LEMBRANÇAS AMARGAS
romance
Por Joaquim A. Rocha
XXVIII
Mais lembranças amargas desfilarão perante
vossos olhos, já cansados talvez de verter tanta lágrima; mas, que se poderá
fazer? A riqueza e a felicidade andam tão mal distribuídas: uns têm tudo,
outros não têm nada! As recordações servem de catarse, de alívio à dor. Por
isso, eu nunca perco uma única oportunidade de projetar na tela imaginária as
cenas da minha infância infeliz.
- Lembras-te de quando eu fiz cair o tio?
- Se lembro! Terias tu
sete ou oito anos de idade.
- Tinha sete anos. A
tia não me deixava sair da mesa enquanto não engolisse aquele caldo de farinha
e couves com unto rançoso; nele podia-se enterrar uma colher que ela nem sequer
se mexia, tal era a sua espessura. Eu então resolvi fugir; o tio, que se encontrava
ocasionalmente em casa, partiu atrás de mim como uma flecha. Eu, porém, fui
mais rápido, deixava-o propositadamente aproximar-se e depois, com fintas
engenhosas, fugia-lhe como a lebre foge do cão. A avenida andava em obras, os
calceteiros estavam a colocar paralelepípedos, e utilizavam um enorme cilindro
em pedra granítica para depois lhes passar por cima, a fim de ficarem todos ao
mesmo nível; eu aproximei-me dele e esperei que o tio chegasse perto de mim –
quando se encontrava a um metro de distância, mais ou menos, deu um enorme
salto para me agarrar; baixei-me e de imediato dou uma guinada no sentido
oposto ao dele. Coitado, bateu com todo o seu corpo contra o cilindro.
- Foram buscá-lo
desmaiado!
- É verdade. O choque
foi de tal modo violento que esteve cerca de uma semana na cama.
- Não me lembro se te
bateram.
- Não se atreveram.
Ficaram-me com medo e raiva. A partir daí a tia nunca mais me obrigou a comer
aquele caldo de porcos, eu preferia passar fome.
- Ainda bem que saíram
de casa, a nossa relação com eles estava a tornar-se insustentável.
- Sim. Eu e a prima
Laura disputávamos um pedaço de pão, que bem ele cheirava, e como nenhum de nós
queria ceder, então resolveu-se cortá-lo ao meio.
- E o tio, não
interveio?!
- Ele não se encontrava
presente, tinha ido beber uma malga com uns amigos, ou clientes. Claro que fui
eu a cortar o pão; fugiu-me a faca e cortou-me o dedo; depois fui a correr para
o hospital, o que me valeu foi o enfermeiro, pôs-me uns pensos e logo chamou o
médico para me operar, é por isso que tenho um dedo da mão mais curto e mais
magro do que o outro.
- Deste uma queda pelas
escadas de pedra, ias morrendo queimado, doente, depois o dedo. De facto, tudo
te tem acontecido!
- Estás a esquecer-te
que certo dia ia morrendo afogado; o Trufas empurrou-me para o poço mais fundo
do regato, ali perto de onde ele vai desaguar, salvei-me por pouco, caramba! Os
pés pareciam de chumbo, o corpo não queria subir, não podia respirar, fica-se
completamente perdido. E como o destino é irónico: quem acabou por morrer
afogado no rio anos depois foi ele! Levei também uma lapada na cabeça, até vi
as estrelas.
- Uma lapada?!
- Sim, com uma pedra
atirada pela tia Ana da Ponte, caseira do senhor Renato.
- Forte razão devia ela
ter para te atirar com a pedra.
- Eu andava a roubar
cornecha, ou cornelho, uns pauzinhos pretos que se tiravam do centeio, lembras-te? Depois
vendiam-se na feira, ou até na farmácia; segundo diziam os feirantes,
compravam-na para depois os laboratórios fazerem medicamentos.
- Já me recordo disso;
até tiveste de ir ao hospital levar uns quatro ou cinco pontos!
- O raio da mulher
tinha cá uma pontaria! E logo havia de acertar em mim; olha que estávamos lá
uns cinco ou seis.
