LINA, FILHA DE PÃ
(romance)
Por Joaquim A. Rocha
6.º Capítulo
Lina sentia
orgulho em ser mãe daquela jovem, mas a sua liberdade, ou melhor, libertinagem,
estava acima de qualquer sentimentalismo. Tornara-se fria, calculista. Tudo que
fazia, obedecia a um plano gizado com paciência e rigor. Agora – 1949 –, estava
em Castro da Serra, como criada de servir na casa de um solteirão, comerciante,
com fama de rico. Soubera que ele precisava de uma empregada, pois a sua mãe,
com quem vivera, tinha morrido havia pouco tempo. Um dia, sabendo que ele
estava na Vila, por ter ido à feira semanal, foi ter com ele:
- Senhor Manuel: soube que anda à procura de uma mulher que trate da sua casa; se me quiser, eu não me importo de ir trabalhar para si. Levo-lhe o mesmo que levava na última patroa: 350$00.
- Tu não tens lá grande fama, criatura, mas eu preciso
mesmo de alguém que me trate do comer e da roupa. Se quiseres já podes ir
comigo hoje; vou ver ainda de uns assuntos e por volta das cinco vamos lá para
riba.
- Combinado, vou buscar as minhas coisas.
A freguesia de Castro da Serra ficava na montanha, a uns vinte e cinco quilómetros da Vila de Melcarte, e tinha de altitude cerca de mil metros, pouco mais ou menos. Era tudo a subir, mas recentemente fora inaugurada uma estrada para lá, prometida há mais de cinquenta anos, e havia camionetas de carga que também transportavam pessoas, juntamente com porcos e galinhas, cujo convívio era pacífico. À hora marcada, lá estavam os dois.
- Ainda pensei que desistisses, olha que não é fácil viver na serra.
- Os lobos também lá vivem e não se queixam!
- Tens sentido de humor, mulher; espero que não te
arrependas. Viveste sempre na Ribeira, onde as temperaturas no inverno são mais
altas e agradáveis. Em Castro as coisas são muito diferentes: no verão, o calor
arrasa; no inverno, quase que não se pode sair à rua. A neve atinge por vezes dois
metros de altura, bloqueia-nos as portas, ficamos presos, como se estivéramos
numa prisão!
- Hei-de adaptar-me. A vida não é fácil para ninguém.
Ele estava a pô-la à prova, mas não sabia ainda com quem se metera. Lina refinara nos últimos anos; tornara-se uma profissional na arte de enganar os outros. O ludíbrio tornara-se para si uma obsessão. Quando davam por ela, já um lar estava destruído, uma família destroçada.
A camioneta
chegou ao Terreiro, ou Praça da República, onde recolhia os clientes. Todos
queriam entrar primeiro a fim de escolherem os melhores lugares. Gerava-se uma
confusão tremenda. O dono da carripana recomendava prudência, não tivessem
pressa, o que era necessário é que todos coubessem. Ao fim de vinte minutos
estava tudo pronto para seguirem viagem, mais ou menos uma hora de caminho. A
viatura ia a abarrotar. Os bacorinhos grunhiam, as aves agitavam-se, os patos e
os perus mostravam a sua cabeça fora das cestas, nervosos. As pessoas iam
sentadas e de pé, encostadas umas às outras, dando azo a certas brincadeiras.
Os outros passageiros riam-se, tornando a viagem menos cansativa e monótona. Muitos deles nunca antes tinham andado numa viatura motorizada, apenas em burros e cavalos.
Eram quase dezanove horas quando chegaram ao centro de Castro da Serra. Muitas daquelas pessoas ainda teriam que andar a pé alguns quilómetros para chegarem aos seus lares, sitos em lugares distantes da sede da freguesia. Ainda teriam, pelo menos, duas horas de luz solar, o que lhes permitia ir com alguma segurança e tranquilidade.
