ENTRE MORTOS E FERIDOS
(dois anos de guerra na Guiné-Bissau)
Por Joaquim A. Rocha
// continuação...
O jovem Henrique
empolgava-se com a conversa. Não conhecia África, mas pelo que lera e ouvira dizer
julgava-se apto a ter também a sua opinião. Comenta:
- O meu amigo esquece que Salazar nunca
permitiria a fundação de um Partido político nas ex-colónias. Depois, quando
chegou Marcelo Caetano ao poder, em 1968, já era demasiado tarde!
- Talvez tenhas razão. Não abordo mais
esse polémico assunto. O nosso dever como soldados portugueses era combater o
inimigo da pátria. Não nos encontrávamos na guerra para discutir política; o
nosso humilde papel consistia em honrar a farda que trazíamos vestida e o nosso
país. Obviamente que não se lutava nas colónias com a mesma garra que lutaram
os primeiros portugueses contra os chamados mouros, ou depois, já no tempo de
D. João I, contra os castelhanos. Ou até, no reinado de D. Maria I, contra as
tropas de Napoleão Bonaparte. Contudo, alguns militares, graças à sua coragem,
ou jovem loucura, ombrearam com esses ancestrais guerreiros. Proezas individuais
surgiam aqui e ali, numa demonstração de brio e brava ousadia. Nasceram para
serem heróis ou mártires!
- O Cândido gosta imenso de filosofar…
- Adoro discorrer sobre a História; mas
estou a maçar-te com estas coisas… Desculpa!
- De maneira nenhuma! Estou fascinado.
Continue, por favor.
*
- Noite em Cufar. O céu estava limpo e
estrelado. Milhares e milhares de estrelas cintilavam, como que a tentar
transmitir aos terrestres uma mensagem de paz e de amor. Encontrava-me de
guarda num daqueles abrigos subterrâneos. Um pesado silêncio, pouco habitual,
cobria todo o espaço à minha volta, dando-me a incómoda sensação de que algo
estava para acontecer. Confesso-te, não sou dotado de qualquer tipo de
premunição, no entanto…
- Algo se estava a passar de estranho.
O que aconteceu? – solicita Henrique, com
ansiedade.
- Passados que foram alguns longos
minutos, uma estranha luz aparece no céu. «De
que se trataria?» - interrogo-me. Avião não era de certeza – estes fazem um
barulho enorme ao cruzarem os ares; os cometas, bólides do espaço, deslocam-se
tão rapidamente que logo surgidos desaparecem da nossa vista! Talvez um
helicóptero. Eureka! – até já nos tinham falado neles. Possuíam um motor silencioso
e vinham pura e simplesmente observar, espiar-nos.
- Parece mentira – exclama Henrique.
- Mas é a pura verdade! Esses «grupelhos de tanga», como eram
designados pela tropa portuguesa, possuíam meios aéreos, embora limitados a
este tipo de máquina. O início! É provável que não fossem os naturais da Guiné-Bissau,
mas sim os seus aliados, a pilotá-los. De qualquer modo, não estavam assim tão
atrasados como a malta pensava ao princípio da contenda.
- Como reagiu?! – indaga o jovem, cada vez mais curioso.
- Deixei-o aproximar-se e, mesmo
sabendo que quaisquer balas disparadas não o atingiriam, desfechei um carregador
inteiro da metralhadora na sua direção. Os outros soldados começaram também a
abrir fogo logo que se aperceberam do que estava a acontecer. O helicóptero,
que se encontrava a uma altitude razoável, deu uma volta e retirou-se. Um dos
meus camaradas sentinela, furioso, gritou: «Filho duma cadela; se voltas,
estoiro-te como a um sapo!»
- Claro que essa ameaça não passava de
fanfarronice!...
- Obviamente. Onde estavam os mísseis
para o derrubar? Na ocasião, somente o Super-Homem nos poderia valer, mas esse
encontrava-se nos Estados Unidos da América.
- E não tinha pouco que fazer! – brinca Henrique.
- Mas continuando: uma grande e
enigmática «operação» ganhava forma.
