quinta-feira, 3 de novembro de 2016

ENTRE MORTOS E FERIDOS
(dois anos de guerra na Guiné-Bissau)
 
romance histórico
 
Por Joaquim A. Rocha




13.º capítulo (continuação)


- Vou continuar a minha história: as lanchas da armada lusa, feitas de chapa anti bala, equipadas com metralhadoras potentíssimas, transportaram-nos até Catió, interessante vila perto do Cantanhez (mata densa e reconhecidamente perigosa, uma das bases do PAIGC: Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde).

     Em toda esta região habitavam as etnias designadas de balantas e nalus. Os primeiros distinguiam-se pela sua corpulência e cor negríssima, daí os seus dentes parecerem mais brancos do que na realidade eram. Diziam ser um dos povos mais evoluídos da Guiné.

     Saímos quase de noite, ao lusco-fusco, quando todos os gatos começam a ser pardos, a fim de não levantar suspeitas, e passadas algumas horas entrávamos no pequeno rio Combidjam.

     Os marinheiros, receosos, pediam-nos silêncio, para assim poderem escutar eventuais ruídos que das sinuosas margens surgissem.

- E foram atacados?

- Tudo correu bem, felizmente, até Catió, aonde chegámos já de madrugada. No cais éramos esperados pelos velhos e cansados camiões, que nos conduziram até ao quartel.            

     Essa vila de Catió revestia-se de uma beleza exótica e inesquecível. Se não fora sacrilégio, quase apetecia dizer: «Deixem-me ficar aqui para sempre!» Mulheres negras, com as suas roupas de cores garridas, pés completamente descalços, amplas coxas e largas ancas, sorriso nos grossos lábios, encontravam-se na berma da estrada oferecendo, a preços irrisórios, toda a casta de fruta da região: laranjas (mesmo quando já maduras continuam a ter a cor verde), banana, manga, caju, e tantas outras variedades! Muita dessa fruta, sobretudo manga, coco e banana, matou-me diversas vezes a fome durante esse período longo de carências.

- Até parece que se encontrava no paraíso! – diz Henrique, num tom jocoso.

- Se não fosse a guerra poder-se-ia afirmar isso; mas a verdade é que a maldita rondava por perto.

   As instalações militares ocupavam uma área extensa. Dentro, em forte rede e rodeada de arame farpado, situava-se a prisão para os “turras”. Pareciam animais acossados! Serviam de chacota e gáudio aos soldados mais rudes e mais atrevidos, aos brincalhões exibicionistas, ao pagode! Os insultos choviam em português das Beiras, do Alentejo, de Trás-os-Montes, do Alto e Baixo Minho, de todo o país!

- Aposto que não gostou de ver isso!

- O meu peito arfava. Não queria crer. Circo é circo; zoológico é zoológico! Não estávamos a tratar com palhaços, muito menos com feras, mas sim com pessoas que tinham sido presas por defender ideais diferentes.        

- Não me diga que interveio?!

- Vontade não me faltou. Um furor imenso invadiu minhas entranhas, todo eu tremia. Um oficial, alferes ou tenente, já não me recordo bem, notando a minha agitação, lembra-me num tom que não admitia réplica: «Na guerra as coisas passam-se assim! Somos inimigos. Pensas tu que os turras, se por azar um dia nos apanham, nos tratarão melhor?!»

- Não teve coragem, com certeza, de replicar.

- Disse-lhe, embora com respeito, olhos nos olhos: «Nunca estive preso, por isso não sei; sei, isso sim, que nós somos pessoas civilizadas, não vis carrascos. O cristianismo, que quase todos os portugueses professam, é tolerante, não repressivo.»

- E ele, como reagiu?

- Deu-me uma leve palmada nas costas, e foi-se embora. Sabia que não valia a pena continuar a conversa. Eram dois mundos que estavam em confronto: o mundo bélico e o outro, o da harmonia, da paz, da conciliação. Nós, a minoria, teríamos que ver, ouvir e calar. Lamentações, para quê? Os seus corações estavam granitizados, empedernidos, a lei da guerra imperava, a religião ali não tinha lugar – estava a mais, estorvava!

