sexta-feira, 28 de setembro de 2018

ENTRE MORTOS E FERIDOS
(romance histórico)

                                                                Por Joaquim A. Rocha




16.º Capítulo


CACHEU

 
     Mais uma semana passara. Velozmente. Lisboa estava a transformar-se. Viam-se por todo o lado estrangeiros – queriam conhecer a cidade da revolução, do 25 de Abril. Os negros também eram cada vez em maior número. Vinham de África à procura de um trabalho, de uma ocupação, fugindo à fome e à guerra civil. Até se dizia que metade dos cabo-verdianos já estava em Portugal!  

     Os dois amigos continuavam, como sempre, a encontrar-se:

 - Boa tarde, amigo Cândido. Então hoje vai-me falar de Cacheu. Era uma vila ou cidade?


- Uma pequeníssima cidade; berço de nascimento de Honório Barreto, nascido ali a 24/4/1813 e falecido em Bissau a 26/4/1859. Um homem negro que ascendeu a Governador da Província e que ofereceu a Portugal algumas parcelas do território da Guiné, sua pertença, ou adquiridos aos nativos. Foi também tenente-coronel do exército (2.ª linha). A sua estátua ainda lá permanecia, não imponente, apenas uma simples estátua de granito, com dois metros e meio de altura.


- O mais certo é que ela tenha sido destruída depois da independência?!

- Duvido. Trata-se de um conterrâneo, a sua vida decorreu no transacto século. Se fosse agora, o Partido de Nino Vieira jamais perdoaria a sua fidelidade à pátria de Eça de Queirós e de Aquilino. Quereria realçar a diferença, destacar-se, destronar os heróis alheios, destruir os símbolos do colonialismo.               

- Tudo bem, mas ponhamos essas especulações de lado – interrompe Henrique, com receio de voltar à conversa fiada.

  

     Cândido quase não o ouviu. Quando estava inspirado, nada, nem ninguém, o parava. Era um conversador nato. Continua ele:     

 

- Cacheu, no ano de 1966, não era uma cidade feia nem bonita. Aliás, chamar àquele conjunto de casebres escuros, embora banhados por um sol resplandecente e pródigo, algumas ruas de terra batida, uma miniatura de loja – taberna e mercearia – poucas centenas de habitantes, cidade, mesmo no atrasado continente africano, tornava-se abusivo. Na maior habitação abrigava-se a tropa. Ali perto existia um humilde mercado, onde se vendia peixe e carne, e demais produtos da região. Havia também a antiga fortaleza, com os seus canhões apontados para o mar. Junto à “cidade” viam-se palhoças que albergavam numerosas famílias de autóctones: manjacos, brames e mancanhas.

- Tantas etnias! – exclama Henrique, estupefacto.

- E sabes que se distinguiam pelo físico e pela cor?!

- Não, não sabia – confessa o jovem lisboeta.

- Contudo é verdade. Mas do que mais gostei em Cacheu foi do rio que lhe deu o nome: largo e majestoso. Nele pescava-se peixe e marisco com abundância. De vez em quando chegavam os barcos da marinha, trazendo cerveja e víveres para os militares ali colocados. Uma festa, quando aportavam! Bem-dispostos, folgazões, os marinheiros transportavam com eles a alegria de viver – até parecia que não estávamos em guerra!

     Em Cacheu arranjei logo um fio de pesca e anzóis. O isco ia comprá-lo ao mercado: peixes, que cortava em pequenos bocados. Sentava-me na frágil estrutura de madeira – pomposamente designada por cais – onde atracavam os navios, e aí lançava a linha e ficava à espera que algum peixe esfomeado caísse na ratoeira que eu lhe armara. Em todas as espécies animais existem criaturas imprudentes e ingénuas – são essas as vítimas dos predadores. A natureza assim nos moldou e nós não podemos alterar seja o que for, sob pena de provocarmos a nossa autodestruição. Tudo obedece a uma lógica e a um ritmo constante; tudo caminha para um equilíbrio, que pode ser instável se o ser humano adquirir mais poder e contrariar as forças do universo. Mas que sei eu? Onde estão as certezas?

- Julgo que se o Homem não interviesse, destruindo, algumas espécies tornar-se-iam autênticas pragas – diz Henrique, exibindo os seus conhecimentos.

- És capaz de ter razão, mas o que é de mais é moléstia. O ser humano tem de conter os seus ímpetos, não eliminando à toa, senão a natureza vingar-se-á, e até – não tenhas disso quaisquer dúvidas – os inocentes pagarão por um mal que não fizeram.   

 

- E chegou a pescar alguma coisa de jeito?! – pergunta Henrique, a rir, ignorando os arrazoados do amigo.

