MELGAÇO E AS INVASÕES FRANCESAS
Por Augusto César Esteves
capela da Senhora da Orada |
// continuação...
As dissensões entre os visigodos
enfraqueceram o seu espírito guerreiro e os mouros, aproveitando a decadência
dos dominadores da península desembarcaram no sul da Espanha em 711 e
rapidamente a conquistaram, menos as Astúrias, onde se refugiaram os cristãos.
Muza por aqui deve ter passado em 712 e Abdelaziz, seu filho, também na erupção
do ano seguinte. E se acreditarmos ter sucedido a Melgaço o mesmo que a Lugo na
primeira invasão ou a Ourense na expedição imediata, Muza ou Abdelaziz aqui
fizeram uma razia, destruindo a Vila até aos fundamentos e matando todos os
seus habitantes, se os melgaceos, escapando-se por entre os caminhos seguidos
pelos atacantes, não se embrenharam nas Astúrias para depois, em 718 ou 719,
encetarem a luta pela independência sob o comando de Pelágio, travando com o inimigo
os primeiros combates.
Perto de quarenta anos se aguentaram na
Galiza os mouros, mas quando D. Afonso I das Astúrias, aí por 751, iniciou a
reconquista, avançando até ao sul do Douro, a sua passagem foi simultaneamente
uma hecatombe, um terramoto e uma varredoura, porque matou quantos árabes
ocupavam o território do actual Minho, destruiu todas as suas obras de defesa –
e quem sabe se o oppidum de Melgaço?
– e consigo levou para as Astúrias, pelo menos, todos os cristãos das terras baixas,
estabelecendo assim uma espécie de cinta de desertos com oásis entre os dois
campos adversários.
Pouco tempo decorreu sem se iniciar o repovoamento
destes sítios e porque o conde-bispo Odoário, falecido em 786, o deixou dito no
seu testamento, feito muito antes, sabe-se que no princípio da avançada para o
sul foi povoada a vizinha aldeia de Desteriz, mas do repovoamento de Melgaço em
nenhum cronicão ou documento escrito ficou memória. // Povoavam-se, então, de
preferência aos agregados urbanos as vilas rústicas e como os reis das Astúrias
estiveram sempre a atacar os mouros e estes lhes deram o troco na mesma moeda,
tarde, mais tarde, em 997, vindo de Braga por aqui deve ter acampado o terrível
Almansor, homem capaz também de não ter deixado pedra sobre pedra nesta região,
se a todas as passadas vicissitudes o povoado tivesse resistido. Mas, afora o
primeiro foral da terra, dez ou doze anos posterior à data fixada, eu não
conheço qualquer foco de luz projectado sobre esta incógnita melgacense e bem
podiam, pois, estar desabitados aqueles terrenos bravios e ferazes de Melgaço
quando D. Afonso Henriques em 1170, segundo dizem, mandou povoar este sítio,
porquanto lhe pertencia, como antigas vilas ou romanizadas açambarcadas pelos
pretores reis da reconquista leonesa.
Se os mandou povoar proliferaram tão
depressa que já em 1181, na leitura de Alexandre Herculano, ou em 1183, na
opinião do Dr. Rui de Azevedo, aqui houve gente bastante para constituir o
núcleo necessário para o rei fazer aos seus habitantes a carta e o escrito «de hereditate mea
quam habeo in terra Valadarensis in loco predicto Melgacio. Do vobis illam et
concedo cum suis terminis et locis antiquis, et medietatem integram de Chavianes
per ubi ilam potueritis invenire vel vendicare… ut eam hedificetis atque in ila
habitatis.»
Eram muitas as propriedades suas, como
verificará quem se der ao trabalho de ler, na parte correlativa, as Inquirições
Gerais de D. Afonso III, mas no planalto onde se ergue a Vila e nas encostas
onde se espraiam os seus arredores, destacavam-se três boas herdades,
constituindo reguengos d’el-rei: Santa Maria do Campo, São Fagundes e Santa
Maria da Porta. Neste, a estender-se para a Calçada, subindo pelas encostas da
Barbosa e declinando para os lados da Orada, no tempo de D. Afonso Henriques e
na quadra da co-regência de D. Sancho I, ergueu uma pequena igreja consagrada à
Virgem, sob a invocação de Santa Maria, a crença dos primeiros jugadeiros.
