DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO DE MELGAÇO
Por Joaquim A. Rocha
(1930) – Crime de Castro Laboreiro. Por mais
voltas que se dê à nossa imaginação, jamais algum dia esperaríamos deparar com
um assassínio numa aldeia remota do país, onde todos se conhecem, se respeitam,
ou se temem – onde todos, ao fim, e ao cabo, são uma família. Porém, naquele
dia fatídico, a insaciável esposa de Belzebu, já cansada de aguardar,
reivindicou a sua presa. Aquelas pessoas, os assassinos, não eram gente má. A
sua vida, marcada pelo labor duro e ingrato, estava isenta de máculas. Iam
todos os domingos à missa, e confessavam ao cura os seus pecados – coisas de
somenos. Davam o seu melhor à comunidade, cumpriam escrupulosamente os seus
deveres, recebiam em troca apenas aquilo a que tinham direito. Para quê matar,
se os conflitos surgidos se resolviam com uma simples discussão, uma pequena
cedência, ou por vezes – raras – com umas pauladas, ou vergastadas, dadas
naqueles lombos habituados a sofrer até à exaustão. Longe iam os tempos da
Inquisição, em que os membros da igreja católica, todo-poderosos, metiam nos
cárceres, ou queimavam na fogueira, aqueles que se lhes opunham, ou de quem não
gostavam. Os tempos eram outros. Contudo, os atos menos nobres dos seres
humanos são como as tempestades: surgem de repente, tudo arrasa, e logo a
seguir tudo acalma, a mente adormece, nasce o silêncio inquietante, apenas
restam os destroços, pequenos fragmentos espalhados ao acaso. / Naquela
madrugada do dia 20/5/1930 António José Domingues, mais conhecido por
“Soajo”, de 50 anos, acorda cedo e chama a sua companheira de escala, Maria
Gonçalves, de 23 anos, do Ribeiro de Cima, para juntos irem apascentar o gado.
Antes de partirem manjam a habitual água de unto, com aquele delicioso pão
castrejo, mantendo em sossego aqueles estômagos por algumas horas. O corpulento
cão de raça já acordara, e mostrava-se impaciente por partir para aquelas
pastagens com o “seu” rebanho. Habituara-se àquele ritual: todas as manhãs,
muito cedo, um homem e uma mulher da comunidade vinham chamá-lo para os
acompanhar, e para os defender, caso fosse necessário. Especializara-se em
guardar o rebanho, em mantê-lo em respeito, não admitia desobediências nem
deserções – se levasse cem cabeças para o monte, esse exacto número teria que
voltar com ele; às vezes até voltavam mais, pois as fêmeas não iam à
maternidade parir, pariam ali, no monte, como se fosse a coisa mais banal do
mundo, sem parteira por perto. / Há um ditado antigo que diz assim: «o homem põe e a divindade dispõe.» Pois
é: nesse dia só regressa do pasto a rapariga. Os vizinhos, estupefactos,
boquiabertos, perguntam-lhe: - «e Antônio?» «Que é feito de Antônio?!» / O
tempo foi passando e nada de aparecer o pastor. Alguns habitantes do lugar,
inquietos, augurando o pior, decidem ir à procura do desaparecido. Procuram,
chamam, nada! Regressam, altas horas, já com a luz diurna, deveras desiludidos.
Participam o evento à autoridade. São enviados dois cabos de polícia (nessa
altura, em virtude de um conflito surgido entre a administração do concelho e a
GNR, esta teve que ir embora), sendo um deles o perspicaz “Manuel Pintor”.
Inteiram-se imediatamente do que se passou e depressa se apercebem que a jovem
pastora devia saber muito mais do que aquilo que timidamente revelara.
Obrigam-na a acompanhá-los ao monte; pelo caminho iam-na interrogando. Em
princípio negou mas, apertada, entrou em grosseiras contradições. Resolve
contar tudo: fora seu primo quem assassinara, à pedrada, o pobre “Soajo”. O corpo
da vítima encontrava-se no sítio designado a Cova do Ladrão. Dirigiram-se
imediatamente para o local e depressa descobriram o cadáver. Estava coberto de
ervas e urzes. Comunicaram o sucedido à sede do concelho, que ficava quase a 20
km de distância, e logo que foi possível um carro puxado a animais transportou
o corpo para o hospital da SCMM, onde foi submetido a autópsia. «Apresentava-se horrorosamente martirizado,
com contusões enormes nos braços, no peito e na cabeça, e com onze facadas,
sendo uma no pescoço e outras pelo peito, que atravessaram o coração e pulmões.»
