domingo, 16 de outubro de 2016

LEMBRANÇAS AMARGAS
(romance)
 
Por Joaquim A. Rocha
 
 
 
 
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A denúncia virtuosa e a virtude enxovalhada

 

     Eu desdobrava-me em consertos, a confecionar o almoço (que no Minho chamam jantar). Nesta região há quatro refeições por dia: almoço (entre as sete e oito da manhã); jantar (entre as doze e as treze horas); merenda (a meio da tarde); e a ceia (entre as oito e as nove horas da noite). A maior parte dos dias também fazia a ceia, pois como já sabem a minha mãe deslocava-se para as aldeias e no regresso, entre as nove e dez da noite, quando não mais tarde, já trazia uma grande piela, mal se segurando nas pernas. Por tudo isto, eu não dispunha de muito tempo livre para o namoro e por essa razão a minha apalavrada começou a ver outros “filmes”, cenários mais vistosos, perspetivas mais consoladoras. O meu grande amigo Rina apercebeu-se, raposa como era, da tramoia, e corre à oficina a fim de me avisar. Escutem:


- Ó Cândido, conheces-me, eu não quero ser intrometido, mexeriqueiro, mas olha que dizem coisas por aí!

- Eh, pá, desembucha.

- A tua namorada anda a pôr-tos, já a viram aos beijos com o filho da Teresa, cheira-lhe a «cacau», eles vêm de lá cheio dele, o tipo já está em França há uns anitos, por isso é que pôde cá vir, pagou a taxa militar, até já se fala em casamento, tu põe-te a pau senão ficas sem ela, agora que vais para a tropa, ela deixar-te assim! Eu não vi nada, mas quem mo afirmou não costuma mentir, põe-te a pau, repito, eu no teu lugar esclarecia isso com ela, ser tua namorada e andar no marmelanço com outro é que não, comigo as raparigas não fazem farinha, que eu até lhes rebento com a focinheira, elas a mim têm-me um temor que se pelam todas.

- Mas ouve lá, Rina: ainda ontem estive com ela, não me disse nada, não abordou esse assunto, portou-se como de costume, com naturalidade, isso deve ser mentira, aqui na nossa patriazinha toda a gente mete o bedelho na vida dos outros; lá que o marmanjo se interesse por ela, isso talvez, e até certo ponto compreende-se, ela é um pedaço de mulher, não é por ser minha namorada, mas olha que deve ser a mais bonita do concelho, põe os olhos em bico a qualquer um, eu sei que me têm inveja, lá isso têm, mas eu não me importo, ela gosta de mim e respeita-me, já deu provas disso, não acredito que me trocasse por ele, muito mais velho do que ela; não acredito. Que falem, deixa-os falar, tu és meu amigo, somos como irmãos, e sabes que eu não me importo com o que dizem, a boca é para falar, que falem: «o cão ladra e a caravana passa

- Não sei, não há fumo sem fogo, se fosse a ti precavia-me, as mulheres são capazes de tudo, conheço-as bem, como as palmas das minhas mãos, já tive mais de seis namoradas; as cabronas não eram de fiar, logo que outros lhes rondassem a porta, lhes piscassem um olho, fizessem tilintar uma moeda no bolso, atiravam-se-lhes para os braços, mas não se ficavam a rir, partia-lhes os dentes logo que tivesse conhecimento disso, pelo menos não se ficavam a rir.    

- Também há quem diga que uma delas te pôs o corpinho de molho!

- Isso foi a Amália do Regueiro, a malvada tinha uma força de dois homens, era virago, dei-lhe umas bofetadas nas ventas, mas a gaja atirou-se a mim como uma gata, um tigre, arranhou-me todo, mordeu-me o nariz, ia-mo cortando, deu-me um pontapé nos tomates, ia-me aleijando, cabrona, que força ela tinha, tive de dar às de vila-diogo, se não matava-me, quando a vejo ainda tremo, mas olha que essa é tesa, ninguém lhe faz frente, depois vinguei-me nas outras, malhei que nem em centeio, é como se estivesse a bater nela! 

- E o irmão da Filomena, parece que também te amaciou a pele!