- Pesquei alguns exemplares enormes! Um deles, furioso por ter sido apanhado, furou-me o dedo mindinho da mão direita quando o estava a tirar do anzol. Chamei-lhe todos os nomes feios que no momento me vieram à ideia! Fui à enfermaria a correr e tive de apanhar uma “pica” contra uma mais que provável infecção. Não havia muito tempo que levara outra: uma carraça tinha-se-me pegado à pele, camuflada com os pêlos da púbis, a sugar-me o sangue, como se eu fosse um boi pastando tranquilamente na savana. O paciente enfermeiro, de seu nome Ferreira, com uma pinça, meticulosamente, arrancou-a do meu corpo. Disse-me: «Safaste-te de boa; a cabrona não queria sair!»

- Os perigos que encerra África! E que fazia ao peixe que pescava?!

- O que conseguia pescar, levava-o à cozinha, grelhava-se e bem regado com umas cervejas transformava-se num verdadeiro petisco.

- Até parecia que estavam no paraíso!

- Não obstante toda esta aparente calma, continuávamos em acérrima zaragata com os “turras”. Daí partíamos para as matas de São Domingos, Susana, Varela… que só falar delas os nossos cabelos ficavam em pé!

- Eram mais perigosas do que as anteriores?!

- Todas elas eram problemáticas, mas estas tinham a agravante de se situarem na fronteira com o Senegal, país que – tal como a República da Guiné – apoiava aberta e decididamente o nosso adversário.

     Numa das operações deparámos com os Felupes. Eu tremia como varas verdes, sacudidas pelo vento, porque tinha ouvido dizer que os membros dessa tribo usavam setas envenenadas e que não havia cura para esse veneno. Nada tínhamos, porém, a temer. Eles, pelos vistos, eram neutrais, não tomavam partido. Só não queriam que os brancos os prejudicassem, que os obrigassem a alterar a sua maneira de viver. Se o tentassem, aí sim, teriam de enfrentar um inimigo poderoso.

- É um povo especial!

- Sem dúvida. Roupa, a bem dizer não usavam: apenas uma simples tanga – feita de fibra natural, salvo erro – lhes cobria o pirilau e o rabo.

     Apesar de essa zona ser perigosíssima, como já te disse algures, não era, mesmo assim, considerada a pior das piores; contudo, tivemos alguns recontros com o mafarrico; sofremos algumas emboscadas, perdemos dois camaradas; imensos feridos; continuámos a queimar, a destruir sem piedade, diversas aldeias conotadas com os guerrilheiros do PAIGC, e fizemos também alguns prisioneiros – a rotina!   

- E que faziam aos presos?                                

- Os detidos eram geralmente interrogados por indivíduos civis, por um agente (suponho que pertencente aos quadros da polícia política), de cor negra, verdadeiro gigante. Um dia assisti, por casualidade, a um desses bárbaros interrogatórios e fiquei estupefacto, de boca aberta: o brutamontes ia matando o homem – até para cima dele saltou!

- Incrível! Desumano!

- Outros prisioneiros eram levados connosco às operações, com o fim de nos indicarem (prometia-se-lhes a liberdade e proteção da tropa se aceitassem) os locais onde se encontravam os postos avançados dos seus correligionários.

- E colaboraram convosco?!

- Nunca cederam. Pagaram, contudo, com a vida tal recusa. A coerência exige muitos sacrifícios.

     Numa dessas batidas pelo mato (há tanto tempo e parece que foi ontem) levámos três suspeitos. Os nossos guias, servindo-se da língua deles, pediram-lhes que denunciassem os seus irmãos de Partido e nos conduzissem às suas posições. Responderam à solicitação de forma ambígua. No entanto, lá os seguimos e às tantas os guias informam o capitão: «Nosso capitão, os prisioneiros estão a fazer-nos andar às voltas; nós já passámos por aqui há pouco!»

     O caudilho, arrebatado, ferido no seu orgulho de oficial de carreira, ordena: «Matem esses filhos da mãe. Pensam que brincam connosco?!»

     Logo se ofereceram uns quantos voluntários. Pasme-se: quase todos eles de cor negra!

     Usou-se um estratagema indigno para os abater. De acordo com instruções do graduado, os guias informaram os cativos de que «podiam ir embora em liberdade, já não eram necessários, tinham cumprido com eficiência a sua tarefa  

     Duvido que eles tivessem acreditado. Não pareciam parvos e sabiam que em tempo de guerra mercês, dádivas, não existem. Não tinham, todavia, alternativa. O destino deles estava de antemão traçado.

     Olharam uns para os outros e iniciaram a caminhada lentamente. Os guias, num vozeirão de assustar o mais destemido, berram: «Corram; o nosso capitão pode arrepender-se

     Os homens começaram a correr como lebres, como danados, em ziguezague, na esperança vã de salvarem a pele, mas as balas são mais rápidas. Uma verdadeira chuva delas cai sobre as costas dos desgraçados, que nem tempo tiveram para dizer ai ou ui!

- Um verdadeiro assassínio – comenta Henrique.

- É também a minha opinião, mas de que vale?! Esses crimes ficarão impunes para sempre. E mais: daqui a uns anos os oficiais de um e de outro exército abraçar-se-ão como amigos! Tudo esquece.

Sem comentários:

Enviar um comentário