Estes tinham nascido, estes surgiram no tablado de Melgaço constituindo já uma
força desde o seu início; o próprio rei tratou com eles e o orgulhoso clero
também. Di-lo o foral, cujas palavras acima aspamos, e repete-se em vários documentos
do Livro das Datas do mosteiro de Fiães a propósito da igreja de Santa Maria da
Porta, documentos alguns cujo interesse avulta por comprovarem a co-regência
dos dois primeiros reis de Portugal. Aí se fala desta igreja tanto em 1183 como
em 1185, em 1187 e 1190, e de todas as vezes se menciona como padroeira a Virgem,
apenas invocada como Santa Maria. Dela temos também notícia em 1205. O alfobre
dos documentos é o mesmo e este marca, talvez, o fim da evolução do nome
titular, pois informa o seguinte:
«De Melgatio
Sub era M.CC.XL.III. Et quot kalendas idus
aprilis, hec est descriptio facta inter abbatem de fenalis, nomime Dominicum,
una cum suo conventu, et inter andream grasie, natum hec alumpnum de
archidiacono Garsia nuniz, tali pacto et tali conditione ut serviat ipse
andreas mihi Garsie nuniz, cum ipsa ecclesia sicut ego voluero in vita mea, et
post mortem meam ipse andreas ipsam ecclesiam de Melgazo que est edificata
prope portam ipsius ville in vita sua firmite eam teneat, et habeat et in uno
quoque anno per die cene domini pro anima mea ad refectorium. VIII. solidos
reddat, sancte marie de fenalibos. Et post mortem ipsius andree ipsam ecclesiam
integram sine ulto impedimento ad monasterium de fenalis remaneat, ita ut
nulius de genere ipsius andree, vocem nec ius super eam habeat. Siquis ex nobis
hoc pactum et hoc scriptum implere notuerit; regie voci. D. soldos pariat.
Facto pacto et scripto in tempore regis sancii Portugalia. Et de manu eius in
Valadares. Martinus Petri. In tuda episcopus petrus. Iudices ville de Melgazo.
Piagius Garsie et Johannes Roderici. Ego andreas cum concilio ville de Melgazo
hoc pactum et hoc scriptum propria manu roboro tibi abbati dominico de fenali.
Petrus –
testes; Pelagius – testes; Martinus – testes; Johanes – testes; Midus – testes;
Martinus qui notuit.»
Pelo tempo em que foi erguida devia ser
românica, com siglas, como a ermida da Orada, ou essa capelinha insulada de São
Gião, a igreja erguida em honra e louvor da imagem à qual se rezava mais ali ao
pé, à beira; que se encontrava mais à mão de semear, mais ali à porta da casa «que est edificata
prope portam ipsius ville», nos termos do último documento
transcrito – e disto proveio o crisma da Santa Maria
da Porta, sem dúvida alguma – mas parece ter havido curta duração
terrena. Se nela se não enxerga hoje uma única sigla; se hoje, dela, os olhos
apenas descortinam relíquias sagradas na porta principal e no tímpano duma lateral,
sinal evidente é desse templo ter desaparecido. Embora as crónicas o não
esmiúcem, devem tê-lo arrasado e destruído os leoneses na sua invasão de 1212,
só para que outros melgacenses tivessem o trabalho de construir no mesmo local
outra igreja. // Esta saiu românica também, mas tão afastada do mimo da Orada,
na arte e no tempo, como os pobres jugadeiros construtores o estavam dos
poderosos magnates do mosteiro de Fiães e, mesmo assim, talvez a meias com
esses frades, se é lícito alguma coisa concluir da leitura do códice n.º 83 do
Arquivo Municipal de Guimarães, caligrafia do século XVI no «título de todos os
benefícios da comarca de Valença de Contrasta», treslado feito no
tempo do Arcebispo de Braga, D. Diogo de Sousa, na parte relativa à apresentação
dos párocos: «a metade do mosteiro de Fiães e a outra metade do concelho.»
// continua...
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