quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

ENTRE MORTOS E FERIDOS
(dois anos de guerra na Guiné-Bissau)
 
romance histórico
 
Por Joaquim A. Rocha 




14.º Capítulo


TERRA DA MORTE

 

     A tarde na capital do país estava cinzenta, ameaçava chuva e trovoada, e o Cândido sem vir. O que lhe acontecera? Não era costume esperar tanto por ele. De repente avista-o ao virar da esquina. Vinha apressado. Sentou-se e pediu desculpa pelo atraso. Explicou o que lhe tinha sucedido, nada de grave, coisas que acontecem.

   O amigo deixou-o descansar um pouco e depois perguntou-lhe:   

 
- Fizeram o percurso de Catió a Cufar ainda durante o dia? 

- Sim, mas chegámos à noitinha. Fomos recebidos em verdadeira apoteose. Não era caso para menos: íamos proporcionar a praças, sargentos e oficiais a sua colocação noutra zona menos perigosa, ou talvez o regresso à Metrópole se a sua prestação de serviço estivesse no fim.

- E as instalações, como eram?

- O quartel de Cufar, de quartel nada tinha! Tratava-se de velhas ruínas de um edifício, outrora uma fábrica de óleo de amendoim, rodeadas de arame farpado. A água para consumo e higiene era extraída de um fundo poço, mas a sua cor, cheiro e gosto, deixavam muito a desejar. Que saudades da água da minha terra: da Fonte da Vila, da Fonte do Vido, fresca e leve, sem sabor, sem quaisquer cheiros, com ela faziam-se refrescos divinais. Que saudades!

- Era mesmo o inferno!... – proclama Henrique, cheio de pena.

- Podes crê-lo. Camas… não havia! Dormia-se em colchões de borracha, os quais tínhamos primeiro de encher com o ar dos nossos pulmões: soprávamos, soprávamos, até ficarmos exaustos. Durante a noite acordava-se alagado em suor. O mosquiteiro de nada servia, visto não haver estrutura de suporte – as melgas assassinas tinham o seu alimento garantido.

     Os víveres e demais material chegavam de helicóptero ou avioneta; por transporte terrestre seria impossível – as perdas em vidas e bens seriam elevadíssimas. É que nessa zona vivíamos em beligerância permanente e feroz. Outra coisa, porém, não se esperaria, pois olhando para o mapa vê-se que Cufar se situa bem perto da República da Guiné, país que sem rebuço apoiava a guerrilha anti portuguesa.

- Compreende-se: queriam a África para os africanos negros – acrescenta Henrique, até ali silencioso e atento.

- Eu hoje também aceito em parte essa teoria, apesar de considerar que o planeta Terra é de todos, cada qual deve residir onde bem lhe agrada, se não prejudicar, claro está, os outros. Porém, nessa altura, quem sofria as consequências dessa ajuda éramos nós! Enfim! São coisas para esquecer.

     Na primeira noite que aí permaneci acordei deveras sobressaltado, meio sonâmbulo, com o barulho ensurdecedor dos obuses e canhões que do improvisado aquartelamento se disparavam para o interior da mata. Até dava a impressão de que se estava a travar uma guerra contra os fantasmas da noite que habitavam a floresta profunda!

     Os holofotes, colocados estrategicamente, iluminavam todo o terreno à volta, mas mesmo assim convinha prevenir.

- Mas, com tanta luz, davam ao inimigo a vossa localização!

- Não se pode dizer que estivéssemos à mercê do “infiel”, pois de dez em dez metros existiam abrigos subterrâneos (não como os actuais, cómodos e à prova de bombas atómicas), nos quais se encontravam soldados bem armados e de ouvido à escuta.

- E como é que comunicavam entre si?

- Em lugar do tradicional «sentinela à alerta» e «alerta está» ouvia-se o matraquear característico das metralhadoras G-3!

     Um episódio gravou-se para todo o sempre na minha mente: a fuga de dois prisioneiros através do arame farpado! Estávamos perante uma autêntica proeza, uma façanha inédita. Os tipos, apesar da pele rasgada e sangrando com abundância, fugiam velozmente pelo meio do capim em direção à mata. Pareciam lebres ou galgos! As balas das metralhadoras logo que nos apercebemos da fuga, buscaram, sôfregas, os seus corpos.

- Atingiram-nos?

- Nunca soubemos se escaparam ou não – quem se atreveria a transpor o arame para confirmar? Para lá da clareira era a floresta, e aí espreitava de forma permanente o perigo.

     De Cufar fazíamos regularmente incursões até à fronteira com a Guiné-Konacry. Pelo caminho, armadilhas colocadas aqui e ali iam ferindo, ou matando, alguns dos meus camaradas. Quando isso acontecia, improvisavam-se macas com ramos verdes e chamava-se, pela rádio, o helicóptero para levar as vítimas para o Hospital.          

     Os enfermeiros da Companhia, um cabo e dois soldados, por sinal muito corajosos, à excepção do furriel, que era um medricas, e cujos conhecimentos de enfermagem deixavam muito a desejar, raras vezes nos acompanhando, acudiam aos feridos consoante as suas possibilidades. Os nossos adversários aproveitavam esta situação algo confusa para iniciarem um ataque que, muitas vezes, durava duas ou três horas!

- Eles conheciam, certamente, muito bem o terreno – vocês não tinham hipóteses!

- Nenhumas! Numa dessas batidas, todos caminhando em fila indiana, eu ia em quarto lugar. De repente deu-se uma forte explosão. Fomos atirados em pirueta a metros de distância. Levanto-me, apalpo todo o meu corpo, e verifico que felizmente não tinha sido atingido por estilhaços. Os três da frente, entre eles o alferes Bizarro, não tiveram a mesma sorte. Os fragmentos das granadas inimigas, armadilhadas por hábeis mãos, alojaram-se profundamente nos seus frágeis corpos. Apelou-se de imediato ao helicóptero. O oficial, que integrara a Companhia já nós estávamos em África havia dois meses, soubemo-lo mais tarde, teve de ir para Lisboa, pois o seu estado inspirava cuidados.

- E quanto aos soldados?

- Um deles encontrei-o há pouco tempo, num desses almoços anuais: anda numa cadeira de rodas! Era um latagão. Mete dó.

- E o Estado dá-lhe alguma coisa de jeito?

- Uma miséria, segundo ele nos disse. Vai sobrevivendo!

     Bem, por hoje dou por terminada a narrativa, vem aí a noite, temos de ir jantar, amanhã é mais um dia de trabalho e de estudo.

- Se nos saísse a taluda não precisaríamos mais de trabalhar!...

- Essa só sai aos ricos, àqueles que jogam forte; de vez em quando compro uma cautela, mas nem a terminação!
//... continua.//

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