domingo, 25 de agosto de 2019

               LINA - FILHA DE PÃ
 
romance
 
Por Joaquim A. Rocha



desenho de Rui Nunes
 



11.º Capítulo
  

       Lisete acordou. Estava numa das camas do Hospital da Santa Casa da Misericórdia. A sala teria trinta, quarenta metros quadrados; do lado direito e do lado esquerdo dela viam-se várias mulheres, novas e velhas, com doenças diversas. A luz penetrava por duas janelas gigantescas. A enfermeira, irmã da caridade, sorriu para a mocita e disse-lhe:

 

- Então, minha querida, já estás melhor? Vou mandar-te servir uma canjinha, deves estar faminta, já não comes há umas horas. Vamos ver essa febre.

 

    Estava a ficar normal; as cores do rosto voltavam pouco a pouco, aqueles olhos lindos voltavam a ganhar vida.

 

- Senhora enfermeira, quando saio do Hospital? Tenho de ir trabalhar no Hotel.

- Logo que melhores. Amanhã, ou depois de amanhã já poderás sair, julgo eu; mas essa decisão pertence somente ao Senhor Doutor Zacarias, o diretor do Hospital. Tiveste um grande choque emocional. E não era caso para menos!

- O que é o destino: encontrar o meu pai nas Termas! E ele, já se foi embora?

- Tontinha. Achas que o Senhor Juiz Conselheiro ia embora sem ti? Ainda há pouco tempo esteve aqui, a contemplar-te. Já foi falar com a tua avó materna, quer que vás estudar para a cidade.

- Ir com ele?! E onde vive?

- Segundo disse, mora em Coimbra, na cidade dos doutores. Vais ver que ainda virás a ser uma senhora importante!

- Não sei, não gostava de deixar a minha querida avozinha. Tem sido para mim mãe e avó.

- Depois vens visitá-la; ela vai ficar muito orgulhosa de ti.

 

     De facto o pai de Lisete falara com a esposa e contara-lhe toda a história, omitindo muitas coisas, obviamente, imensos pormenores, sobretudo tudo aquilo que mais o comprometeria: «fora uma fraqueza humana, eu nem sequer sabia que a criada ficara grávida, enfim uma tragédia que era necessário reparar» - dissera-lhe ele. Agora era preciso corrigir esse erro da juventude.

     A mulher compreendeu, quem não erra, perdoou-lhe, concordou com a ideia de levar a rapariga, mas com uma condição: a Lisete, até ingressar na Universidade, ficaria internada num Colégio de freiras. Seria apoiada financeiramente, iria a sua casa como visita, um fim-de-semana, umas férias, mas viver lá permanentemente, não. Tinham dois filhos e era a eles que ela devia prestar toda a atenção; já muito estava a fazer, permitindo que ela fosse reconhecida como filha do seu marido, portanto tornando-a também sua herdeira. Deus havia de compensá-la por tudo isto, disso estava convencida.

   

**

 

      As férias do casal estavam quase no fim. Estávamos em finais de Agosto de 1953. As Termas transbordavam de público - aqueles passeios pelo Parque, aquelas águas maravilhosas, os ares puros, o rio Minho e as suas maravilhosas margens, atraíam cada vez mais doentes diabéticos, e seus acompanhantes, à Estância. Os donos dos Hotéis esfregavam as mãos de contentes: todos os anos aumentava o número de clientes, criavam-se amizades com figuras importantes da sociedade, amizades que poderiam, quem sabe, serem um dia bem aproveitadas.        

     Num banco do Parque viam-se três pessoas: um homem, uma senhora e uma jovem. Estavam a conversar. Tratava-se do Juiz Conselheiro, da sua esposa, e da sua recente filha, a Lisete. Dizia ele para ela:

 

- Sabes? Tens dois irmãos: o Rui Duarte e o Renato José. Tu és mais parecida com o primeiro. O Renato José tem mais semelhanças com a família por parte da mãe. Penso que vão gostar de ter uma irmã.

- Não sei, pai. Se calhar não vão simpatizar comigo!

- Vai correr tudo bem, não te preocupes. Agora precisas de recuperar os estudos, vamos mandar-te para um bom Colégio. Antes disso preciso que a Conservatória do Registo Civil altere o teu apelido. És minha filha, e como tal tem de figurar no teu Bilhete de Identidade. 

- Obrigado, pai. Está a ser muito bom para mim.

- É de justiça, é de justiça – comentou ele.

    

     Estava deveras emocionado. Sentia remorsos por a ter abandonado. Agora prometia a ele próprio fazer tudo que estivesse ao seu alcance para emendar esse tremendo erro. A senhora, que até ali tinha estado calada, interveio para dizer:

 

- Lisete, eu já disse ao teu pai que podes contar comigo. Pareces ser boa menina e se te portares bem nunca te há-de faltar nada – tudo dependerá de ti.

- Obrigada, minha Senhora.

- Doravante, podes tratar-me por madrinha.  

- Sim, madrinha.

 

     A seguir, a moça deu-lhe um leve beijo no rosto.

 

- Eu também quero – diz o seu pai com doçura.

 

     Leitor: a beleza consegue milagres. Se a Lisete fosse feia, tontinha, pensa que aquela senhora da alta sociedade a quereria a seu lado? Certamente que não. Mas perante aquele quadro, com uma moldura perfeita, aquele rosto lindo, num corpo de modelo, um coração doce, não se resiste – apetece tocar-lhe, dar-lhe um beijinho, abraçá-la.

 

**

 

     Aproveitaram o tempo que lhes restava para darem uns passeios: foram à serra, à Senhora da Peneda, ficaram fascinados com aquela escadaria, com as capelas, as cenas do calvário, com toda aquela beleza natural em redor; os rochedos pendentes, sobre a igreja, parecem suspensos por mão invisível, dando a sensação de que vão cair a qualquer momento; as águas deslizando, as figuras criadas pelo vento naqueles enormes pedregulhos semelhantes a animais. Nunca tinham visto coisa igual. A própria Lisete não tinha ainda ido para aquelas bandas.        

     Tudo que é bom termina, e ao cabo de uns dias partiram os três para os arredores de Coimbra. A maneira como a Lisete foi recebida pelos irmãos não se sabe, ninguém nos pode contar, mas imaginemos que a receberam de braços abertos. Também se ignora o nome do Colégio, quantos anos lá andou, se foi para a Universidade. Provavelmente é hoje uma Senhora Doutora, uma professora respeitada, cientista, escritora, uma mulher feliz, com marido e filhos. Não sei, mas prometo pesquisar. A minha curiosidade é ilimitada, por isso não descansarei enquanto não souber tudo sobre essa beldade. O que conseguir indagar, transmiti-lo-ei. Prometo.
 
// continua...

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