sexta-feira, 21 de setembro de 2018

LEMBRANÇAS AMARGAS
romance



                                                                       Por Joaquim A. Rocha





XXV
 
            Na toca do lobo a raposa ri e dança

     Passou mais algum tempo e agora estou quase a trajar de cinzento, a cor da farda do exército português. A minha mãe continuava a fazer jus à alcunha que alguém lhe pôs: «pinguça». A minha namorada, com quem pensava casar logo que da tropa regressasse, não me ligava mais: o carro e a conta bancária falaram mais alto do que o coração. Mas quem pode condenar esse desejo legítimo de viver sem dificuldades de espécie alguma? Deitemos para trás das costas os impertinentes ou pertinentes juízos; isso já aconteceu há muito tempo e não é agora que alguém se vai preocupar com coisas do passado. Venham mas é assistir ao espetáculo:
 


- Não acredito! A dançar com o Artur? E disse-me ela que não vinha à festa, estava adoentada, a mãe também tinha problemas de saúde, pulha, impostora!

- Não querias acreditar, eu bem te avisei.

- Apetecia-me partir-lhe a cara no meio desta gente toda. Cabra!

- As mulheres são todas iguais, umas megeras; tu vivias de olhos tapados, eu há muito tempo que te andava a chamar a atenção, mas não querias ouvir, pensavas que eu te mentia.

- Vou lá e parto-lhe as bentas, filha da mãe, era só amor, eu era o seu ídolo, preferia morrer a casar com outro, e agora aparece-lhe este, com carrinho, meia dúzia de francos no bolso do casaco, e toca a trocar-me por ele!

- Espero que te sirva de lição, faz como eu: tenho sempre uma ou duas de reserva, comigo elas não brincam. Vem comigo, vamos-lhe beber uns copos para esquecer.

- Primeiro quero que ela me diga aqui, no meio desta multidão, porque é que me trocou. Por ser pobre?

- Acalma-te. Olha que o Artur dá-te uma moia, o tipo tem o corpo puxado, é um latagão, tem aí os irmãos também, os cunhados, o melhor é esqueceres, não te faltarão raparigas, lixa-te para ela e para as da laia dela e vamos embora.

- Cabrona, mentirosa, falsa; nunca mais quero namorar na vida, jamais confiarei numa mulher, já não me bastava ter uma mãe sem jeito, agora também esta desavergonhada a desrespeitar-me, a abandonar-me como se eu tivesse peçonha; tantas promessas, tantos sonhos, e tudo deitado por água-abaixo; hoje destruiu as minhas ilusões, a minha razão de viver, oxalá vá para África, para a guerra, e por lá fique, ao menos morrerei lutando pela pátria.  

- Vamos embora, estás a martirizar-te, não adianta, mesmo que fosses ter com ela só arranjarias sarilhos, ela já fez a sua escolha, trocou-te pelo dinheiro, pelo carro, por um futuro mais desafogado. Que lhe podias tu oferecer? Um rancho de filhos borrados, uma cozinha minúscula para cozinhar para ambos e para os fedelhos, uma carteira magra, amiúde vazia, sempre a contar os tostões, a lamentar talvez ter casado contigo. Assim vai para França, mesmo que trabalhe vai ver dinheiro, o tal «l’arjão», como os emigrantes lhe chamam, algum conforto, virá passar as férias no seu popó, terão aqui uma vivenda, os filhos que nascerem em França estudarão e até podem vir a ter boas profissões, um futuro risonho; se gostas dela deixa-a seguir o seu rumo em paz.

- E o amor?

- Qual amor? O amor é ter a pança cheia, roupa para vestir, calçado, uma boa casa, dinheiro, vislumbrar um amanhã melhor para os filhos; tu, por enquanto, não lhe poderás oferecer nada disso, vais assentar praça, por lá andarás três ou quatro anos, irás quase de certeza para a guerra colonial, podes ficar ferido, doente, eu sei lá!

- Talvez tenhas razão, mas é cruel o que ela me fez, não lhe merecia isto; olha que gosto imenso dela, para mim não existe mais ninguém, nunca mais a esquecerei, magoou-me muito, não sei se lhe perdoarei um dia esta atitude, este procedimento, abominável e impiedoso.

- Vamos beber uns copos, olha, vem ali o Bordelhas, dizem que a pinga da Amélia é fora de série.

- Ora viva! Aqui os dois tão sossegadinhos, até parece que estão a tramar alguma.

- Aqui o Cândido é que sofreu um grande desgosto, a Bera trocou-o pelo Artur…

- Que grande novidade a tua, amigo Rina! Isso já toda a gente sabe, na Vila não se fala noutra coisa, que ela não é tola, não, dizem que o marmanjo tem pilim, olha, mulheres é o que há mais, eu se quisesse engatar aí uma…, mas não estou para a aturar, vamos mas é beber que estou com a garganta seca.
 



- Lá, lalá, lalá! O mundo está louco, o mundo está louco, e eu já estou rouco!


- Ó Cândido, filho de uma putona, cala-te que eu quero dormir. Caramba! Bebemos que nem uns camelos do deserto, estamos borrachos como cachos, e eu que tenho de pegar às oito!

- Deixa lá cantar o enganado, Bordelhas. «Quem canta seus males espanta». Que horas são?

- O sino da torre deu as sete, vamos para casa comer uma bucha e arrancar para o trabalho, e logo hoje que tenho de ir para a serra, nem posso com as pernas.

- Vão vocês embora, eu ainda fico aqui debaixo desta árvore, não posso com a cabeça.

- E querias tu pelejar com o Artur, nem sequer aguentas uma borracheira, és um podriqueiro!

- Ó Rina, sabes bem que não estou habituado, é a minha primeira bebedeira a sério, nunca tinha ficado fora de casa, a minha mioleira anda às voltas, parece que vou vomitar.

- Vamos levar-te a casa, a tua mãe que te faça um chá.
 
                                      
- Senhora Matilde, faça um chá ao seu filho que ele está doente.


- Ó desgraçado, que andaste tu a fazer esta noite?

- Apanhámos todos nós uma grande piela; foi de caixão à cova!

- Vai-te deitar, vai, que estás bonito; pareces um cadáver!

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