LINA - FILHA DE PÃ
romance
Por Joaquim A. Rocha
desenho de Manuel Igrejas |
Capítulo 7.º (continuação)…
Entrou porta dentro e dirigiu-se à cozinha, onde
costumava estar a sua Lina. Queria dar-lhe a novidade: «já cá canta!» Porém, quem surgiu aos seus cansados olhos, para seu
espanto, foi uma rapariguinha franzina, de olhar tímido, acanhada.
- Que fazes aqui? – pergunta ele com alguma dureza.
- Estou a tratar da senhora Lina, que teve um bebé;
está na cama.
- É verdade o que dizes?!
Antes que a mocita lhe respondesse saiu disparado da cozinha e dirigiu-se ao quarto. Viu a sua amada deitada, a fingir que dormia, e a seu lado o berço do catraio. Deu dois passos em sua direcção e pergunta-lhe:
- Então, como correu? É rapaz ou rapariga?
- Correu tudo bem. Eu estou forte, amanhã já me
levanto. Olha para o berço. Não vês a cor? Azul. É um rapaz, um latagão. O
nosso Leandro vai ser um homenzarrão.
- Posso pegar-lhe? É tão bonito!
- Ainda é cedo; deixa-o dormir. A Joaninha logo já o
lava e põe-mo aqui para eu lhe dar a mama. Ah! Já me esquecia: passaste? Já
tens a carta?
- Passei com distinção! O dinheiro compra tudo. Agora
preciso de adquirir o automóvel, para isso terei de ir ao Porto. Não te importas
que vá abaixo, à loja?
- Vai homem, vai. A mocinha está a preparar a ceia.
- Não precisará de ajuda? Vê lá!
- Eu daqui oriento-a. Não te preocupes – disse-lhe, sorrindo para ele.
O senhor
Manuel desceu até ao estabelecimento. Estava feliz. Um dia em cheio. Tinha uma
mulher jeitosa, um filho, logo um rapaz, a vida corria-lhe bem. Graças ao
contrabando, tudo se vendia e comprava. As pesetas e os escudos iam entrando
nos seus bolsos como as abelhas entravam nas colmeias e a chuva penetrava nas
terras aráveis. Os galegos eram bons clientes, pagavam a tempo e horas. Aumentara
o número de lojas, já tinha empregados, o negócio prosperava a olhos vistos, chegava
para todos. «Dinheiro chama dinheiro»,
diziam os mais antigos, e tinham razão.
À
impostora, tudo corria às mil-maravilhas. A criança foi batizada na igreja de
Castro da Serra, tendo por padrinhos um casal de castrejos, amigos do “pai” do menino,
em casa dos quais se realizou uma grande festa. Até baile houve ao som de uma
concertina.
Costuma
dizer-se que não há bela sem senão. Pois é: a tal prima do senhor Manuel não
desistiu do caso. Estava em jogo muito dinheiro e bens. Investigou, mandou
investigar, e por fim a pesquisa surtiu o efeito tão desejado: a criança não
era da Lina. A astuta mulher comprara-a, como quem compra um peru ou um pato!
Depois
dessa descoberta, dirigiu-se à GNR e contou tudo que sabia. Não era por interesse,
disse-lhes, mas sim para desmascarar a intrujona, a libertina. Já fizera aquela
patifaria ao pobre do Mário, arruinara uns quantos lares, e agora aquilo. Aquela
sacaninha era o diabo em pessoa.
A Guarda pôs-se
em campo. Em primeiro lugar foi a Cartagães e deu ordem de prisão à mãe da
criança. Nem sequer foi necessário levá-la presa – ao primeiro safanão confessou
tudo:
- Senhores guardas, eu e o meu homem temos tantos filhos, passamos tanta fome, e aquele ao menos está bem, em casa de gente rica. Por favor: não lhe estraguem o seu futuro.
- Mas, senhora Umbelina – diz o cabo com comiseração – não vê que vender uma criança é crime
grave? A senhora não se vai livrar de cumprir uma pena, embora leve, julgo eu,
tendo em conta a sua extrema pobreza, mas não volte a fazer o mesmo. A Lina
desta vez vai para a prisão durante algum tempo, a fim de pagar por todas as
patifarias que tem feito.
- Eu não tenho nenhuma queixa dela, tem-me ajudado
muito. Que Deus a proteja.
- Está bem, está bem, apresente-se amanhã no posto;
não falte, se não vimos buscá-la e é pior para si.
**
A Lina não
suspeitava de nada. Vivia alegre e descontraída: o Leandro crescia a olhos
vistos, já gatinhava, e ao sorrir mostrava uns dentinhos muito bonitos.
O “pai” sentia-se
orgulhoso do seu menino. O senhor Manuel nunca pensara vir a ter descendência.
Se soubesse que era assim tão importante para o seu equilíbrio emocional,
ter-se-ia casado quando era novo, mas também nessa altura não tinha recursos financeiros
para manter um lar com a dignidade desejada. «Veio quando tinha de vir» - condescendeu.
Estava a
atender uns clientes quando chegou a GNR. «Mau!»
- disse o senhor Manuel – «fico sempre
nervoso quando vejo a autoridade por perto; nada tenho a temer, mas não gosto
muito de fardas.»
Um dos
clientes observa com perspicácia o que se passa e tenta acalmá-lo:
- Ó senhor Manuel, até pode ser que lhe venham comprar
qualquer coisa!
- Não me parece; quando precisam de algo mandam as
mulheres ou os filhos, não gostam de fazer mercancias quando estão fardados.