/ Iniciaram-se as inevitáveis investigações, e os agentes policiais chegaram à
seguinte conclusão: o “Soajo” andava de relações cortadas, havia já um ano, com
Constantino Xavier e esposa, e com Manuel António Bernardo (o Redondo), e com a companheira deste, Rosa Gonçalves. O motivo da zanga era
normal: uma questão de águas de rega com os primeiros, e uma servidão com os
segundos. António José pedira uma opinião, por escrito, à Direção das Hidráulicas,
e essa entidade deu-lhe razão, pelo que os outros ficaram furiosos e juraram
vingar-se. Elaboraram um hábil plano, mas como sabiam que o adversário era um
latagão, teriam que arranjar alguém de fora, um indivíduo habituado a bater,
para lhe dar, enfim, um corretivo. Não o queriam matar, apenas aplicar-lhe uma
tareia que lhe servisse de lição. Lembraram-se daquele valente da Peneda, o
Manuel José de Sousa, cuja fama de brigão correra já aquelas serras de fio, a
pavio. O Redondo, em Abril, foi ter com ele, mas aconteceu o imprevisto: o
Sousa disse-lhe que não dava coças a quem não conhecia nem mal algum lhe
fizera; tinha a sua maneira própria de agir, a sua ética, o seu código de
honra. O grupo ficou irritado. Tinham que encontrar uma solução – o Domingues
não se riria deles. A Rosa abordou a mulher do Constantino, Amélia Gonçalves, e
sugeriu-lhe que insistisse com o seu marido para ir convencer o tal Sousa, e se
ele recusasse então recorreriam ao Félix da Rosa, também da Gavieira, menos
escrupuloso do que aquele. Manuel António dirigiu-se, no dia 18/5/1930, à
Peneda e fez novamente o convite ao Sousa, oferecendo-lhe uma nota das grandes.
A resposta foi perentória: não! / Regressou ao Ribeiro de Cima com o rabo entre
as pernas – a sua diplomacia não fora suficiente para convencer o lutador. /
Reuniram o grupo e tomaram uma decisão: seriam eles a malhar no conterrâneo.
Escolheram o dia vinte desse mês, dia em que o “Soajo” haveria de ir para o
monte com o gado. A Amélia combinou com o marido irem à tarde ao monte darem
umas pauladas ao seu inimigo. O plano era simples e eficaz. Para encontrar um
álibi o Constantino, com o Bernardo e a sua amante, iriam à vila de Castro. O
primeiro solicitava uma licença para cortar madeira no monte baldio, os
segundos pagariam a multa provocada pela desavença. No regresso partiram para o
monte. Já lá estava Amélia com a pastora. Dissera-lhe ao que ia. Ela não
concordou, até simpatizava com o companheiro de ofício, tinha o seu feitio mas
não era mau diabo. Contudo, ameaçada de morte, viu-se obrigada a participar.
Foi ela a primeira a achegar-se ao pastor. Este de nada desconfiou. Maria,
rodeando-o, como uma especialista no jogo do pau, espeta-lhe duas pauladas na
cabeça, ficando o pobre homem a cambalear. Como era forte como um touro,
depressa se recompôs. Tirou o pau à moça e tentou agredi-la, assim como a
Amélia, pois verificou que elas não estavam a brincar. Estas retiram-se,
atirando pedras e mais pedras. Ele, vendo que as mulheres se afastaram, começa
a correr em direção a sua casa, a fim de tratar da cabeça, que muito lhe doía.
