LINA - Filha de Pã
(romance)
Por Joaquim A. Rocha
desenho de Rui Nunes |
7.ºcapítulo (continuação)
O plano está em andamento. Havia, no entanto, um
pormenor que tinha de apurar. Como explicar à Umbelina que só restava uma
criança? Teria de agir assim: depois do suposto parto informá-la-ia, a fim de
não desconfiar da tramóia, que a criança dela, Lina, morrera ao nascer, e desse
modo não a fora registar, nem dera a conhecer isso a ninguém; o bebé da caseira
seria o dela. Umbelina calava-se bem calada, não faria perguntas impertinentes,
pois além de analfabeta era também um tanto ou quanto bronca. Segredo contra
segredo. Tudo perfeito. Na mesa, à hora do jantar, ou ceia, Lina conversa com o
comerciante:
- Manuel, estás quase a ser pai. Espero que seja um
rapaz, bonito e forte como tu. O nome já está escolhido, lembras-te?
- Lembro-me perfeitamente. Não precisas de alguém que te
dê uma mão nestes dias?
- Já tratei disso. Uma rapariguita de Cartagães, chamada
Joana, vem ajudar-me. É filha duns caseiros. É educadinha e respeitadora. Quer
ser criada de servir, oxalá tenha sorte, como eu tive. Outra coisa: os papéis
do casamento, estão a andar?
- Por causa da carta de condução deixei atrasar isso,
mas não te preocupes: prometi casar contigo e não vou dar o dito por não dito –
os castrejos só têm uma palavra. E além disso, como é que eu ia viver sem ti a
meu lado? Tu és uma bruxa, enfeitiçaste-me!
- Sou a tua fada boa, e ainda bem. Só quero que sejas
feliz à minha beira; és boa pessoa, honesto e trabalhador, e por isso mereces
tudo de bom.
Ele
deliciava-se com estas palavras. Era bom ouvir falar bem dele. Deleitava-o. Em
Castro da Serra não havia desses mimos. As pessoas eram rudes, embora
sensíveis, pouco faladoras, evitando a todo o custo o elogio fácil. Mediam as
palavras, pesavam-nas na balança da sobriedade, e desconfiavam daqueles que as
desperdiçavam. Tinha custado imenso a aprendê-las e agora não as podiam gastar
de qualquer maneira. Tal como o dinheiro, a palavra valia pela sua raridade e
critério de seu uso.
Finalmente
chegou o dia da tão aguardada paridela. O plano fora cumprido até ao ínfimo
pormenor. A Umbelina tivera há dias dois rapazes e um deles escondeu-o até dos
irmãos, à excepção da irmã mais velha, a Joaninha, a quem deu algumas informações,
só as necessárias. Estava destinado à senhora Lina e esperava que esta o fosse
buscar.
Nesse dia
especial o senhor Manuel fora a Valença fazer o exame de condução, só voltaria
à tardinha. Se tudo corresse bem, como previsto, iria ter uma agradável surpresa
à chegada: estaria à sua espera o tão desejado filho!
Logo que o
patrão saiu, a Lina mandou um rapazito a Cartagães, a casa da senhora Umbelina,
com um recado especial: «podiam trazer a
encomenda.» «Ah! E não te esqueças de
trazer duas galinhas que já estão pagas. Só isso.» E repetiu o recado duas
ou três vezes para o miúdo não se esquecer. «Que jeito dava ter um telefone» - pensou ela.
A mulher
deu ordens à filha para levar a criança à Vila. As galinhas foram entregues ao
rapaz. Pelo caminho ainda alguém perguntou à Joana:
- Que levas aí tão escondidinho?
- É um bacorinho; não pode apanhar frio.
Lina preparou tudo. Matou as galinhas,
cujo sangue espalhou pelos lençóis; depois olhou para o bebé, deu um jeito nos
pêlos das pestanas, a fim de parecer que era um recém-nascido, acabado de sair
do seu ventre. Colocou-o num bonito berço, adquirido recentemente, preparou
leite para lhe dar quando tivesse fome, já tinha fraldas para ele, estava tudo
em ordem. Olhou para um espelho que tinha no quarto e comentou: «és genial, Lina: ninguém te leva a palma!»
Depois chamou a rapariga e começou a dar-lhe instruções:
- Daqui a pouco chega o senhor Manuel, o pai do
Leandro. Tu só falas se te perguntarem alguma coisa. Antes de ele chegar eu vou
para a cama; já vou ter contigo à cozinha para te ensinar a fazer canja para
mim. Tu e o senhor Manuel vão comer massa com carne de galinha. Temos que pô-la
já a cozer.
- Está bem, patroa. Eu faço tudo como a senhora manda.
A moça era
esperta e aprendia tudo depressa. A carne já estava a cozer, tinha agora que
preparar o refogado para depois confeccionar a massa com carne de galinha. A
senhora Lina já lhe pusera ali a quantidade de sal necessário, não fosse salgar
a comida. Tudo em ordem. O dono da casa devia estar a aparecer. A carreira que
vinha do concelho vizinho costumava chegar por volta das seis da tarde. Mais
meia hora e ei-lo a surgir radiante, pois de certeza que ficara bem no exame de
condução. Nem podia ser de outro modo: o dinheiro que dera àquela malta
chegava-lhe a ele para comer um mês! Gatunos! Todos se aproveitavam. Mas se não
desse, reprovava! O que é que aprendera na escola? Quase nada! O código era
difícil para raio! Aqueles sinais, aquelas regras, aquilo só para doutores! As
subidas eram uma dor de cabeça: a embraiagem ia-se logo abaixo. A condução era
fácil quando circulava nas rectas, logo que se aproximava uma curva estremecia
– o carro fugia para o meio da estrada, e o instrutor dava logo um grito:
- Senhor Manuel, o senhor quer matar-nos? – perguntava, meio a rir meio a sério.
- Não, homem, não! O volante é que não obedece.
- Lembre-se sempre que o trânsito é feito em dois
sentidos – nós vamos nesta direção e os outros carros vêm na direção contrária.
Logo, a estrada tem de dar para ambas as viaturas. Se o senhor ocupa o espaço
que pertence a outro condutor sabe o que acontece?
- Um choque frontal!
- Exactamente. E haverá feridos e até mortos. Por isso
temos de respeitar os espaços, para nossa própria segurança. E não acelere
muito, pois esta estrada é pouca larga e o perigo espreita a todo o momento.
Ele ouvia
com paciência o instrutor, o hábil especialista, mas o seu cérebro já estava adormecido,
atrofiado, por pouco usado, para aceitar mais conhecimento. Dos genes herdados,
os melhores já tinham partido. «Burro
velho não aprende línguas» - costumava-se dizer. E também se dizia: «é muita areia para a minha camioneta!» E
de facto era assim. A sua esperança era a futura experiência; com ela tudo se
resolveria. Por outro lado, também não havia muitos carros na estrada, a maioria
do povo era pouco mais do que pobre, não tinha dinheiro para esses luxos.
Finalmente
chegou a casa. Ia eufórico. Tinha passado. Agora trataria da papelada,
detestava a burocracia, mas tinha de ser, até pensava encarregar o solicitador
de tratar de tudo. Tinha de lhe pagar, é certo, mas não havia de ficar por uma
fortuna, e assim livrava-se dessas canseiras burocráticas. O carro, já tinha
decidido, comprava-o no Porto, o dono do «stand» trazia-lho a Melcarte. Antes
de se aventurar até à cidade, andaria aqui pelo concelho; quando tivesse
experiência bastante já iria mais longe. Os seus conterrâneos roer-se-iam de
inveja.
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