ESCRITOS SOBRE MELGAÇO
Por Joaquim A. Rocha
VIVER A ARTE
(in memorian de Óscar Marinho)
Todas as mortes nos causam tristeza,
consternação, sobretudo as dos familiares, dos amigos, e também de alguns
conhecidos, porque as dos outros, embora seres humanos como nós, devido em
parte ao não conhecimento mútuo, apenas superficialmente nos atingem, aceitamos
com naturalidade e resignação o seu afastamento deste mundo, onde o sublime e a
mediocridade se cruzam, como peões num qualquer passeio de megalómana cidade.
No que diz respeito aos amigos (não familiares, porque aí o amor sobrepõe-se à
admiração, a entrega ao raciocínio, o sangue à crítica), é diferente: não mais
poder falar com eles, trocar ideias, mostrar-lhes o nosso carinho e respeito,
dizer-lhes amiúde quanto admiramos o seu caráter e a sua obra, afeta-nos
profundamente.
Tudo isto vem a propósito de Óscar Augusto
Marinho, um dos maiores artistas do Minho, quiçá do país, na sua especialidade.
O pormenor, aquele toque de mestre, de perfeccionista, dão à obra uma dimensão
universal, sai fora do âmbito restrito do concelho ou da região. É exímio no
que faz e releva os traços mais significativos do modelo. Não se trata de uma
pura imitação, de uma cópia mais ou menos perfeita; trata-se de outra coisa, de
algo que não existia e que ninguém, somente ele, pôde criar. São jóias raras e
únicas, de uma qualidade inexcedível.
Depois da sua morte é fácil elogiá-lo; porém,
ele em vida teve esse privilégio. A sua obra foi exposta e reconhecida por
todos aqueles que tiveram a sorte de a admirar.
Quem é Óscar Marinho? Seus pais, Inocêncio
José Marinho e Teresa de Jesus eram lavradores, ambos de Melgaço, onde casaram a
3/7/1905, tendo por testemunhas da boda os seus amigos Belchior Herculano da
Rocha e João Batista dos Reis. Ele nasceu na Pigarra, Santa Maria da Porta, a
2/12/1911 e foi batizado na igreja matriz da vila pelo padre Manuel José Domingues.
Teve por padrinhos Mário Teixeira Pinto, ainda solteiro, marchante, e Maria da
Natividade Alves, lavradeira. Teve muitos irmãos: Adélia, Alexandrina Augusta,
António Augusto, Artur José, Eliseu Cândido, Fausta Cândida, João, Josefina, e
Vitalina. Foi uma criança normal: andou na escola primária e depois da quarta
classe, tal como a maioria dos rapazes de Melgaço, teve de aprender um ofício.
A escolha recaiu na latoaria de mestre Raul Ferreira Cardoso, um bom
profissional no seu mester. Apesar dessa profissão de funileiro (e mais tarde
picheleiro) lhe agradar, nela ter a possiblidade de expandir a sua imaginação,
o que veio a provar posteriormente, entre 1928 e 1930, e aproveitando o facto
de ter surgido na terra a banda dos Bombeiros Voluntários de Melgaço, juntamente
com Aldemar, mais conhecido por “Mário de Prado”, recebeu lições de música de
mestre Manuel Rodrigues Morais (1890-1971), hoje tão ignorado, esse homem que
deu tantas glórias a Melgaço, e que soube enfrentar com extrema dignidade os
poderosos da terra melgacense, tal como o terrível Dr. João Durães, entre
outros, que procurou humilhá-lo, mas felizmente não o conseguiu.
Óscar Marinho estreou-se na banda em 1931,
tocando saxofone tenor. Devido à grande emigração, nos anos sessenta do século
XX, a banda viu-se sem jovens, e os músicos mais idosos não conseguiram
mantê-la, pelo que se extinguiu. O senhor Óscar, sem banda, não fez como outros
antigos colegas que passaram a frequentar com alguma assiduidade as tabernas.
Não: dedicou-se à sua grande paixão, à arte, agora já não a música, mas a miniatura
de alguns monumentos concelhios.
Na década de trinta casou com Isaura da
Glória, filha de João Rodrigues Nabeiro e de Maria Joaquina Sacramento Lopes,
uma excelente senhora, que durante algum tempo esteve à frente da «Pensão Minhota»,
estabelecimento que já fora de Alberto Barros de Sousa e de sua esposa,
Virgínia Mendes.
Óscar Marinho enviuvou aos 76 anos de
idade; depois, sozinho (o único filho, com o mesmo nome do pai, funcionário do
Ministério da Justiça, não residia em Melgaço, embora aí fosse várias vezes no
ano visitá-lo), continuou a criar as suas preciosas miniaturas, orgulhando-se
delas, como uma criança se envaidece com o seu brinquedo predileto. Ao
contrário do pintor Salvador Dali, artista excêntrico e paranóico, Óscar Marinho
era uma mente sã, um homem equilibrado, quase tímido, uma personalidade forte,
muito parecida à do escritor Miguel Torga. Trabalhava metodicamente, com
disciplina, com perseverança. Tinha consciência de que a obra só aparece depois
de muita dedicação, de trabalho sério, intenso. O talento ajuda, é essencial
para que a obra seja obra de arte, mas o cérebro, a razão, tem de o domesticar,
senão foge como o vento, fragmenta-se como a rocha em grãos de areia. O génio,
esse mito de séculos, é tão raro como a flor que nasce num meio hostil, no
árido deserto, ou no gélido Evereste.
Não era pessoa de ressentimentos; julgo que
nunca se zangou com ninguém, apesar do meio, pequeno e rural, alcoviteiro, o
proporcionar. A sua postura humana, porém, não dava azo a essas atitudes menos
refletidas e vulgares, porque a vulgaridade não fazia parte do seu mundo, onde
a arte é deusa e a mesquinhez rasteja e vive como eterna sombra. Humilde era,
decerto; mas não subserviente. Sabia que o dinheiro dá poder, mas também sabia
que alguns indivíduos o possuíram sem que isso lhes trouxesse prestígio ou
algum gozo intelectual; pelo contrário, viveram como broncos, nos obscuros
subterrâneos do saber, isolados como verdadeiros proscritos.
Não peço aos políticos que lhe ergam uma
estátua, ou que lhe dêem nome de praça ou rua, porque esses, salvo raras
exceções, são pragmáticos: se virem que isso lhes interessa, até aos medíocres
levantam pedestais; pelo contrário, se o momento não é oportuno, escudam-se
numa ignorância bacoca. Fazem festas à “heroína”, que ninguém sabe se de facto
existiu; mas às figuras históricas, reais, cobrem-nas quase sempre com gigantescas
teias de silêncio. O artista não faz o que faz para no fim da sua vida ser
recompensado, isso que fique bem claro; o verdadeiro criador não tem objetivos concretos
sobre a sua obra, o importante é a criação em si, depois se verá. Há alguns
artistas que precisam de dinheiro para sobreviver e vendem o que vão produzindo,
mas só porque necessitam, caso contrário não se desfaziam das suas relíquias.
No entanto, e deve ser a maioria, eles gostam de ser apreciados, do elogio e
até da crítica, se for bem fundamentada. Não sei se a angústia conviveu com Óscar
Marinho. É quase fatal o artista interrogar-se: - «Que vou fazer com a minha obra? Será que os outros gostam dela?» E
que lhe interessa isso, a ele, ou a ela, que vai partir para o além? A resposta
é simples: o artista não morre, porque a arte é eterna.
Artigo publicado em A Voz de Melgaço n.º 1164, de 15/7/2001.
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