Porém, quando chega à Lapa do Ladrão, à sua espera estava a matilha. Amélia,
que ficara ferida na rixa, tira do bolso uma faca e entrega-a ao marido,
exigindo-lhe que mate o “Soajo”, pois de contrário ele matá-los-ia. Constantino
não hesita: espeta a naifa na garganta da vítima. Este tenta defender-se, mas
vê-se manietado, enquanto o agressor o esfaqueia sem dó nem piedade. Quando a
vítima já estava a despedir-se deste mundo, numa agonia indescritível, o
energúmeno passa a faca a Maria, obrigando-a a dar-lhe duas facadas – assim não
haveria ali inocentes, todos, sem excepção, eram culpados e cúmplices daquela
chacina brutal, selvagem, sem explicação racional. / Depois de levarem o
cadáver para o tal buraco, dispersaram; somente Maria, atordoada, incrédula,
ficou, a fim de conduzir os animais para a corte. O pobre cão ladrava, quase
chorando! Quando a rapariga chegou ao lugar, sem o companheiro, e
perguntando-lhe os vizinhos por ele respondeu meio a brincar, meio a sério,
aparvalhada, que fora comido pelo lobo. Ela fugira! / Se não fora a
persistência do “Manuel Pintor“ talvez ainda hoje não conhecêssemos o nome dos
canalhas, nem a causa daquela horrível morte. / Numa das salas do edifício dos
Paços do Concelho, inaugurado em 1931, decorreu o julgamento. Os juízes, Manuel
Faria Sampaio, António Baltazar Pereira e Jaime Fontes, depois de um ano de
intenso trabalho, preparavam-se para ler as sentenças. A acusação pública
estava a cargo do Dr. António de Almeida Moura; a particular coube ao Dr.
António Francisco de Sousa Araújo. A defesa dos réus foi assegurada pelo Dr.
Francisco de Sá Tinoco, advogado de Braga. Como se esperava, foram todos
condenados a oito anos de prisão maior, seguidos de doze anos de degredo, ou na
alternativa a 25 anos de degredo, e 1.800$00 de imposto de justiça, cada um,
com exceção de Maria Gonçalves, que pagaria 800$00, e todos solidariamente em
10.000$00 de indemnização à queixosa. E desta maneira, inesperadamente, como
num filme de terror, famílias honradas transformaram-se em criminosos! // (ver NM 62, de 25/7/1930; NM 99, de 1/3/1931; NM 101, de 15/3/1931; NM
102, de 22/3/1931; NM 107, de 3/5/1931; NM 114, de 21/6/1931). //
Publicado em Fronteira Notícias n.º 7, de 10/1/2005.
(1933) - SOUSA, José. // Nasceu por volta de 1880.
// Lê-se no Notícias de Melgaço n.º 179, de 8/1/1933: «no dia 6 do corrente, por uma questiúncula sem importância, no lugar da
Eira, freguesia de Rouças, José de Sousa, casado, vibrou três facadas no seu
vizinho [António Manuel] Fernandes, também casado, em vários pontos do corpo,
cujas facadas são de tal gravidade que o ferido se obrigou a recolher ao
hospital da Misericórdia desta Vila. O caso já foi participado em Juízo, a fim
de receber o respetivo corretivo o autor de tal proeza.» // E pode ler-se
no Notícias de Melgaço n.º 180, de 22/1/1933: «Foi preso no dia 11, na fronteira, no sítio denominado Frieira, pela
polícia internacional, José de Sousa, que – como o Notícias de Melgaço já
noticiou – assassinou à facada no dia 6 deste mês António Manuel Fernandes, no
sítio do Codessal, freguesia de Rouças. O assassino declarou à autoridade que
no dia do crime se encontrava de guarda à água que destinava a uma propriedade
e que a certa altura apareceu o pai do Fernandes que se dispunha a desviar a
água para uma propriedade sua. Ambos, após uma troca de palavras, envolveram-se
em desordem, chegando o Sousa a arremessar o sacho ao pai do Fernandes, que se
pôs em fuga, e foi contar ao filho o que se passava. Este dirigiu-se ao
encontro do Sousa para lhe pedir uma satisfação. O criminoso, ao ver o
Fernandes, que estava munido de um pau, pousou o sacho que tinha ao ombro e
disse-lhe –> “António, por Deus, não te chegues a mim, porque fazes a tua
desgraça e a minha.” Após estas palavras o Fernandes lançou-se sobre o Sousa.
