LEMBRANÇAS AMARGAS
romance
Por Joaquim A. Rocha
Capítulo XXXI
Falha o
alvo, acerta-se na nuvem!
Eis o rescaldo de uma traição: a minha
mãe, apesar de sempre ter afirmado que a minha ex-namorada não valia um feijão
fradinho, sente-se frustrada, quase humilhada, por a Bera ter casado com outro,
por me ter preterido. As mães são assim: detestam as noras, têm ciúmes delas,
mas gostam de tê-las ali bem perto para as achincalhar. Assistam com serenidade
a este diálogo:
- Então a Bera já se
casou e partiu para o estrangeiro. E levou o pai com ela!
- Não quero falar
nisso.
- Ela não te merecia,
eu nunca gostei dessa rapariga, era uma galdéria, uma leviana, na França ainda
lhos põe.
- Você mede todas as
pessoas pela mesma bitola; a Bera é honesta, e com ótimos sentimentos,
simplesmente vivia na mais pura miséria e quis, como é natural, libertar-se;
escolheu o bem-estar, eu não lho podia garantir, vou para a tropa, não sei
quanto tempo lá vou ficar, nem sequer sei se algum dia voltarei para aqui.
- Um rapaz como tu,
tomara ela; como tu não arranja ninguém. Olha o Artur, um bruto, um mourinho de
trabalho, para ela lho gastar, que ela em tendo dinheiro… Então naquele país!
Dizem que as mulheres são umas desavergonhadas, não respeitam os maridos.
- Mamã, você só sabe
criticar os outros; enquanto ela foi minha namorada fartou-se de dizer mal
dela, não era asseada, não gostava de trabalhar, era desmiolada. Agora que ela
casou com o Artur diz que ela o vai trocar por outro, que lhe vai gastar todo o
dinheiro que ele ganha. Sabe que mais: tenha juízo, olhe mas é para si, mire-se
bem ao espelho, beba menos vinho, tenha mais respeito por si própria, por mim,
por todos os seres humanos. As pessoas merecem-nos toda a consideração, não se
esqueça que eu tenho uma porta aberta, preciso de todos os clientes.
- Eu já sei que sou uma
borracha, uma mulher sem tino, sem vergonha, para ti eu não valho nada, tens
desprezo por mim, não te dei um pai, agora tens em casa um avô que pede esmola,
mas que queres? Querias ser rico? Nasceste pobre, e pobre será toda a tua vida,
assim está escrito.
- Eu já nem sei se
tenho vergonha de si. Resignei-me, Deus assim o quis, e nada se pode fazer em
contrário. Os desígnios dele são para se cumprirem, Deus sabe o que faz, mas é
verdade que eu preferia ter pai e uma mãe decente, uma mãe como a senhora
Natália, com siso.
- Deve ter pecados como
as outras, mas mete-se em casa, só falinhas mansas, às vezes são as piores; eu
gosto mais daquelas que deitam tudo cá para fora, que não escondem nada. Estas
sonsas às vezes escondem montes de podridão; é uma beata, não sai da igreja,
uma papa-hóstias, dizem que até o senhor padre Alberto não gosta dela, não lhe
larga a sotaina, confessa-se todas as semanas, olha que eu não preciso, não
tenho pecados, se ela se confessa tantas vezes é porque tem muito a esconder, pesa-lhe
a consciência.
- Você encontra sempre
defeitos nos outros, os seus olhos deturpam a realidade; veja lá, uma senhora
daquelas, tão educada, traz os filhos bem arranjadinhos, e olhe que não dizem
asneiras, têm uma educação esmerada, exemplar, não são como nós, que crescemos
na rua ao deus dará, sempre tiveram tudo, nós tivemos muitas vezes de ir roubar
fruta aos pomares para matarmos a fome.
- Uma malga de caldo e
um naco de pão nunca vos faltou; querias bifes? Isso é para os ricos,
contenta-te com aquilo que tens, és pobre mas tens boca de fidalgo, canté!
- Hoje felizmente já
posso comer um bifinho ao domingo, mas trabalho muito, é graças ao meu esforço,
se estivesse à espera que os outros me dessem alguma coisa estava desgraçado –
morria à míngua.
- Essa galdéria! No
princípio era toda falinhas mansas, mas eu comecei a cantar-lhas, afastou-se
logo de mim, queria a lua, andar bem vestida, já não lhe serviam vestidos de
chita, com o cabelo penteado como uma senhora, saltos altos, a pobretana, não
tinha onde cair morta, mas fazia-se passar por importante, casasse ela contigo
que ia ver como era bom, foi melhor assim, que trabalhe para as francesas,
põem-na no olho da rua ao cabo de dois dias, quem é que a vai querer, calaceira
e porca, e aldrabona como poucas, intriguista, aquilo era só aparato, para
disfarçar a porcaria, que eu fui criada como uma menina na casa dos pais da
minha madrinha, canté, como uma menina.
- Volta sempre ao
mesmo; olhe que a sua educação pelos vistos não deu resultado, é maldizente,
tem uma língua-de-trapos, mete-se nos copos como qualquer homem de taberna; de
asseada não tem absolutamente nada. Já sei, vai-me dizer que perdeu a vontade
de viver, que já nada lhe interessa… Escusa de repetir isso, que eu conheço a
cantilena; mas devia mudar, para seu bem e para o dos seus filhos. A Bera tem
brio nela própria, cuida da aparência, nunca me apercebi que ela bebesse
bebidas alcoólicas, sempre a vi a beber água; você tinha, e ainda tem, inveja
dela.
- Inveja de uma
catraia, de uma morrinhosa. Bueno, bueno! Ela nem me chega aos calcanhares,
ouviste! Nem aos calcanhares.
- Está bem; deite cá
para fora todo esse fel que tem no peito, no volumoso alforge; pode ser que
depois de despejado comece a dizer bem das pessoas. Olhe, mamã, vamos mas é
discutir as coisas que nos interessam: estou a pensar ir falar com o senhor
provedor da Santa Casa da Misericórdia para ver se ele admite no asilo o avô
Agostinho; eu daqui a uns meses vou cumprir o serviço militar e ele não pode
ficar aqui consigo, você é ave de arribação!
- Vai-lhe pedir, vai;
quando o deixámos ficar aqui em casa já foi nessas condições, eu não sou criada
dele, o filho que o venha buscar, tem obrigação disso, mas o patife nunca mais
se lembrou que tinha pais, os filhos são todos da mesma laia, quando aqueles
que lhe deram o ser são velhos e relhos dão-lhes um pontapé, olha que eu não
quero ir para o asilo, prefiro morrer antes, olha eu no meio daqueles velhos
caquéticos, a cheirarem a chichi, canté, eu…
- Você, pela vida que
leva, não vai, de certeza, chegar a velha!
// continua...
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