Atuariam em conjunto, na mata do Cantanhez, três batalhões (cerca de dois mil homens), algumas
Companhias isoladas, e a milícia de Catió, comandada pelo famosíssimo Pedro
Bâkar.
- Esse nome não me é totalmente
estranho…
- Esse pequeno homem, de cor negra, com
a patente de alferes de milícias, tinha – segundo a voz corrente – a sua cabeça
a prémio. O PAIGC temia-o, visto que ele, com o seu grupo de trinta homens,
espingardas ao ombro, assemelhando-se a personagens de um filme de ficção
científica, fazia mais estragos nas suas fileiras do que um batalhão do nosso
exército!
- Caramba! Era um autêntico predador – explode Henrique, admirado com tanta ousadia
e coragem.
- Conhecia, tão bem ou melhor do que
eles, toda a região de Catió e sabia, por informes habilmente recolhidos, onde
o inimigo tinha posições. O exército português cumulava-o de mimos e
comentava-se à boca semi-cerrada que o governo subsidiava os estudos superiores
de um filho seu.
- O Cândido conhecia-o?!
- Já o tinha visto noutra ocasião. A
sua pele, de um negro luzidio, cobria um corpo apolíneo: magro, mas musculado.
Os seus olhos davam logo a sensação de uma firmeza e vontade inigualáveis. Não
parecia arrogante nem autoritário, porém as suas ordens eram prontamente
acatadas e cumpridas.
- Um chefe!
- Um líder, como agora se diz. À sua
volta parece que nos sentíamos mais seguros… O nosso comandante chamou-nos e
disse-nos: «Hoje é um dia importante e
especial para todos; vamos enfrentar uma força inimiga considerável, uma
fortaleza quase inexpugnável e até agora invencível. Nada de receios. Connosco
vão três batalhões e a milícia de Pedro Bâkar. Além disso teremos apoio aéreo e
de artilharia pesada. A “acção” pode durar dois ou três dias, dependerá dos
resultados obtidos. Vamos tentar cercar o inimigo, acossá-lo, desalojá-lo,
abatê-lo, escorraçá-lo do Cantanhez. Peço-vos firmeza, coragem, brio; o soldado
português é digno, valoroso, intrépido, e hoje mesmo porá à prova essas qualidades.»
- Belo discurso! Esse senhor podia ser
deputado!
- Também acho. Com ele na Assembleia
ninguém dormia. Arrancamos. Junto ao cais de Catió estavam as lanchas blindadas
à nossa espera. Do rio Combidjam passámos ao rio Cacine. Os marujos,
cautelosos, sempre atentos, não tiravam os olhos das margens. A emboscada
poderia surgir a todo o momento – nunca fiando!
- Até eu estou arrepiado! – diz Henrique, estremecendo ligeiramente.
- Desembarcámos por volta das duas
horas da manhã. Enterrados na lama até à cintura lá fomos andando, andando, em
fila indiana, agarrados uns aos outros para não nos perdermos. Milhares de aves
pernaltas alimentavam-se regaladamente naquelas enormes extensões de lama, a
que chamavam bolanhas, indiferentes à “tempestade”
que se avizinhava. Pregaram-nos um grande susto: pareciam guerrilheiros a
apontar as suas armas! Já tínhamos caminhado bastante quando a voz do colega que
ia à minha frente me sussurra: «Ordem
para parar, passa palavra.» Assim fiz, mas muito a contra-gosto, pois
encontrava-me ainda no lamaçal e não era nada agradável aguardar ali naquele
sítio infestado de mosquitos enormes, sedentos de sangue, e a entrar-me pelas
narinas um cheiro nauseabundo a águas podres e fétidas.
- O que vocês sofreram!...
// continua...
Boa tarde Joaquim.
ResponderEliminarGostaria de pedir-lhe um grande favor: caso conheça algum dos membros de família Araujo (Manuel Joaquim Araujo, Maria Carolina de Almeida Araujo, Rui Manuel de Araujo Rodrigues), entrar em contacto comigo. O meu email é: yulia.coimbra@bluetagus.com
Muito obrigada.