- Ó tio Bernardino, veja lá se não se encosta de mais,
não se aproveite, olhe que o meu namorado não vai gostar! – dizia, a rir, uma das passageiras.
- Que queres, cachopa? Não há espaço, temos que nos
sujeitar a estas reles condições. A viagem também não é muito longa. Por outro
lado, o teu prometido está na França, não vai saber. Esta vida tem dois dias:
temos que saber gozá-los.
Os outros passageiros riam-se, tornando a viagem menos cansativa e monótona. Muitos deles nunca antes tinham andado numa viatura motorizada, apenas em burros e cavalos.
Eram quase dezanove horas quando chegaram ao centro de Castro da Serra. Muitas daquelas pessoas ainda teriam que andar a pé alguns quilómetros para chegarem aos seus lares, sitos em lugares distantes da sede da freguesia. Ainda teriam, pelo menos, duas horas de luz solar, o que lhes permitia ir com alguma segurança e tranquilidade.
O senhor
Manuel pegou na tralha e dirigiu-se a sua casa, ali perto do local onde ficava
a camioneta. Apesar de tudo, era um privilégio residir ali, perto da igreja, do
padre, das lojas de comércio, uma das quais era dele. Vendia um pouco de tudo:
mercearia, tamancos, roupa, bugigangas, o que calhava. A maior parte das coisas
que tinha à venda eram compradas na Galiza, mas também comprava na Vila, embora
mais caro, mas tinham outra qualidade, outro requinte. Os galegos pouca coisa
tinham de interesse: apenas o pão, uma ou outra conserva, o chocolate, uns
rebuçados, um ou outro licor, e pouco mais! O calçado galego não prestava, só
alpercatas, fabricadas às sete pancadas, e o mesmo se podia dizer da roupa: apenas
as calças de pana se aproveitavam. As bebidas nada valiam, salvo raras
excepções, mas os castrejos também não eram muito exigentes, não foram criados
em grandes luxos, por isso uma qualidade média baixa para eles era o suficiente.
- Estamos no meu mundo, mulher. Finalmente a casa! Vais acender o lume e fazer qualquer coisa para comermos. Estou cheio de fome: não lhe rilhei quase nada durante o dia.
um cravo a sair da concha |
- Estamos no meu mundo, mulher. Finalmente a casa! Vais acender o lume e fazer qualquer coisa para comermos. Estou cheio de fome: não lhe rilhei quase nada durante o dia.
- O que é que temos para a ceia?
- Temos ovos, presunto, batatas… está tudo no arcaz; e
agora trago isto de Melcarte, abre e vê o que te serve, o que te dá jeito.
Trata de tudo, que eu vou buscar mais um escano para depois tu te sentares. E
pega este mandil, põe-no, para não te sujares.
Lina
dirigiu-se para a cozinha e ia vomitando – tanta porcaria! Como se podia viver
assim? Nem os suínos suportariam aquele cheiro a fumo e a esterco. Aquela habitação
nunca fora limpa!
- Ó senhor Manuel, tem sabão e vassoura?
- Tenho mulher, tenho; eu vou ali à loja buscar.
A mercearia
e tasca ficavam no rés-do-chão da casa. Estava tudo misturado: nada obedecia a
critérios de arrumação – carvão perto do bacalhau, as vassouras perto do arroz
e massa, tudo num turbilhão babélico! As moscas, e outros insectos, entravam e
saíam em total liberdade, como em terreno conquistado.
- Aqui tens: se precisares de mais alguma coisa pede.
Ela agarrou-se
ao trabalho com determinação e denodo. Pôs água ao lume, depois lavou a louça,
arrumou a cozinha e fez a ceia. Desceu à loja, já era quase noite, e chamou o
patrão:
- Senhor Manuel: a ceia está pronta; venha para a
mesa.
- Já vou; deixa-me só acabar aqui umas coisas.
Pegou numa
garrafa de vinho e subiu. Comeu regaladamente e no final da refeição diz:
- Estava excelente; cozinhas muito bem. És uma
cozinheira de se lhe tirar o chapéu.