- Oh! O João da Queijas, esse, coitado, veio gabar-se para aqui que me batera! Eu dera uma tareia na irmã, quis vingar-se; mas foi tudo mentira, quem levou das boas foi ele, que eu, não é para me exibir, mas assapei-lhe bem, dei-lhe uma moia que não esquecerá tão cedo, até foge de mim quando me vê, ainda outro dia fui a um baile à aldeia dele, a Goibães, olha que não apareceu; eu, se ele aparecesse, já estava preparado para lhe malhar outra vez, mas o tratante não é parvo, se calhar avisaram-no, ele que aparecesse…

- Estas guerras entre os da Vila e os da aldeia nunca acabam, já quando nós éramos pequenos, quando eu vim para cá, ouvia falar nelas, os daqui gabavam-se que tinham dado grandes tareias nos da aldeia, mas parece que não era bem assim, os outros jogavam bem o pau, eram exímios com ele, não temiam os da Vila, chegavam-lhes bem, uma coisa é um indivíduo ser gabarolas, outra coisa é a realidade, quando os paus voam pelo ar não há costas que escapem, levam todos. 

- Nós agora é que estamos a ficar cobardolas, olha que os mais antigos, os da idade do meu pai, esses tinham-nos no sítio, a esses ninguém fazia o ninho atrás da orelha, pudera! Levavam poucas, nós encolhemo-nos, quando vamos às festas e bailes estamos sempre com receio que caia bordoada, mas olha que naquele tempo eles é que tomavam a iniciativa, não esperavam que os outros começassem, as pobres mulheres desandavam, era uma gritaria dos diabos, eu ainda assisti a algumas lutas, a minha mãe fazia um escabeche dos diabos, não queria que o meu velho andasse à pancada, mas ele tinha de ajudar os outros, aquilo fazia lembrar os mosqueteiros «um por todos, todos por um

- Nós agora somos mais civilizados, já não usamos pau, por outro lado antigamente não havia GNR, agora os guardas não consentem essas guerrilhas, e andam bem armados, caramba, até podem num ápice matar um tipo. Outro dia, na festa de Santa Quitéria, não sei se lá estavas, os guardas Silvino e Rómulo puseram-se aos tiros, um tipo borra-se todo, uma bala daquelas leva um homem para o jardim das tabuletas num segundo, eu pus-me detrás de uma árvore, apanhei cá um susto, nem é bom lembrar.

- Eu chegara havia minutos, andava à tua procura, os guardas trouxeram uns quantos presos para a cadeia, parece que bateram neles que nem fossem animais, nunca mais vão querer meter-se noutra, os gajos não são para brincadeiras, dão tareia da grossa, hóstia, dão com a coronha da espingarda, até partem a cabeça a uma pobre criatura de Deus.

- As festas assim ficam mais calmas, já toda a gente pode andar à vontade, sem receio de apanhar uma paulada, esse costume está fora de moda, nós queremos e desejamos é divertirmo-nos, eu não gosto de confusões, de balbúrdias; os arruaceiros estragavam a festa quando ela estava no auge, embebedavam-se e pronto, toma lá porrete!

- Mas assim as festas não prestam, perdem toda aquela beleza, o colorido, tornam-se festas para mulheres e crianças, calmas, somente a música, primeiro a missa, a procissão, toda a gentalha sabe o que se vai passar, não têm graça nenhuma!   

- Há as cantigas ao desafio, os ranchos folclóricos, as moçoilas a passear de um lado para o outro, os namoricos, a banda de música… Sabes que a nossa banda é considerada uma das melhores do Minho?

- Graças sobretudo ao mestre Fernandes.

- Extraordinário maestro! Mas dizia eu: na festa de Santa Maria levámos, eu e a minha velhota, para merenda, um galo estufadinho no tacho, que bom, foi um petisco, passámos um dia maravilhoso, eu gosto de paz, sempre fui pacífico. 

- Também não tens corpo, nem garra, se tivesses eras como os outros, quererias botar figura, assim refugias-te debaixo das saias das mulheres, e elas abusam de ti!

- Sabes que isso não é cem por cento verdade; há pessoas agressivas por natureza e outras que não o são, eu pertenço a estas últimas, nasci assim e sinto-me bem comigo, com a minha consciência.

- És muito diferente de mim, eu gosto de movimento, de ação, de protagonismo.   // continua...

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