ENTRE MORTOS E FERIDOS
(dois anos de guerra na Guiné-Bissau)
romance histórico
Por Joaquim A. Rocha
14.º Capítulo
TERRA DA MORTE
A tarde na capital do país estava
cinzenta, ameaçava chuva e trovoada, e o Cândido sem vir. O que lhe acontecera?
Não era costume esperar tanto por ele. De repente avista-o ao virar da esquina.
Vinha apressado. Sentou-se e pediu desculpa pelo atraso. Explicou o que lhe
tinha sucedido, nada de grave, coisas que acontecem.
O amigo deixou-o descansar um pouco e depois
perguntou-lhe:
- Fizeram o percurso de Catió a Cufar ainda
durante o dia?
- Sim, mas chegámos à noitinha. Fomos
recebidos em verdadeira apoteose. Não era caso para menos: íamos proporcionar a
praças, sargentos e oficiais a sua colocação noutra zona menos perigosa, ou talvez
o regresso à Metrópole se a sua prestação de serviço estivesse no fim.
- E as instalações, como eram?
- O quartel de Cufar, de quartel nada
tinha! Tratava-se de velhas ruínas de um edifício, outrora uma fábrica de óleo
de amendoim, rodeadas de arame farpado. A água para consumo e higiene era
extraída de um fundo poço, mas a sua cor, cheiro e gosto, deixavam muito a
desejar. Que saudades da água da minha terra: da Fonte da Vila, da Fonte do
Vido, fresca e leve, sem sabor, sem quaisquer cheiros, com ela faziam-se
refrescos divinais. Que saudades!
- Era mesmo o inferno!... – proclama Henrique, cheio de pena.
- Podes crê-lo. Camas… não havia!
Dormia-se em colchões de borracha, os quais tínhamos primeiro de encher com o
ar dos nossos pulmões: soprávamos, soprávamos, até ficarmos exaustos. Durante a
noite acordava-se alagado em suor. O mosquiteiro de nada servia, visto não
haver estrutura de suporte – as melgas assassinas tinham o seu alimento garantido.
Os víveres e demais material chegavam de helicóptero ou avioneta; por
transporte terrestre seria impossível – as perdas em vidas e bens seriam
elevadíssimas. É que nessa zona vivíamos em beligerância permanente e feroz.
Outra coisa, porém, não se esperaria, pois olhando para o mapa vê-se que Cufar
se situa bem perto da República da Guiné, país que sem rebuço apoiava a
guerrilha anti portuguesa.
- Compreende-se: queriam a África para
os africanos negros – acrescenta
Henrique, até ali silencioso e atento.
- Eu hoje também aceito em parte essa
teoria, apesar de considerar que o planeta Terra é de todos, cada qual deve
residir onde bem lhe agrada, se não prejudicar, claro está, os outros. Porém,
nessa altura, quem sofria as consequências dessa ajuda éramos nós! Enfim! São
coisas para esquecer.
Na primeira noite que aí permaneci acordei deveras sobressaltado, meio
sonâmbulo, com o barulho ensurdecedor dos obuses e canhões que do improvisado
aquartelamento se disparavam para o interior da mata. Até dava a impressão de
que se estava a travar uma guerra contra os fantasmas da noite que habitavam a
floresta profunda!
Os holofotes, colocados estrategicamente, iluminavam todo o terreno à
volta, mas mesmo assim convinha prevenir.
- Mas, com tanta luz, davam ao inimigo
a vossa localização!
- Não se pode dizer que estivéssemos à
mercê do “infiel”, pois de dez em dez
metros existiam abrigos subterrâneos (não
como os actuais, cómodos e à prova de bombas atómicas), nos quais se
encontravam soldados bem armados e de ouvido à escuta.
- E como é que comunicavam entre si?
- Em lugar do tradicional «sentinela à alerta» e «alerta está» ouvia-se o matraquear
característico das metralhadoras G-3!
Um episódio gravou-se para todo o
sempre na minha mente: a fuga de dois prisioneiros através do arame farpado!
Estávamos perante uma autêntica proeza, uma façanha inédita. Os tipos, apesar
da pele rasgada e sangrando com abundância, fugiam velozmente pelo meio do
capim em direção à mata. Pareciam lebres ou galgos! As balas das metralhadoras
logo que nos apercebemos da fuga, buscaram, sôfregas, os seus corpos.
- Atingiram-nos?
- Nunca soubemos se escaparam ou não –
quem se atreveria a transpor o arame para confirmar? Para lá da clareira era a
floresta, e aí espreitava de forma permanente o perigo.
De Cufar fazíamos regularmente incursões até à fronteira com a
Guiné-Konacry. Pelo caminho, armadilhas colocadas aqui e ali iam ferindo, ou
matando, alguns dos meus camaradas. Quando isso acontecia, improvisavam-se
macas com ramos verdes e chamava-se, pela rádio, o helicóptero para levar as
vítimas para o Hospital.
Os enfermeiros da Companhia, um cabo e dois soldados, por sinal muito
corajosos, à excepção do furriel, que era um medricas, e cujos conhecimentos de
enfermagem deixavam muito a desejar, raras vezes nos acompanhando, acudiam aos
feridos consoante as suas possibilidades. Os nossos adversários aproveitavam
esta situação algo confusa para iniciarem um ataque que, muitas vezes, durava
duas ou três horas!
- Eles conheciam, certamente, muito bem
o terreno – vocês não tinham hipóteses!
- Nenhumas! Numa dessas batidas, todos
caminhando em fila indiana, eu ia em quarto lugar. De repente deu-se uma forte
explosão. Fomos atirados em pirueta a metros de distância. Levanto-me, apalpo
todo o meu corpo, e verifico que felizmente não tinha sido atingido por
estilhaços. Os três da frente, entre eles o alferes Bizarro, não tiveram a
mesma sorte. Os fragmentos das granadas inimigas, armadilhadas por hábeis mãos,
alojaram-se profundamente nos seus frágeis corpos. Apelou-se de imediato ao
helicóptero. O oficial, que integrara a Companhia já nós estávamos em África
havia dois meses, soubemo-lo mais tarde, teve de ir para Lisboa, pois o seu
estado inspirava cuidados.
- E quanto aos soldados?
- Um deles encontrei-o há pouco tempo,
num desses almoços anuais: anda numa cadeira de rodas! Era um latagão. Mete dó.
- E o Estado dá-lhe alguma coisa de
jeito?
- Uma miséria, segundo ele nos disse.
Vai sobrevivendo!
Bem, por hoje dou por terminada a narrativa, vem aí a noite, temos de ir
jantar, amanhã é mais um dia de trabalho e de estudo.
- Se nos saísse a taluda não
precisaríamos mais de trabalhar!...
- Essa só sai aos ricos, àqueles que
jogam forte; de vez em quando compro uma cautela, mas nem a terminação!
//... continua.//
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