A Lina ficou
radiante. Todo aquele esforço havia de ser compensado. Ela não fazia nada sem
ser por interesse. Aquele homem solteiro, mais velho do que ela uns vinte anos,
cheio de dinheiro, segundo constava, havia de repartir com ela tudo aquilo que
tinha, espremê-lo-ia até ao tutano.
O que mais
estranhou em Castro da Serra foi a vestimenta dos seus habitantes, sobretudo as
mulheres, vestidas de saias e saiotes de burel, e a sua maneira de falar.
Acerca disso até se contava uma história engraçada, uma espécie de anedota: um
homem da Ribeira, chamado João – serralheiro, ou funileiro – fora um dia ali
levar uns objectos da sua oficina, que tinham ido lá parar a fim de serem
consertados. A senhora da casa convidou-o a comer umas batatas, um naco de presunto,
e sopa. Dirigiu-se então a uma rapariga, sua criada, que estava sentada, e
disse-lhe: «Ó Rôsa! – Eu bou-me ao barbeito.
O senhor Juôn se quer mais caldo que o peida. E tu, Rôsa, lebanta o cu e dá-lho!»
Estranhava
também a falta de luz eléctrica e água canalizada. Aquela era substituída por
candeeiros a petróleo e candeias; esta ia-se buscar ao fontanário, que não
ficava longe, mas acarretar água não estava nos seus horizontes; teria de
convencer o seu patrão a arranjar um rapaz possante que o fizesse.
A habitação
possuía quatro quartos, embora pequenos, todos com camas de madeira, pequenas e
mal construídas. Ao meio via-se uma sala, não muito grande, com uma mesa tosca
e algumas cadeiras, já a pedirem reforma. Casas de banho não havia! Tudo
cheirava a fumo, por ali. Tinha imenso trabalho pela frente até que chegasse o
dia em que pudesse dizer: «está tudo ao
teu gosto, Lina!»
Em Castro da
Serra, naquele tempo, não havia vida nocturna. As pessoas deitavam-se depois do
jantar (ceia) e levantavam-se de manhã cedo, mal o sol rompesse. O senhor
Manuel, depois de comer, foi até à sala, accionou o candeeiro, e folheou o semanário
que trouxera da sede do concelho. Tratava-se do «Notícias de Melcarte», jornal
que já se publicava há muitos anos.
- Não traz nada de jeito – resmunga.
Lina ouviu
aquele som estranho e foi ter com o patrão.
- Passa-se alguma coisa, senhor Manuel? Precisa de
algo?
- Estava aqui a remoer por causa do jornaleco: não
traz notícias de jeito.
- Que é que o senhor quer, não têm nada para lhe porem
lá dentro. A mim não me afecta, não sei ler!
- Olha que ler faz falta, criatura. A mim tem-me ajudado
muito, sobretudo nas contas. Se fosse analfabeto todos me enganavam.
- Pois à Lina ninguém engana: só quando eu quero.
- Tens pinta de esperta, isso tens, mas ler e escrever
ajudava-te um pouco. Mas num ponto dou-te razão: as mulheres não precisam de
grande instrução literária; têm de saber cozinhar, tratar da roupa do homem e
parirem os filhos, para isso é que elas nasceram. Para as coisas maiores, de grande
responsabilidade, existe o homem, o macho, a natureza dotou-o com outros
saberes e habilidades.
Passado um
pouco virou-se para ela e diz-lhe:
- Eu durmo no quarto maior, vai ver se a cama está
feita; às vezes vem aqui a casa a Angélica, a minha vizinha, dar uma demão nisto.
- Eu vou verificar.
Dirigiu-se
ao quarto. A cama estava de facto feita, mas pessimamente. Só tinha o lençol de
baixo, muito sujo, e aquela roupa a cheirar a mofo.
