LEMBRANÇAS AMARGAS
romance
Por Joaquim A. Rocha
XXXII
Depois do
naufrágio qualquer tábua serve
Mais um ato de solidariedade: sabendo que o meu idoso avô paterno ficaria desamparado quando eu ingressasse na vida militar, procurei acomodá-lo o melhor possível. Todos têm conhecimento que os antigos asilos eram desconfortáveis e pouco higiénicos, mas evitavam, apesar de tudo, que os anciãos morressem na rua, à chuva e ao vento; por outro lado, sempre iam tendo algo para comer, e uma modesta enxerga para dormir. Ao longo dos séculos, os velhos, sobretudo aqueles que nada tinham para legar aos parentes depois da sua morte, foram quase sempre tratados com desprezo, atirados ao lixo como trastes inúteis. Felizmente as coisas têm vindo a melhorar. Venham então acompanhar os meus passos:
- Senhor Provedor,
vinha aqui pedir-lhe, pela alma de que lá tem, um grande favor, uma esmola.
- Diz lá, Cândido.
Aconteceu alguma coisa de grave?!
- É que tenho comigo o
meu avô, pai do meu pai, o senhor Agostinho; andava por aí a mendigar, e eu
meti-o em casa, sabe como é, um caldinho e um bocado de broa com toucinho
sempre se vai arranjando, mas agora vou para a tropa, já estou apurado, e não
posso deixá-lo sozinho em casa, a minha mãe vai todos os dias para as aldeias,
aquele maldito vício, morria à fome, quase que já não pode andar; eu sei que no
asilo são bem tratados, não lhes falta nada.
- Faz-se o que se pode,
meu rapaz. De facto a vossa situação é melindrosa, a Santa Casa da Misericórdia
procura socorrer todos os indigentes, mas nesta altura não há nenhuma vaga,
nenhuma cama disponível, vai passando, pode ser que antes de ires para a vida
militar se consiga alguma coisa, não te garanto nada, a tua mãe é que podia
tomar conta dele, mas leva aquela vida.
- Com a minha mãe não
se pode contar: não tem dinheiro nem paciência para tratar de idosos; e a
tropa, por causa da guerra em África, dura pelo menos três longos anos, eu não
gostaria de ver novamente o velhote pedir esmola pelas ruas e a dormir ao
relento; se eu tivesse cabedal pagava a alguém que tomasse conta dele, mas não
tenho.
- O teu avô, quantos
filhos tem?
- Apenas um, o meu pai,
mas quando eu nasci ele foi para Espanha; casou com uma galega, e nunca mais
veio para Portugal. Esqueceu-se completamente de seus pais e da terra que o viu
nascer!
- E a tua avó, a mulher
dele?
- Morreu há dois anos;
foi por isso que ele teve de abandonar os terrenos do patrão e começar a pedir
esmola pelas portas; não tem casa, nem família, ele nem sequer me conhecia, foi
a minha mãe que me disse que ele é meu avô.
- Vamos lá ver se
remediamos a situação, não te prometo nada, vai passando por aqui.
- Obrigado, muito
obrigado, senhor Provedor, que Deus lhe pague.
Algum tempo depois:
- Avô, estive a
conversar com o senhor provedor da Misericórdia, a pedir-lhe para o meter no
asilo; aquilo não é nenhum hotel, mas é melhor do que andar por aí, eu dentro em
pouco tempo tenho de ir para o exército.
- É o destino, meu
neto, é o destino! Agora que eu estava aqui tão bem contigo, que podia ter um
fim de vida tranquilo, sossegado, vais-te embora e eu serei metido naquele
casarão de velhos abandonados, quase uma prisão, e – segundo dizem – as criadas
sempre a ralhar, não gostam de limpar a porcaria deles, mas para isso são
pagas, que limpem, se alguém pede auxílio de noite bem pode morrer que elas não
se importam, é o que comentam por aí, eu nunca lá estive.
- Sabe que às vezes
diz-se mais do que aquilo que é; não acredito que as empregadas tratem mal os
idosos, que não chamem as enfermeiras e médicos quando eles estão doentes; não
acredito! As pessoas desta esquecida terra só sabem dizer mal, é raríssimo
ouvirmos dizer bem, seja de quem for. Se alguém for generoso, logo se diz que
está a fingir; se for mau, maldizente, gabam a sua atitude, mas pelas costas
tecem-lhe as piores diatribes. Trata-se de uma deficiente formação, de pura
hipocrisia; a maior parte das pessoas não têm educação, são grosseiras e
medíocres, vis, mas depois vão-se confessar ao sacerdote, tomam a hóstia, e
ficam aptas a repetir os pecados anteriormente repetidos.
- Tens razão, meu
querido neto. Nós não temos escola, vivemos sempre no meio de animais,
comportamo-nos pior do que eles; como nada temos de nosso, somos invejosos dos
bens dos outros; mas que queres, não podemos mudar as coisas.
- É verdade. A chamada classe
humilde pouco ou nada pode mudar, não tem forças, nem capacidade, nem meios
para o conseguir; esperemos que Deus se compadeça de nós, só ele nos poderá
valer.