Este, que estava munido de uma navalha, deu-lhe uma facada na região
epigástrica, e como o Fernandes não o largasse vibrou-lhe mais duas facadas nas
costas. Aos gritos de socorro acudiu Manuel Domingues, do lugar da Cela, que os
apartou. O ferido foi depois conduzido para o hospital da Misericórdia, onde
faleceu no passado dia 9. O Sousa fugiu para casa, seguindo depois para
Espanha, onde costumava trabalhar de pedreiro, e ali esteve até ser preso.»
// Lê-se também no Notícias de Melgaço n.º 189, de 2/4/1933:
«No tribunal desta comarca respondeu no dia 28 do mês passado José de Sousa,
casado, de 53 anos de idade, acusado de ter assassinado à facada na noite de 6
de Janeiro próximo passado, António Manuel Fernandes, no sítio do Codessal,
freguesia de Rouças… O tribunal foi constituído pelos meritíssimos juízes desta
comarca, de Monção e de Valença, respetivamente doutores José Luís de Almeida,
António Baltazar Pereira, e Manuel Faria Sampaio. O Ministério Público estava
representado pelo senhor Dr. António de Almeida Moura, estando a acusação
particular a cargo do nosso conterrâneo senhor Dr. António Francisco de Sousa
Araújo, advogado na comarca de Monção, e a defesa confiada ao senhor Dr. Henrique
da Rocha Fernandes Pinto, advogado em Lisboa. Foi aberta a audiência às 12
horas, encontrando-se o tribunal repleto de gente. Depois das formalidades da
praxe iniciou-se a inquirição das testemunhas - que pouca luz fez sobre o crime
-, à excepção do reverendo abade de Chaviães, e de José e Manuel Domingues. A
testemunha Manuel Domingues – única de vista – deu a impressão, no seu
nervosismo excessivo, que não dizia tudo que sabia, limitando-se a meia dúzia
de palavras, que não ficaram esclarecidas como verdadeiras. Instado pelo senhor
presidente e pelo digno agente do Ministério Público, respondeu bruscamente: «não sei mais senhor… já disse… já disse.»
Acareado com o réu, manteve o que tinha dito. Frases da testemunha Manuel
Lourenço «não atendi quase nada para não
ter que dizer – não afirmo mais que a minha opinião me manda.» O reverendo
abade de Chaviães e capelão do hospital da Misericórdia, tendo conversado
particularmente com a vítima no hospital, pouco antes de ela falecer,
reproduziu ao tribunal a afirmação por aquela feita, em que se salientava o
seguinte: «o meu pai, após a discussão
com o Sousa, veio chamar-me e eu corri armado dum fueiro com que o agredi, e
teria dado a matar se soubesse que ele me picava.» Como este facto tinha
sido negado pelo pai do Fernandes e pela viúva, foram estes acareados com a
testemunha, tendo-se o pai retratado. Às 15.55 foi interrompida a audiência por
quinze minutos para descanso do tribunal. Reaberta a audiência, foram
prescindidas as testemunhas que ainda faltavam para depor, e o ilustre advogado
de defesa requereu para serem ouvidos os peritos que tinham procedido à
autópsia. Não se tendo oposto o digno agente do Ministério Público, nem a
acusação particular, os senhores doutores António Esteves e Cândido de Sá
prestaram declarações muito interessantes e de valor científico. Seguiram-se os
debates: tanto a acusação como a defesa foram brilhantes. Às vinte horas foi
proferida a sentença, que condenou o réu a dois anos de prisão correcional,
dois anos de multa a dois escudos por dia, 1.500$00 de imposto de justiça, e
10.000$00 de indemnização à família da vítima. Lida a sentença o senhor juiz
presidente disse que o tribunal tinha sido muito benevolente para com o réu
atendendo ao seu passado honesto, um passado longo, e também à afirmação de um
moribundo, feita a um sacerdote. Aconselhou o réu a que continuasse a ser um
homem de bem e que evitasse nunca mais vir a um tribunal por um caso idêntico.
O réu chorava copiosamente.»
Sem comentários:
Enviar um comentário