     Fomos encaminhados para o refeitório. A fome apertava e não resistimos a uma refeição quente. Depois do “repasto” pediram-nos que esperássemos. Breve chegaria uma Companhia experimentada para nos escoltar até Cufar.

- Iam finalmente entrar no território do lobo!

- Do lobo, da hiena, do chacal, da pantera, do crocodilo, eu sei lá!...

   De repente, alguém disse: «Já está atrasada!» E logo outra voz alvitrou: «Certamente surgiram problemas!»               

     Essa constatação tinha, infelizmente, fundamento. Quando a referida Companhia chegou, vinha exausta. Nos olhos dos nossos camaradas notava-se ainda o terror, o medo, por tudo aquilo que acabaram de passar. Informa um deles: «Sofremos dois mortos; vários feridos! Uma emboscada perfeita – não tínhamos para onde fugir! Podiam, se quisessem, matar-nos a todos.»

     A sua voz, num tom plangente, comoveu-nos até às lágrimas.

- O sítio não era para brincadeiras! – alvitra Henrique.

- Não era mesmo! Terra da morte, de sofrimento, Cufar aumentava assim a sua sinistra fama. Mas a vida resume-se a esta insignificância: uns partem, outros vão aguardando, mesmo sem terem disso consciência, a sua vez. Ninguém morre antes de nascer; e ninguém se livra da loba voraz, insaciável!

- Mas acabar assim!... – lamenta Henrique.

- Depois da morte ninguém sente nada, nem o zumbir do mosquito. Os sinistrados sim: sofriam horrivelmente; os seus gritos de dor ouviam-se a distância!     

- E incomodavam!...

- Ainda por cima o quartel não tinha na altura nenhum médico, apenas enfermeiros de segunda categoria! Os feridos foram evacuados para Bissau.

- E a sua Companhia, ficou em Catió?

- Esse era o nosso desejo, mas não aconteceu assim. Logo a seguir o tenente Fontelas, com a sua voz de trovão, gritou, tentando galvanizar-nos: «Preparar! E nada de medos; todos teremos de dar contas ao diabo um dia. O soldado português não teme o adversário: enfrenta-o, como os forcados enfrentam o touro na praça!»

     Morte e vida; vida e morte! A existência falaz, tirana, passageira. Discurso de monge ou de filósofo. Que nos interessava isso? O que nós queríamos, jovens de vinte e um anos, não se encontrava ali.

- E partiram!

- Que remédio. Nós e o resto da Companhia que sofrera a emboscada. Pelo caminho que leva a Cufar passámos pela aldeia dos macacos. São aos milhares e provocam um alarido tal que se repercute por uma vasta área, pelas entranhas da floresta.

- Sentiram receio…

- Metem respeito ao mais destemido. Todo o trajeto teria de ser feito a pé e de metralhadora em posição de tiro. Uns soldados virados para um lado, os outros virados para o lado oposto – não fosse o demo tecê-las!

     De vez em quando deixava-se de ouvir qualquer ruído e o silêncio, sepulcral, abatia-se sobre todo o território envolvente. O medo e a expectativa paralisavam os nossos movimentos! Os corpos deixam de ter peso e só a alma, essência do nada, existe. É de facto uma experiência quase sobrenatural, inatingível.

- Qual a distância de Catió a Cufar? – pergunta o jovem, a fim de desanuviar o ambiente.

- Não deve ultrapassar os dez quilómetros; mas naquelas circunstâncias, parecia-nos um longo caminho, interminável, imaterializado – por mais que caminhássemos nunca mais se chegava ao destino!

     Na frente seguia um pequeno carro de combate (a moderna cavalaria), pronto para o que desse e viesse.

- Funcionava como dissuasor...

- Os guerrilheiros temiam essas máquinas porque as suas metralhadoras varriam o terreno como as vassouras varrem o lixo!

    Passámos pelo local onde horas antes as duas forças antagónicas se tinham enfrentado. Notava-se nitidamente o capim pisado, ramos partidos, folhas espalhadas e restos de sangue. Um cheiro amargo envolvia todo aquele arvoredo. Uma sensação de raiva e de impotência invadia os nossos corpos, o sistema nervoso alterava-se, o cérebro por momentos nada controlava, jurava-se vingança.    

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