- Ó patrão: não há lençóis lavados? O que lá tem
precisa de uma barrela.
- Vê naquele arcaz, mulher. Tenho lá muita roupa.
Ela abriu um
gavetão e retirou de dentro dois lençóis de linho e uma coberta. Dirigiu-se ao
quarto, retirou a roupa da cama e fez tudo de novo com a roupa que levara.
- Senhor Manuel, já se pode deitar.
Ele entrou,
olhou para a cama, e diz:
- Hoje não é dia de festa, mulher! Que luxo!
- O senhor merece dormir todas as noites numa cama
limpa. Não se incomode que eu trato de tudo.
- Vou dormir toda a noite como um anjinho.
Ela saiu pé ante pé, fingindo que ele já
estava a dormir, e o castrejo gostou daquele gesto da matreira. Que sorte
tivera! Por trezentos e cinquenta escudos por mês tinha arranjado uma criada
exemplar: asseada, trabalhadora, e agradável como mulher; uma boa perna, uns
seios bonitos, e bem mais nova do que ele… Quem sabe se não a meteria na cama
uma dessas noites?
Lina entrou
num dos quartos, retirou toda a roupa da cama, foi buscar roupa lavada, e
depois deitou-se. Estava extenuada: a viagem, a ceia, a limpeza, tinham-na
arrasado. Quando tudo estivesse em ordem, o trabalho já seria menor.
Adormeceu
profundamente e sonhou com o seu magistrado: estavam na cama, abraçados um ao
outro, beijavam-se freneticamente, viajando, inebriantes, rumo ao Éden. Chegados
lá, deram de caras com Adão e Eva; ele dormia regaladamente, todo nu, apenas
uma simples parra lhe cobria as partes pudendas; ela tinha na mão uma maçã
vermelha, muito vermelha, que trincava com prazer e malícia. Ela olhou para os
recém-chegados e, sorrindo, diz-lhes: «sejam
bem-vindos ao paraíso!»
Rompia a manhã quando ouviu cantar os galos.
Logo a seguir o patrão levantou-se. Ela esquecera-se de um pormenor: não lhe
pusera no quarto cuecas nem a camisola interior; o homem não ia vestir a mesma
roupa da véspera, estava demasiado suja. Levantou-se apressadamente e foi ter
com ele:
- Senhor Manuel: espere um bocadinho que eu vou
buscar-lhe umas cuecas e uma camisola interior.
- Ó mulher, esta roupa ainda me dá para uma semana.
- Não precisa de andar com roupa suja. Espere um
pouco.
Tinha dado
uma vista de olhos por toda a casa e já descobrira a roupa dele. Levou-lha. Ele
estava deitado, à espera dela.
- Queres pôr-me bem cheiroso, depois as raparigas
atiram-se a mim!
- Olhe que o senhor ainda rompe bem meias solas! Quem
dera a muitas raparigas tê-lo no leito.
- Vou-te confessar uma coisa: já não vejo fêmea há
muito tempo. Ando metido nos negócios e nem tempo me sobra para me dedicar a
elas! E das rameiras fujo, por causa da sífilis.
- Pois olhe que tem perdido bastante. Os homens
nasceram para dormirem com as mulheres, para terem prazer e filhos.
- Isso é verdade, Lina. Eu andei pelo estrangeiro,
sempre a trabalhar, a juntar uns cobres, depois meti-me nos negócios, e
esqueci-me dessas coisas.
Ela
aproximou-se dele, sorrindo com imensa meiguice, com aquele ar só seu, de velhaca
matreira, e meteu a mão direita por entre os lençóis, à procura de qualquer coisa,
talvez das cuecas sujas. Ele compreendeu o fito, entusiasmou-se, mandou às
urtigas as precauções, pegou-lhe na mão e levou-a directamente ao falo. Não tardou
nada que os dois corpos estivessem unidos, amalgamados, num arfar ruidoso, iniciando
uma viagem semi-narcótica através do vácuo.
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