ENTRE MORTOS E FERIDOS
(dois anos de guerra na Guiné-Bissau)
romance histórico
Por Joaquim A. Rocha
13.º capítulo (continuação)
- Vou continuar a minha história: as
lanchas da armada lusa, feitas de chapa anti bala, equipadas com metralhadoras
potentíssimas, transportaram-nos até Catió, interessante vila perto do Cantanhez
(mata densa e reconhecidamente perigosa,
uma das bases do PAIGC: Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo
Verde).
Em toda esta região habitavam as etnias designadas de balantas e nalus.
Os primeiros distinguiam-se pela sua corpulência e cor negríssima, daí os seus
dentes parecerem mais brancos do que na realidade eram. Diziam ser um dos povos
mais evoluídos da Guiné.
Saímos quase de noite, ao lusco-fusco, quando todos os gatos começam a
ser pardos, a fim de não levantar suspeitas, e passadas algumas horas
entrávamos no pequeno rio Combidjam.
Os marinheiros, receosos, pediam-nos silêncio, para assim poderem
escutar eventuais ruídos que das sinuosas margens surgissem.
- E foram atacados?
- Tudo correu bem, felizmente, até
Catió, aonde chegámos já de madrugada. No cais éramos esperados pelos velhos e
cansados camiões, que nos conduziram até ao quartel.
Essa vila de Catió revestia-se de uma beleza exótica e inesquecível. Se
não fora sacrilégio, quase apetecia dizer: «Deixem-me ficar aqui para sempre!»
Mulheres negras, com as suas roupas de cores garridas, pés completamente
descalços, amplas coxas e largas ancas, sorriso nos grossos lábios,
encontravam-se na berma da estrada oferecendo, a preços irrisórios, toda a
casta de fruta da região: laranjas (mesmo
quando já maduras continuam a ter a cor verde), banana, manga, caju, e
tantas outras variedades! Muita dessa fruta, sobretudo manga, coco e banana,
matou-me diversas vezes a fome durante esse período longo de carências.
- Até parece que se encontrava no
paraíso! – diz Henrique, num tom jocoso.
- Se não fosse a guerra poder-se-ia
afirmar isso; mas a verdade é que a maldita rondava por perto.
As instalações militares ocupavam uma área extensa. Dentro, em forte
rede e rodeada de arame farpado, situava-se a prisão para os “turras”. Pareciam animais acossados! Serviam
de chacota e gáudio aos soldados mais rudes e mais atrevidos, aos brincalhões
exibicionistas, ao pagode! Os insultos choviam em português das Beiras, do
Alentejo, de Trás-os-Montes, do Alto e Baixo Minho, de todo o país!
- Aposto que não gostou de ver isso!
- O meu peito arfava. Não queria crer.
Circo é circo; zoológico é zoológico! Não estávamos a tratar com palhaços,
muito menos com feras, mas sim com pessoas que tinham sido presas por defender
ideais diferentes.
- Não me diga que interveio?!
- Vontade não me faltou. Um furor
imenso invadiu minhas entranhas, todo eu tremia. Um oficial, alferes ou
tenente, já não me recordo bem, notando a minha agitação, lembra-me num tom que
não admitia réplica: «Na guerra as coisas passam-se assim! Somos inimigos. Pensas
tu que os turras, se por azar um dia nos apanham, nos tratarão melhor?!»
- Não teve coragem, com certeza, de
replicar.
- Disse-lhe, embora com respeito, olhos
nos olhos: «Nunca estive preso, por isso não sei; sei, isso sim, que nós somos
pessoas civilizadas, não vis carrascos. O cristianismo, que quase todos os
portugueses professam, é tolerante, não repressivo.»
- E ele, como reagiu?
- Deu-me uma leve palmada nas costas, e
foi-se embora. Sabia que não valia a pena continuar a conversa. Eram dois
mundos que estavam em confronto: o mundo bélico e o outro, o da harmonia, da
paz, da conciliação. Nós, a minoria, teríamos que ver, ouvir e calar.
Lamentações, para quê? Os seus corações estavam granitizados, empedernidos, a
lei da guerra imperava, a religião ali não tinha lugar – estava a mais, estorvava!
