LINA - FILHA DE PÃ
romance
Por Joaquim A. Rocha
desenho de Rui Nunes |
11.º Capítulo
Lisete acordou. Estava numa das camas do
Hospital da Santa Casa da Misericórdia. A sala teria trinta, quarenta metros
quadrados; do lado direito e do lado esquerdo dela viam-se várias mulheres,
novas e velhas, com doenças diversas. A luz penetrava por duas janelas
gigantescas. A enfermeira, irmã da caridade, sorriu para a mocita e disse-lhe:
- Então, minha
querida, já estás melhor? Vou mandar-te servir uma canjinha, deves estar faminta,
já não comes há umas horas. Vamos ver essa febre.
Estava a ficar normal; as cores do rosto
voltavam pouco a pouco, aqueles olhos lindos voltavam a ganhar vida.
- Senhora
enfermeira, quando saio do Hospital? Tenho de ir trabalhar no Hotel.
- Logo que
melhores. Amanhã, ou depois de amanhã já poderás sair, julgo eu; mas essa
decisão pertence somente ao Senhor Doutor Zacarias, o diretor do Hospital.
Tiveste um grande choque emocional. E não era caso para menos!
- O que é o
destino: encontrar o meu pai nas Termas! E ele, já se foi embora?
- Tontinha. Achas
que o Senhor Juiz Conselheiro ia embora sem ti? Ainda há pouco tempo esteve
aqui, a contemplar-te. Já foi falar com a tua avó materna, quer que vás estudar
para a cidade.
- Ir com ele?! E
onde vive?
- Segundo disse,
mora em Coimbra, na cidade dos doutores. Vais ver que ainda virás a ser uma
senhora importante!
- Não sei, não
gostava de deixar a minha querida avozinha. Tem sido para mim mãe e avó.
- Depois vens
visitá-la; ela vai ficar muito orgulhosa de ti.
De facto o pai de Lisete falara com a
esposa e contara-lhe toda a história, omitindo muitas coisas, obviamente, imensos
pormenores, sobretudo tudo aquilo que mais o comprometeria: «fora uma fraqueza humana, eu nem sequer
sabia que a criada ficara grávida, enfim uma tragédia que era necessário
reparar» - dissera-lhe ele. Agora era preciso corrigir esse erro da
juventude.
A
mulher compreendeu, quem não erra, perdoou-lhe, concordou com a ideia de levar
a rapariga, mas com uma condição: a Lisete, até ingressar na Universidade, ficaria
internada num Colégio de freiras. Seria apoiada financeiramente, iria a sua
casa como visita, um fim-de-semana, umas férias, mas viver lá permanentemente,
não. Tinham dois filhos e era a eles que ela devia prestar toda a atenção; já
muito estava a fazer, permitindo que ela fosse reconhecida como filha do seu
marido, portanto tornando-a também sua herdeira. Deus havia de compensá-la por
tudo isto, disso estava convencida.
**
As
férias do casal estavam quase no fim. Estávamos em finais de Agosto de 1953. As
Termas transbordavam de público - aqueles passeios pelo Parque, aquelas águas
maravilhosas, os ares puros, o rio Minho e as suas maravilhosas margens, atraíam
cada vez mais doentes diabéticos, e seus acompanhantes, à Estância. Os donos
dos Hotéis esfregavam as mãos de contentes: todos os anos aumentava o número de
clientes, criavam-se amizades com figuras importantes da sociedade, amizades
que poderiam, quem sabe, serem um dia bem aproveitadas.
Num banco do Parque viam-se três pessoas:
um homem, uma senhora e uma jovem. Estavam a conversar. Tratava-se do Juiz
Conselheiro, da sua esposa, e da sua recente filha, a Lisete. Dizia ele para
ela:
- Sabes? Tens
dois irmãos: o Rui Duarte e o Renato José. Tu és mais parecida com o primeiro.
O Renato José tem mais semelhanças com a família por parte da mãe. Penso que
vão gostar de ter uma irmã.
- Não sei, pai.
Se calhar não vão simpatizar comigo!
- Vai correr tudo
bem, não te preocupes. Agora precisas de recuperar os estudos, vamos mandar-te
para um bom Colégio. Antes disso preciso que a Conservatória do Registo Civil
altere o teu apelido. És minha filha, e como tal tem de figurar no teu Bilhete
de Identidade.
- Obrigado, pai.
Está a ser muito bom para mim.
- É de justiça, é
de justiça – comentou ele.
Estava deveras emocionado. Sentia remorsos
por a ter abandonado. Agora prometia a ele próprio fazer tudo que estivesse ao
seu alcance para emendar esse tremendo erro. A senhora, que até ali tinha
estado calada, interveio para dizer:
- Lisete, eu já disse
ao teu pai que podes contar comigo. Pareces ser boa menina e se te portares bem
nunca te há-de faltar nada – tudo dependerá de ti.
- Obrigada, minha
Senhora.
- Doravante,
podes tratar-me por madrinha.
- Sim, madrinha.
A seguir, a moça deu-lhe um leve beijo no
rosto.
- Eu também quero
– diz o seu pai com doçura.
Leitor: a beleza consegue milagres. Se a
Lisete fosse feia, tontinha, pensa que aquela senhora da alta sociedade a
quereria a seu lado? Certamente que não. Mas perante aquele quadro, com uma
moldura perfeita, aquele rosto lindo, num corpo de modelo, um coração doce, não
se resiste – apetece tocar-lhe, dar-lhe um beijinho, abraçá-la.
**
Aproveitaram o tempo que lhes restava para
darem uns passeios: foram à serra, à Senhora da Peneda, ficaram fascinados com
aquela escadaria, com as capelas, as cenas do calvário, com toda aquela beleza
natural em redor; os rochedos pendentes, sobre a igreja, parecem suspensos por
mão invisível, dando a sensação de que vão cair a qualquer momento; as águas
deslizando, as figuras criadas pelo vento naqueles enormes pedregulhos
semelhantes a animais. Nunca tinham visto coisa igual. A própria Lisete não
tinha ainda ido para aquelas bandas.
Tudo que é bom termina, e ao cabo de uns
dias partiram os três para os arredores de Coimbra. A maneira como a Lisete foi
recebida pelos irmãos não se sabe, ninguém nos pode contar, mas imaginemos que
a receberam de braços abertos. Também se ignora o nome do Colégio, quantos anos
lá andou, se foi para a Universidade. Provavelmente é hoje uma Senhora Doutora,
uma professora respeitada, cientista, escritora, uma mulher feliz, com marido e
filhos. Não sei, mas prometo pesquisar. A minha curiosidade é ilimitada, por isso
não descansarei enquanto não souber tudo sobre essa beldade. O que conseguir
indagar, transmiti-lo-ei. Prometo.
// continua...
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