morte é fácil elogiá-lo; porém, ele em vida teve esse privilégio. A sua obra foi exposta e reconhecida por todos aqueles que tiveram a sorte de a admirar.

     Quem é Óscar Marinho? Seus pais, Inocêncio José Marinho e Teresa de Jesus eram lavradores, ambos de Melgaço, onde casaram a 3/7/1905, tendo por testemunhas da boda os seus amigos Belchior Herculano da Rocha e João Batista dos Reis. Ele nasceu na Pigarra, Santa Maria da Porta, a 2/12/1911 e foi batizado na igreja matriz da vila pelo padre Manuel José Domingues. Teve por padrinhos Mário Teixeira Pinto, ainda solteiro, marchante, e Maria da Natividade Alves, lavradeira. Teve muitos irmãos: Adélia, Alexandrina Augusta, António Augusto, Artur José, Eliseu Cândido, Fausta Cândida, João, Josefina, e Vitalina. Foi uma criança normal: andou na escola primária e depois da quarta classe, tal como a maioria dos rapazes de Melgaço, teve de aprender um ofício. A escolha recaiu na latoaria de mestre Raul Ferreira Cardoso, um bom profissional no seu mester. Apesar dessa profissão de funileiro (e mais tarde picheleiro) lhe agradar, nela ter a possiblidade de expandir a sua imaginação, o que veio a provar posteriormente, entre 1928 e 1930, e aproveitando o facto de ter surgido na terra a banda dos Bombeiros Voluntários de Melgaço, juntamente com Aldemar, mais conhecido por “Mário de Prado”, recebeu lições de música de mestre Manuel Rodrigues Morais (1890-1971), hoje tão ignorado, esse homem que deu tantas glórias a Melgaço, e que soube enfrentar com extrema dignidade os poderosos da terra melgacense, tal como o terrível Dr. João Durães, entre outros, que procurou humilhá-lo, mas felizmente não o conseguiu.

     Óscar Marinho estreou-se na banda em 1931, tocando saxofone tenor. Devido à grande emigração, nos anos sessenta do século XX, a banda viu-se sem jovens, e os músicos mais idosos não conseguiram mantê-la, pelo que se extinguiu. O senhor Óscar, sem banda, não fez como outros antigos colegas que passaram a frequentar com alguma assiduidade as tabernas. Não: dedicou-se à sua grande paixão, à arte, agora já não a música, mas a miniatura de alguns monumentos concelhios.

     Na década de trinta casou com Isaura da Glória, filha de João Rodrigues Nabeiro e de Maria Joaquina Sacramento Lopes, uma excelente senhora, que durante algum tempo esteve à frente da «Pensão Minhota», estabelecimento que já fora de Alberto Barros de Sousa e de sua esposa, Virgínia Mendes.               

     Óscar Marinho enviuvou aos 76 anos de idade; depois, sozinho (o único filho, com o mesmo nome do pai, funcionário do Ministério da Justiça, não residia em Melgaço, embora aí fosse várias vezes no ano visitá-lo), continuou a criar as suas preciosas miniaturas, orgulhando-se delas, como uma criança se envaidece com o seu brinquedo predileto. Ao contrário do pintor Salvador Dali, artista excêntrico e paranóico, Óscar Marinho era uma mente sã, um homem equilibrado, quase tímido, uma personalidade forte, muito parecida à do escritor Miguel Torga. Trabalhava metodicamente, com disciplina, com perseverança. Tinha consciência de que a obra só aparece depois de muita dedicação, de trabalho sério, intenso. O talento ajuda, é essencial para que a obra seja obra de arte, mas o cérebro, a razão, tem de o domesticar, senão foge como o vento, fragmenta-se como a rocha em grãos de areia. O génio, esse mito de séculos, é tão raro como a flor que nasce num meio hostil, no árido deserto, ou no gélido Evereste.

    Não era pessoa de ressentimentos; julgo que nunca se zangou com ninguém, apesar do meio, pequeno e rural, alcoviteiro, o proporcionar. A sua postura humana, porém, não dava azo a essas atitudes menos refletidas e vulgares, porque a vulgaridade não fazia parte do seu mundo, onde a arte é deusa e a mesquinhez rasteja e vive como eterna sombra. Humilde era, decerto; mas não subserviente. Sabia que o dinheiro dá poder, mas também sabia que alguns indivíduos o possuíram sem que isso lhes trouxesse prestígio ou algum gozo intelectual; pelo contrário, viveram como broncos, nos obscuros subterrâneos do saber, isolados como verdadeiros proscritos.     

     Não peço aos políticos que lhe ergam uma estátua, ou que lhe dêem nome de praça ou rua, porque esses, salvo raras exceções, são pragmáticos: se virem que isso lhes interessa, até aos medíocres levantam pedestais; pelo contrário, se o momento não é oportuno, escudam-se numa ignorância bacoca. Fazem festas à “heroína”, que ninguém sabe se de facto existiu; mas às figuras históricas, reais, cobrem-nas quase sempre com gigantescas teias de silêncio. O artista não faz o que faz para no fim da sua vida ser recompensado, isso que fique bem claro; o verdadeiro criador não tem objetivos concretos sobre a sua obra, o importante é a criação em si, depois se verá. Há alguns artistas que precisam de dinheiro para sobreviver e vendem o que vão produzindo, mas só porque necessitam, caso contrário não se desfaziam das suas relíquias. No entanto, e deve ser a maioria, eles gostam de ser apreciados, do elogio e até da crítica, se for bem fundamentada. Não sei se a angústia conviveu com Óscar Marinho. É quase fatal o artista interrogar-se: - «Que vou fazer com a minha obra? Será que os outros gostam dela?» E que lhe interessa isso, a ele, ou a ela, que vai partir para o além? A resposta é simples: o artista não morre, porque a arte é eterna.

 

Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 1164, de 15/7/2001.
 
 
 
 
 
 
 

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