LEMBRANÇAS AMARGAS
romance
Por Joaquim A. Rocha
XXV
Na toca do lobo a raposa ri e dança
Passou mais algum tempo e agora estou
quase a trajar de cinzento, a cor da farda do exército português. A minha mãe
continuava a fazer jus à alcunha que alguém lhe pôs: «pinguça». A minha namorada, com quem pensava casar logo que da
tropa regressasse, não me ligava mais: o carro e a conta bancária falaram mais
alto do que o coração. Mas quem pode condenar esse desejo legítimo de viver sem
dificuldades de espécie alguma? Deitemos para trás das costas os impertinentes
ou pertinentes juízos; isso já aconteceu há muito tempo e não é agora que
alguém se vai preocupar com coisas do passado. Venham mas é assistir ao
espetáculo:
- Não acredito! A
dançar com o Artur? E disse-me ela que não vinha à festa, estava adoentada, a
mãe também tinha problemas de saúde, pulha, impostora!
- Não querias
acreditar, eu bem te avisei.
- Apetecia-me
partir-lhe a cara no meio desta gente toda. Cabra!
- As mulheres são todas
iguais, umas megeras; tu vivias de olhos tapados, eu há muito tempo que te
andava a chamar a atenção, mas não querias ouvir, pensavas que eu te mentia.
- Vou lá e parto-lhe as
bentas, filha da mãe, era só amor, eu era o seu ídolo, preferia morrer a casar
com outro, e agora aparece-lhe este, com carrinho, meia dúzia de francos no
bolso do casaco, e toca a trocar-me por ele!
- Espero que te sirva
de lição, faz como eu: tenho sempre uma ou duas de reserva, comigo elas não
brincam. Vem comigo, vamos-lhe beber uns copos para esquecer.
- Primeiro quero que
ela me diga aqui, no meio desta multidão, porque é que me trocou. Por ser
pobre?
- Acalma-te. Olha que o
Artur dá-te uma moia, o tipo tem o corpo puxado, é um latagão, tem aí os irmãos
também, os cunhados, o melhor é esqueceres, não te faltarão raparigas, lixa-te
para ela e para as da laia dela e vamos embora.
- Cabrona, mentirosa,
falsa; nunca mais quero namorar na vida, jamais confiarei numa mulher, já não
me bastava ter uma mãe sem jeito, agora também esta desavergonhada a
desrespeitar-me, a abandonar-me como se eu tivesse peçonha; tantas promessas,
tantos sonhos, e tudo deitado por água-abaixo; hoje destruiu as minhas ilusões,
a minha razão de viver, oxalá vá para África, para a guerra, e por lá fique, ao
menos morrerei lutando pela pátria.
- Vamos embora, estás a
martirizar-te, não adianta, mesmo que fosses ter com ela só arranjarias
sarilhos, ela já fez a sua escolha, trocou-te pelo dinheiro, pelo carro, por um
futuro mais desafogado. Que lhe podias tu oferecer? Um rancho de filhos borrados,
uma cozinha minúscula para cozinhar para ambos e para os fedelhos, uma carteira
magra, amiúde vazia, sempre a contar os tostões, a lamentar talvez ter casado
contigo. Assim vai para França, mesmo que trabalhe vai ver dinheiro, o tal
«l’arjão», como os emigrantes lhe chamam, algum conforto, virá passar as férias
no seu popó, terão aqui uma vivenda, os filhos que nascerem em França estudarão
e até podem vir a ter boas profissões, um futuro risonho; se gostas dela
deixa-a seguir o seu rumo em paz.
- E o amor?
- Qual amor? O amor é
ter a pança cheia, roupa para vestir, calçado, uma boa casa, dinheiro,
vislumbrar um amanhã melhor para os filhos; tu, por enquanto, não lhe poderás
oferecer nada disso, vais assentar praça, por lá andarás três ou quatro anos,
irás quase de certeza para a guerra colonial, podes ficar ferido, doente, eu
sei lá!
- Talvez tenhas razão,
mas é cruel o que ela me fez, não lhe merecia isto; olha que gosto imenso dela,
para mim não existe mais ninguém, nunca mais a esquecerei, magoou-me muito, não
sei se lhe perdoarei um dia esta atitude, este procedimento, abominável e
impiedoso.
- Vamos beber uns
copos, olha, vem ali o Bordelhas, dizem que a pinga da Amélia é fora de série.
- Ora viva! Aqui os
dois tão sossegadinhos, até parece que estão a tramar alguma.
- Aqui o Cândido é que
sofreu um grande desgosto, a Bera trocou-o pelo Artur…
- Que grande novidade a
tua, amigo Rina! Isso já toda a gente sabe, na Vila não se fala noutra coisa,
que ela não é tola, não, dizem que o marmanjo tem pilim, olha, mulheres é o que
há mais, eu se quisesse engatar aí uma…, mas não estou para a aturar, vamos mas
é beber que estou com a garganta seca.
- Lá, lalá, lalá! O mundo está louco, o mundo está louco, e eu já estou rouco!
- Ó Cândido, filho de
uma putona, cala-te que eu quero dormir. Caramba! Bebemos que nem uns camelos
do deserto, estamos borrachos como cachos, e eu que tenho de pegar às oito!
- Deixa lá cantar o enganado,
Bordelhas. «Quem canta seus males espanta».
Que horas são?
- O sino da torre deu
as sete, vamos para casa comer uma bucha e arrancar para o trabalho, e logo
hoje que tenho de ir para a serra, nem posso com as pernas.
- Vão vocês embora, eu
ainda fico aqui debaixo desta árvore, não posso com a cabeça.
- E querias tu pelejar
com o Artur, nem sequer aguentas uma borracheira, és um podriqueiro!
- Ó Rina, sabes bem que
não estou habituado, é a minha primeira bebedeira a sério, nunca tinha ficado
fora de casa, a minha mioleira anda às voltas, parece que vou vomitar.
- Vamos levar-te a
casa, a tua mãe que te faça um chá.
- Senhora Matilde, faça um chá ao seu filho que ele está doente.
- Ó desgraçado, que
andaste tu a fazer esta noite?
- Apanhámos todos nós uma
grande piela; foi de caixão à cova!
- Vai-te deitar, vai, que
estás bonito; pareces um cadáver!
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