Fomos encaminhados para o refeitório. A fome apertava e não resistimos a
uma refeição quente. Depois do “repasto”
pediram-nos que esperássemos. Breve chegaria uma Companhia experimentada para
nos escoltar até Cufar.
- Iam finalmente entrar no território
do lobo!
- Do lobo, da hiena, do chacal, da
pantera, do crocodilo, eu sei lá!...
De repente, alguém disse: «Já está atrasada!» E logo outra voz alvitrou: «Certamente surgiram problemas!»
Essa constatação tinha, infelizmente, fundamento. Quando a referida
Companhia chegou, vinha exausta. Nos olhos dos nossos camaradas notava-se ainda
o terror, o medo, por tudo aquilo que acabaram de passar. Informa um deles: «Sofremos
dois mortos; vários feridos! Uma emboscada perfeita – não tínhamos para onde
fugir! Podiam, se quisessem, matar-nos a todos.»
A sua voz, num tom plangente, comoveu-nos até às lágrimas.
- O sítio não era para brincadeiras! – alvitra Henrique.
- Não era mesmo! Terra da morte, de
sofrimento, Cufar aumentava assim a sua sinistra fama. Mas a vida resume-se a
esta insignificância: uns partem, outros vão aguardando, mesmo sem terem disso
consciência, a sua vez. Ninguém morre antes de nascer; e ninguém se livra da
loba voraz, insaciável!
- Mas acabar assim!... – lamenta Henrique.
- Depois da morte ninguém sente nada,
nem o zumbir do mosquito. Os sinistrados sim: sofriam horrivelmente; os seus
gritos de dor ouviam-se a distância!
- E incomodavam!...
- Ainda por cima o quartel não tinha na
altura nenhum médico, apenas enfermeiros de segunda categoria! Os feridos foram
evacuados para Bissau.
- E a sua Companhia, ficou em Catió?
- Esse era o nosso desejo, mas não
aconteceu assim. Logo a seguir o tenente Fontelas, com a sua voz de trovão, gritou,
tentando galvanizar-nos: «Preparar! E nada de medos; todos teremos de dar
contas ao diabo um dia. O soldado português não teme o adversário: enfrenta-o,
como os forcados enfrentam o touro na praça!»
Morte e vida; vida e morte! A existência falaz, tirana, passageira.
Discurso de monge ou de filósofo. Que nos interessava isso? O que nós queríamos,
jovens de vinte e um anos, não se encontrava ali.
- E partiram!
- Que remédio. Nós e o resto da
Companhia que sofrera a emboscada. Pelo caminho que leva a Cufar passámos pela
aldeia dos macacos. São aos milhares e provocam um alarido tal que se repercute
por uma vasta área, pelas entranhas da floresta.
- Sentiram receio…
- Metem respeito ao mais destemido.
Todo o trajeto teria de ser feito a pé e de metralhadora em posição de tiro. Uns
soldados virados para um lado, os outros virados para o lado oposto – não fosse
o demo tecê-las!
De vez em quando deixava-se de ouvir qualquer ruído e o silêncio,
sepulcral, abatia-se sobre todo o território envolvente. O medo e a expectativa
paralisavam os nossos movimentos! Os corpos deixam de ter peso e só a alma,
essência do nada, existe. É de facto uma experiência quase sobrenatural, inatingível.
- Qual a distância de Catió a Cufar? – pergunta o jovem, a fim de desanuviar o
ambiente.
- Não deve ultrapassar os dez
quilómetros; mas naquelas circunstâncias, parecia-nos um longo caminho,
interminável, imaterializado – por mais que caminhássemos nunca mais se chegava
ao destino!
Na frente seguia um pequeno carro de combate (a moderna cavalaria), pronto para o que desse e viesse.
- Funcionava como dissuasor...
- Os guerrilheiros temiam essas
máquinas porque as suas metralhadoras varriam o terreno como as vassouras varrem
o lixo!
Passámos pelo local onde horas antes as duas forças antagónicas se
tinham enfrentado. Notava-se nitidamente o capim pisado, ramos partidos, folhas
espalhadas e restos de sangue. Um cheiro amargo envolvia todo aquele arvoredo. Uma
sensação de raiva e de impotência invadia os nossos corpos, o sistema nervoso
alterava-se, o cérebro por momentos nada controlava, jurava-se vingança.
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