De facto os soldados da GNR não vinham ali para comprar, mas sim para outros fins. Traziam um mandato de prisão, passado pelo Senhor Doutor Juiz, mas mesmo na posse desse documento não desejavam provocar conflitos com o comerciante, por quem tinham alguma consideração.
- Dois ou três, senhores guardas. Em que posso
ser-lhes útil?
- Podia chamar a sua empregada, a senhora Lina? Precisamos
urgentemente de falar com ela.
- Aconteceu alguma coisa de grave? Algo que eu desconheça?!
- Não sabemos ainda, ela é que nos vai esclarecer.
O senhor
Manuel ficou intrigado, mas correu a chamar a sua cara-metade, como a tratava,
embora ainda não fossem casados, o que estava por um fio.
- Lina: estão aqui umas pessoas que querem falar contigo. Desce.
- Já vou; pede-lhes para esperarem um bocadinho.
Dali a uns
minutos surge ela com a criança ao colo. Quem olhasse para aquele quadro humano
nem sequer lhes passaria pela cabeça a crua verdade: aquela mulher servia-se do
pequeno ser para conseguir os seus malvados fins; mas se a criança estivesse a
viver com os verdadeiros pais estaria agora escanzelada, mal nutrida, cheia de
pêlo. - É a senhora Lina? – perguntou um dos guardas, quase em posição de sentido.
- Sim, sou eu! Não me conhecem?! Que desejam de mim?
- Em nome da Lei considere-se presa. Se resistir será
pior para si.
Ali perto aguardava
a mãe do pimpolho. Chamaram-na. Estava triste, chorosa, um farrapo. Aquilo
nunca lhe devia ter acontecido. Levaria a criança, que remédio, para juntar aos
outros, mais uma boca para comer. Uma sardinha já era repartida por três, agora
seria por quatro! A autoridade falava na Lei; mas ela, Umbelina, não tinha nada
de seu, trabalhava a terra dos outros, no São Miguel tinha de dar aos proprietários
da Quinta quase tudo o que produzia; para ela, marido e filhos ficavam os
restos, as migalhas, umas centenas de espigas de milho para cozer a broa. As leis
deviam ser para os ricos, para os poderosos; os pobres não precisavam dessas imposições,
nem sequer sabiam ler!
O guarda dá
uma ordem à falsa progenitora:
- Entregue a criança à sua verdadeira mãe e acompanhe-nos.
De contrário teremos de usar a força.
- Usar a violência para uma mulher, senhores guardas?!
– interveio o comerciante, sem perceber
absolutamente nada daquilo que se estava a passar.
- O senhor Manuel vá ao posto, se não se importa, que
o nosso comandante põe-no ao corrente de tudo. Agora temos de levar presa a sua
empregada. Como deve ter notado a criança não é dela, nem sua, mas sim desta
mulher e do marido.
O senhor
Manuel ficou banzado, cambaleante. Virou-se para a amante e perguntou-lhe:
- O que fizeste? É verdade que o Leandro não é meu
filho?
Não
esperando pela resposta, continua:
- És uma desgraçada! Como pude acreditar em ti?
- Ó palerma, julgavas que eu te tinha amor? Eu só amei um homem, ouviste? De ti… só queria era o teu dinheiro.
Depois
dirigiu-se à mãe da criança, entregou-lhe o bebé, e disse-lhe com azedume:
- Toma! Nem para o teu filho foste boa. Sois gente
fraca, servos da gleba, sem coragem. Arranja-lhe uma enxada e põe-no a cavar os
campos, é para isso que vós prestais, para mais nada. Gente inútil.
E virou-lhe as costas, com desprezo e
altivez.
Os guardas agarraram-na por um braço e arrancaram
com ela para o calabouço, que ficava no posto da GNR, por baixo dos Paços do
Concelho. Dali seria transferida para a prisão, que ficava a um ou dois quilómetros
de distância. Tratava-se de um edifício recentemente inaugurado, construído
propositadamente para esse fim. Antes a cadeia era no centro da Vila, na zona
histórica, num prédio seiscentista, com algum interesse arquitetónico, mas insuficiente
para as necessidades do concelho. Ali já funcionara o tribunal e outras repartições
públicas. Os presos fugiam de lá quando bem lhes apetecesse, roubavam e eram
novamente presos, e voltavam novamente a fugir!
**
A prima do castrejo ficou radiante. Conseguira matar dois coelhos com uma cajadada: meteu a aldrabona na cadeia e abalou a saúde do primo. Agora era só esperar: – o parente não aguentaria a perda da amante e da criança. O seu amor por Lina e pelo miúdo era sincero, enorme, autêntico, genuíno. A grandeza desse amor só se compararia com aquele que tivera pelos pais e irmãos, mas este era diferente, de outra espécie, eram os seus dois grandes amores, sem eles não sobreviveria.
«E
agora? Que vai ser de mim? De que me vale o dinheiro sem eles?!» -
perguntava aos amigos, desiludido da vida, exausto de tanto sofrer.
Ninguém
sabia responder-lhe. Remetiam-se ao silêncio, baixavam a cabeça. O que sucedera
era algo que ultrapassava toda a lógica. Nos meios pequenos era raro acontecer
alguma coisa de interesse, de excecional. A rotina dominava completamente: o
que se passava hoje, ir-se-ia passar todos os dias. Mas aquele evento fora
bombástico – todo o concelho, e não só, o comentou, a Lina ficara tristemente célebre
de um dia para o outro.
Continua...
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