- Tu eras um autêntico
“terrorista”…
- Era como os outros;
simplesmente como não tinha ninguém que me defendesse mostrava-me mais
agressivo do que aquilo que na realidade era.
- Tempos difíceis.
- Para cúmulo da desgraça, depois dos tios terem ido em 1951 ou 1952 viver para a capital do país, apareceu a nossa irmã com a barriga grávida.
- Teve a criança
passado dois meses.
- E nós tivemos de
tomar conta do cachopo, para ela poder ir ganhar o sustento para os dois; tu,
no entanto, ias brincar e obrigavas-me a cuidar dele, imperava a lei do mais
forte e do mais velho. Eu bem o embalava, a ver se dormia, cerrava-lhe docemente
as pálpebras, cantarolava, mas o que ele fazia era chorar; coitado, devia estar
todo borrado, eu não sabia mudar-lhe as fraldas, uns trapos, só tinha sete anos
de idade, passou maus bocados e fez-me a vida negra também. Quando ele tinha
cerca de ano e meio ia-o matando!
- Matando-o. Como?!
- Levei-o para a
avenida das tílias, deixei-o sozinho e fui jogar a bola; quando me lembrei dele
andava o pobre rapaz em cima do muro; corri como um louco, mas já não fui a
tempo: caiu como um tordo. Pensei que se tinha matado, felizmente pouco se
magoou.
- «À criança e ao borracho pões-lhes Deus a mão por baixo», lá reza o
ditado.
- E a fome negra que
passámos nessa altura!
- É verdade; chegávamos
da escola a casa para comer e nada! Uma ocasião demos com umas bolachas na
despensa, mas a maldita estava fechada à chave. Tu, como tinhas uns braços
magrinhos, e o móvel de pinho já estava mais carcomido e esburacado do que a
carcaça de um boi selvagem depois de longamente devorado pelos chacais, ainda
conseguiste apanhar uma ou duas; porém, não muito tempo depois, deu-se o bom e
o bonito quando a tua irmã chegou a casa. Acusou-nos de lhe andarmos a roubar
as bolachas que eram do filho, que não podia confiar mais em nós, o demo!
- Ainda estiveram lá em
casa cerca de dois anos. As encrencas que ela arranjou por causa das nossas
galinhas. Tinha saído recentemente uma lei a proibir as galinhas e porcos de andarem
na rua, mas a tua mãe não a quis acatar. Resultado: foram as duas, mãe e filha,
chamadas ao posto da GNR, estiveram quase a entrar na prisão, até um tenente do
posto de Valença veio aqui à pressa para resolver o assunto! Depois ela partiu
para Lisboa com o filho, pobre criança, foi um grande alívio para nós, eu
fiquei mais livre, com menos responsabilidades.
- Por pouco tempo,
pelos vistos.
- É verdade. Logo a
seguir a mamã amigava-se com o facínora do feiticeiro. Foi um passo muito mal
dado; fez-nos sofrer imenso. Tu, mesmo assim, não estiveste muito tempo com
ele, mas eu…
- Eu pus-me a andar. São
tempos para esquecer.
- Não posso. São
momentos que se gravam para sempre na nossa memória, só a morte ou a loucura os
apagará.
- Tens uma tendência
para dramatizar tudo.
- Eu? És insensível;
sais, como diz a mamã, ao teu pai. Sabes que me passou pela cabeça matá-lo? Era
um padrasto cruel. Com as suas bruxarias assustava-me imenso. A tua mãe estava
quase sempre com a pinga, aquela casa passou a ser a casa do horror, do
espiritismo, da feitiçaria, eu ia dando em doido. À noite tinha pesadelos, tudo
me assustava. Quando fiz a 4.ª classe da instrução primária ia vestido com um
fato de macaco e nos pés levava umas alpercatas galegas. Parecia uma miniatura
de homem, um aprendiz de mecânico. Os miúdos riram-se de mim, o meu professor ficou
pensativo. E eu, impotente, nada podia fazer contra a adversidade. Fugir.
Restava-me fugir. E fugi, mas para dentro de mim próprio!
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