- Deus também já deve
estar cansado da gente, passamos uma vida a mendigar-lhe coisas, só sabemos
pedir, pedir…
- Em troca da nossa
alma; Deus sabe que o adoramos.
- E o senhor provedor,
deu-te esperanças?
- Mandou-me passar por
lá de vez em quando, parece que neste momento não há vaga, as camas estão todas
ocupadas, pode ser que se consiga uma antes de eu ir para a tropa.
- É possível que um dia
destes morra um desses velhos para eu lhe ir ocupar a enxerga.
- Não se pode pensar
assim, avô; uns morrem, outros nascem, é assim o ciclo da vida.
- Quando se é novo não
se pensa na morte, mas ao chegar à minha idade começa-se a ver-lhe a sombra,
ela aproxima-se velozmente, mais rápida do que uma lebre, de foice afiada nas
esqueléticas mãos, e nós não lhe podemos fugir, nem escapar, pois o seu poder é
imenso. A tua avó sofreu muito antes de deixar este mundo; passei noites e
noites à sua cabeceira, ela delirava, não dizia coisa com coisa, eu estava a
ver que ficava também enfermo, os campos ficaram por cultivar, o dono das
terras já andava em cima de mim: «se não
podes lavrar a terra, vai-te embora!» Como podia eu ir embora se tinha a
mulher a morrer-me; eu já sem alentos, ali isolado, sem vizinhos, perdido
naqueles campos.
- Na verdade vocês
estavam isolados, só campos e monte.
- Os vizinhos mais
próximos ficavam a muitos metros de distância, quase um quilómetro! O Olavo
Augusto não gostava de viver ali, por isso é que ele se foi embora para Espanha,
pedia-me para mudarmos, também para se ver livre da tua mãe, estava farto dela,
não o largava, aquelas cenas de ciúme, receava que ele a trocasse por outra;
mas eu já estava acostumado ao lugar, foram muitos anos, e quando se é novo
depressa se vai aqui e ali.
- O seu filho não
gostava da minha mãe?!
- No princípio sim, foi
a primeira mulher que ele teve, não falava noutra coisa, a Matilde para aqui, a
Matilde para acolá, mas depois aborreceu-se, sabes como é: mais velha, já com
filhos, com uma filha quase da idade dele, toda a gente lhe tirou a ideia da
cabeça. Hoje estou arrependido, pelo menos tinha-o perto de mim, e a tua mãe
comportava-se melhor; assim, fiquei sem ele e dei cabo da vossa vida.
- Tudo acontece por
vontade de Deus.
- Tudo talvez não, os
homens fazem muitas asneiras, amiúde vão contra as leis do Senhor, por exemplo,
quando foi a guerra civil de Espanha, como eu morava perto da raia, de vez em
quando ouvia os tiros, matavam-se uns aos outros, não respeitavam sequer os
familiares, ali bem perto um soldado do general Franco veio matar o próprio
pai, um civil, só porque era republicano. Alguns galegos ainda se refugiaram na
minha casa, depois partiram para o sul, coitados deles, se não fugissem eram
abatidos como cães, o caudilho, como era conhecido, não perdoava a ninguém;
dizem que os alemães do Hitler o ajudaram muito.
- Com aviões…
- Aviões e tropa; os
republicanos e os comunistas não se aguentaram.
- Os portugueses não se
meteram?
- Dizem que também lá
andavam de um lado e de outro; eram voluntários, que a guerra era só entre
espanhóis.
- Foi por essa altura
que começou o contrabando...
- Eu nunca me envolvi
nisso, receava ser preso ou apanhar um tiro; o teu pai é que fez algum
dinheiro, mas só transportava coisas pequerruchas – uns quilos de café, sabão,
pedras de isqueiro, azeite, e pouco mais. Eu tinha um medo enorme que
aparecesse a guarda, mas o Olavo Augusto dizia-me que eles também andavam
metidos nisso!
- E, segundo consta,
aqueles guardas que não andavam a contrabandear recebiam dinheiro para fechar
os olhos.
- Contrabandeava-se
muito, é verdade, alguns fulanos encheram-se bem, mas olha que lhes deve pesar
a consciência, parece que cometeram muita baixeza. Uma altura, venderam tripas
aos galegos, para eles fazerem fumeiro, mas as tripas já estavam estragadas,
podres! Foram reclamar ao vendedor e este disse-lhes que as devolvessem se
queriam reaver o dinheiro; quando o fizeram, foram apanhados pelos
guardas-fiscais. Claro que tinham sido denunciados!
- Diz-se tanta coisa; o
que é certo, é que eles andam por aí à vontade, sem constrangimentos, até
parece que são os senhores do mundo!
- De outra vez venderam
latas de azeite, mas sabes o que elas continham? Oitenta por cento de água! O
azeite só aparecia por cima. E pedras de isqueiro? Metade era arame! Tinha o
mesmo tamanho e a cor das pedras!
- Ladrões! Quando
morrerem vão para o inferno.
- Não sei, meu neto,
não sei. No inferno vivemos nós por causa deles e de outros.
// continua...
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